“O celibato pode ser abolido sem problemas!” Entrevista com Hermann Häring

(Foto: stempow | Pixabay, creative commons)

31 Mai 2022

 

Esta semana acontece o Katholikentag em Stuttgart (o evento organizado a cada dois anos pelo Comitê Central de leigos católicos alemães). O teólogo Hermann Häring luta pelas reformas há meio século. Do que sua Igreja tem tanto medo? Uma conversa sobre as mudanças, sobre sua vida como jesuíta e sobre seu casamento. Hermann Häring tem 84 anos, estudou em Tübingen com Joseph Ratzinger, que depois tornou-se o papa Bento XVI. Aqui começou sua amizade com Hans Küng, grande reformador. Ele foi primeiro jesuíta, depois de oito anos deixou a ordem. Ele se casou com a mulher com quem vive ainda hoje.

 

A entrevista é de Evelyn Finger, publicada por zeit.de e reproduzida por Fine Settimana, 29-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis a entrevista. 

 

Sr. Häring, estamos conversando aqui e é domingo de manhã. O senhor costuma ir à igreja no domingo de manhã?

 

Não, não tenho mais esse hábito. Foi um processo doloroso, porque aqui em Tübingen muitas vezes saía da celebração mais frustrado do que quando entrava. Como viajo muito, prefiro ir à igreja em outro lugar, por exemplo em Hamburg-Blankenese, e, portanto, não sou religiosamente "subalimentado". Mas aqui a celebração é decididamente árida.

 

Por favor, explique-nos. É porque participam poucas pessoas?

 

Não, devido à orientação tradicional. As orações e leituras oficiais, a preparação da liturgia até a última palavra não são para mim. Na Alemanha ainda existe um medo sagrado de se afastar do que foi estabelecido. Não que eu não goste da tradição, mas o domingo também pode virar rotina.

 

O que exatamente está faltando?

 

A relação com a realidade. O contraste entre a visão bíblica e a atualidade. E também o fato de que a Igreja Católica olha demais para o seu umbigo. Não sei se as coisas estão melhores na Igreja Evangélica. Mas aqui entre nós pensamos: se a Igreja está bem, a fé também está bem. Que erro! A Igreja está mal porque se cura de si e perde o contato com o mundo.

 

Mas não são justamente os católicos a favor das reformas que querem curar a sua Igreja?

 

Também. Mas o que me incomoda é o narcisismo católico conservador. Na era Ratzinger, o sacramento voltou a ser o conceito orientador de nossa Igreja. Não em palavras, mas na celebração da Eucaristia, a Igreja deve ser ela mesma. Queremos a experiência sagrada, não a vida profana.

 

Alguns diriam que esse é exatamente o ponto. Mas não! Refugiamo-nos na magia em vez de dizer às pessoas do que se trata. O resultado é um vazio interior - que não pode ser curado.

 

O que é preciso em vez disso?

 

Responder às perguntas das pessoas em vez de pregar sobre as suas cabeças. De alguns padres eu penso: "Amigo, você não percebe que três quartos das pessoas sentadas aqui não entendem nada do que você está dizendo?!". Acho que esse se colocar acima é mortal.

 

O número de membros da Igreja na Alemanha caiu abaixo de 50% da população. Ao mesmo tempo, parece que o número daqueles que querem reformas seja mais alto do que nunca. No Katholikentag em Suttgardt é esperado um fluxo significativo de visitantes. Como essas coisas se conciliam?

 

A busca por orientação tornou-se mais urgente. A escolha de sair da Igreja só nos mostra que as formas tradicionais de religiosidade não são mais tão atraentes. Por ocasião do Katholikentag como no Kirchentag dos evangélicos, são apresentadas questões de sentido e ali se encontram pessoas que pensam da mesma forma. Além disso, padres e bispos também são objetos de críticas.

 

Por que as reformas não são implementadas?

 

Devemos distinguir entre uma Igreja oficial, que é representada pelos bispos, e uma base da Igreja que sempre pensa de maneira diferente em relação a Roma. Além disso, acho que o Caminho Sinodal...ou seja, o projeto de reforma da Conferência Episcopal Alemã junto com os leigos... não seja suficientemente corajoso. Não são apresentados claramente pedidos como presbiterado às mulheres e benção dos homossexuais. E todo o Caminho Sinodal pode fracassar se a maioria dos bispos, ou o Vaticano, o trancar.

 

Além do movimento eclesial das mulheres Maria 2.0, agora existe também a iniciativa #OutInChurch. O que aconteceria se os párocos parassem com a eterna luta pela bênção dos casais homossexuais e simplesmente a realizassem?

 

Presumo que nada aconteceria. Porque nossos bispos sabem muito bem que estão indo bater contra o muro da opinião pública e que não podem mais se impor. Apesar disso, muitos párocos não ousam.

 

As críticas ao Papa Francisco estão crescendo em ambientes reformistas, acreditando que na realidade ele não é um reformador. Como prova disso, eles citam o fato de que não aprova os pedidos de reforma alemães.

 

Não é meio covarde no final jogar a culpa de tudo sobre um idoso senhor que está em Roma?

 

De fato. Os alemães apreciam demais a autoridade. Fogem do confronto aberto e temem a divisão evocada pelos conservadores - em vez de dizer: não somos nós inovadores os secessionistas, mas aqueles que persistem em sua obstinação! Até os documentos do Caminho Sinodal são redigidos numa linguagem soporífica de conciliação. Estamos demasiadamente em busca de harmonia. Preferiria que declarássemos com palavras raivosas do que se trata!

 

Sobre a raiva. Na década de 1960, o senhor estudou em Tübingen com Joseph Ratzinger e depois se tornou amigo de Hans Küng, a quem foi tirada a licença para ensinar. Em 2000 o senhor criticou a teologia de Ratzinger, definindo-a como "rígida como o concreto". O que pensa do fato de que ao longo de sua vida se continue a discutir sobre a renovação de sua Igreja?

 

Basicamente, estou com raiva. Por muito tempo eu nem mesmo admitia isso para mim mesmo, porque eu conseguia canalizar bem a minha raiva. Minha sorte foi conhecer Hans Küng e poder trabalhar com ele. Na década de 1960, em Tübingen, pensávamos que os bispos duros teriam morrido em pouco tempo. Mas quando foi tirada a licença para ensinar a Hans Küng, percebi o lado sombrio do aparato eclesiástico. Hoje acredito que o divino emerge onde ainda há horizonte, não onde se explica como acontece a salvação.

 

Por 25 anos o senhor lecionou na Holanda como professor universitário.

 

Eu vivi em uma bolha reformista. Como as coisas pouco mudassem, ficou claro para mim quando Hans Küng não foi reabilitado enquanto estava vivo. Isso foi frustrante para mim: a minha Igreja não quer entender. Pensa que a sua doutrina, que define como atemporal, permanece a mesma em qualquer época.

 

Já pensou em sair?

 

Nunca! Não vou dar esse prazer aos homens lá em cima. A minha Igreja é a minha casa. Mas eu entendo aqueles que saem. Depois de mais de 50 anos de apego reacionário às velhas certezas, até os católicos mais fiéis estão fartos.

 

Os católicos de outros continentes agora têm preocupações diferentes daquelas da Alemanha. Na Nigéria, há novamente assassinatos terríveis.

 

Não devemos pensar em fazer exigências de reforma para o mundo inteiro. Mas deveríamos construir a nossa estratégia de reforma no fato de que existe uma pluralidade católica.

 

Por que as mudanças resultam tão difíceis para a Igreja? Depende da sua idade? Da sua dimensão?

 

Não, de sua visão do humano! A doutrina do pecado original, essa ideia brutal de que todo ser humano seja culpado antes de seu primeiro respiro e que a humanidade seja uma massa condenada de pecadores, nos assusta. E isso mina nossa coragem de mudar. Embora a teologia moderna não propagandeie mais o pecado original, a liturgia ainda fala de culpa e de perdição. Pense na confissão ritual dos pecados! É verdade que a doutrina da justificação de Martinho Lutero atenuou essa visão negativa da humanidade. Mas mesmo para ele, nós humanos ainda somos considerados indignos.

 

O senhor acredita que os cristãos no Ocidente ainda sabem disso tão bem hoje?

 

Talvez não, mas nos grandes hinos, por exemplo, nos oratórios de Johann Sebastian Bach, está presente. Parece-me que mesmo as advertências dos bispos contra o "espírito do tempo" expressam uma profunda desconfiança nos seres humanos assim como eles são. Segundo o lema: só nós sabemos a gravidade da situação para a humanidade. Esta pretensão de ensinar o mundo é realmente indecorosa. Na realidade, todo ser humano pode tender para a verdade e para o bem. Devemos parar de fingir que não há salvação fora da Igreja.

 

Essa imagem negativa da humanidade de que o senhor fala, essa moralização para baixo é realmente uma prerrogativa das Igrejas e dos conservadores?

 

Não. A herança cristã influencia profundamente toda a nossa cultura cristã. Mas o furor da danação que cultivamos desde Agostinho deveria acabar gradualmente. Agostinho foi um teólogo brilhante que permitiu que a Igreja se apresentasse como portadora de salvação. Mas seu masoquismo não é bom para nós.

 

Como era a Igreja de sua infância?

 

Cresci em um vilarejo católico, cercado por vilarejos exclusivamente evangélicos, e isso aumentou nossa consciência de nós mesmos. Em nossa igreja dedicada a Cristo Rei, havia um vitral do chão até o teto que resplendecia de cores quase expressionistas quando havia sol. Nos feriados especiais ficava totalmente lotada, na frente iam as meninas, depois os meninos agitando as bandeiras. A gente cantava: "Cristo, meu Rei, só a ti / juro a minha fidelidade em um amor puro como o lírio / até a morte". Após a guerra, a nossa visão era que a Europa seria renovada na realeza de Cristo.

 

Assim o senhor se tornou jesuíta!

 

Eu me sentia tão feliz no colégio católico que depois do ensino médio entrei na ordem dos jesuítas e fiquei lá por oito anos. Mas quando acompanhei os julgamentos de Auschwitz em Frankfurt e percebi que a minha Igreja não havia protestado contra o extermínio de judeus, quis sair da ordem.

 

E mais tarde casou-se.

 

Sim, eu tinha conhecido a mulher com quem vivo ainda hoje. Para falar a verdade, ela foi o primeiro incentivo a deixar a ordem. Eu tinha me apaixonado perdidamente por ela.

 

O quanto foi difícil não ser mais jesuíta?

 

Muito difícil! Eu vivi a saída da ordem como uma ruptura dolorosa. Eu estava perdendo minha casa, uma casa onde não só se estudava filosofia cristã, mas também filosofia secular, crítica da religião, ateísmo. Havia uma abertura interna. Eu falhei por causa das exigências ascéticas. Não só pelo celibato, mas também pela obrigação de introspecção. Graças à minha esposa percebi que existe outra vida, mais livre.

 

Quem o ajudou na decisão?

 

Pessoas piedosas que me ensinaram que se pode permanecer um bom cristão, mesmo que se deixe a ordem. O que me ajudou, e que talvez também ajudaria a minha Igreja: não se preocupar apenas com o seu eu interior. Ir onde há necessidade de um homem ou de uma mulher. Esquecer de si mesmo.

 

O que o senhor pensa hoje do celibato?

 

A obrigação do celibato pode ser tirada sem problemas! É um pomo da discórdia apenas porque o sacerdócio é considerado sagrado e a sexualidade o contrário. Um pensamento primitivo! Especialmente porque as mulheres são excluídas desse tipo de sacralidade. Aqueles que querem viver celibatários podem continuar a fazê-lo.

 

A Igreja Evangélica tem mulheres párocos e bispos. No entanto, está se reduzindo.

 

Ambas as igrejas precisam rever sua imagem do homem, sua imagem de Deus. No entanto, como católico, gostaria que parássemos de mentir para nós mesmos sobre nós mesmos. Muitas paróquias não julgam negativamente o seu pároco, mesmo sabendo que ele tem, em segredo, um companheiro ou uma companheira. Espero que um dia um bispo tenha finalmente a coragem de admitir que também ele não vive como um santo.

 

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