“Longe de rejeitar a filosofia, São Paulo entra em cena como um novo Sócrates”. Entrevista com Olivier Boulnois

Pintura "The Apostle Paul", na Galeria Nacional de Arte, Washington, DC. (Foto: Luís Ribes Mateu | Flickr CC)

21 Mai 2022

 

Judeu de cultura grega, Paulo de Tarso lançou as bases do cristianismo. Em um ensaio recente, o filósofo Olivier Boulnois mostra como aquela dupla cultura forjou profundamente “a essência do cristianismo”.

 

Paulo de Tarso, nascido no início do primeiro século e falecido por volta do ano 67, é conhecido por suas epístolas que estabeleceram determinados fundamentos da teologia cristã. Esses textos, anteriores aos Evangelhos, fascinaram muitos pensadores (Agostinho, Lutero, Nietzsche, Heidegger...). Sua figura, envolta no mistério, ainda hoje é intrigante.

 

Como se articula o judaísmo de Paulo, sua cultura grega e sua fé cristã? Que relação tem com a filosofia? De que natureza é a sabedoria que Paulo se propõe a suscitar no mundo?

 

Em Saint Paul et la philosophie. Une introduction à l'essenxe du christianisme (PUF, 264 páginas, 22 euros), Olivier Boulnois, professor da École pratique des hautes études (Paris), especialista em filosofia medieval, vê no "apóstolo das gentes" uma encarnação paradoxal da essência do cristianismo.

 

Saint Paul et la philosophie: Une introduction à l'essence du christianisme

 

A entrevista com Olivier Boulnois é editada por Matthieu Giroux, publicada por Le Monde des Religions e reproduzida por Fine Settimana, 10-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Você escreve que seu livro visa identificar "a essência" do cristianismo. Em que sentido?

 

Proponho ler Paulo como uma introdução, uma via entre outras de acesso ao cristianismo. Falando da "essência do cristianismo", procuro abordar o coração do cristianismo a partir de uma figura-chave de suas origens. Mas não pretendo de forma alguma apresentar o sistema da doutrina cristã. Não se trata de definir o cristianismo "de cima", a partir de seus dogmas e de sua história. Trata-se de compreender o cristianismo como uma forma de vida.

 

Aqui, a essência do cristianismo é "ser cristão": qual é a característica específica da existência cristã? O que muda para um judeu do primeiro século e para os seus correspondentes acreditar em Jesus-Messias? Como isso muda sua relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo? Que conceito de tempo, de logos, de homem isso implica?

 

Tomando como ponto de partida Paulo, um judeu de cultura grega, você aceita o caráter paradoxal dessa essência...

 

Absolutamente. Temos uma tendência a ler Paulo a posteriori, de forma anacrônica: dado que o cristianismo surgiu como uma religião distinta do paganismo e do judaísmo, nós interpretamos Paulo como se ele não fosse judeu nem grego. Mas é exatamente o oposto: Paulo é totalmente judeu e grego. Paulo é simplesmente um judeu que adere ao Messias, um "messiânico" (este é o sentido do grego christianos).

 

Ele escreve antes que o cristianismo se separe do judaísmo. É claro que, ao justificar a integração dos gregos na comunidade, contribui para essa separação. Mas ele não o sabe. Se Paulo e os primeiros apóstolos são judeus, o coração de ser cristão não está no cristianismo: está no judaísmo.

 

O outro aspecto é que Paulo também é plenamente de cultura grega. Encontramos nele conceitos tipicamente estoicos, como o de consciência. Utiliza o gênero retórico da diatribe, típico das antigas escolas filosóficas. Ele mesmo justifica este modo de proceder: "O que de Deus se pode conhecer neles se manifesta" (Romanos 1,19). Os gregos realmente conheciam Deus, mas não souberam como prestar-lhe o culto que lhe cabia. Ao afirmar sua lealdade às autoridades, e até mesmo autorizando-o a comer carne sacrificada aos ídolos, ele prega a integração cultural completa na sociedade grega. Paulo é exatamente o oposto do fechamento identitário. É a máxima abertura.

 

Ludwig Wittgenstein (1889-1951) acreditava que a filosofia não fosse apta para expressar a verdade do cristianismo porque ela nasce mais de uma experiência. Martin Heidegger (1889-1976), por outro lado, opunha discurso filosófico e discurso teológico. O que você responderia a eles?

 

Wittgenstein vai ao cerne da questão. Uma religião não é um conjunto de doutrinas ou de fatos observáveis. É a forma de uma vida. Aderir a uma religião é, portanto, algo que se sente mais do que se expressa. E, no entanto, acredito que se possa falar sobre ela, ou seja, que uma filosofia da religião seja possível.

 

Para retomar um exemplo tirado do próprio Wittgenstein: não se pode “falar” uma sinfonia de Bruckner, é uma tempestade de emoções que precisa ser vivida; mas, ao mesmo tempo, é possível analisar a partitura, comparar as interpretações etc. O mesmo vale para Paulo: pode-se tentar decifrar suas cartas, linha por linha; pode-se depois comparar as interpretações etc.; que vença a melhor.

 

Heidegger, ao contrário, subordinou sistematicamente toda filosofia da religião ao seu pensamento do ser. Partiu de Lutero (1484-1546), que opõe a "teologia da cruz" à da fé em Jesus Cristo, à "teologia da glória" que se baseia na filosofia. Ele vê nisso uma oposição entre o Deus da metafísica e o Deus de sua fé, isto é, separa o que Paulo havia unido. Isso lhe permite depois proibir qualquer filosofia da religião que não esteja sujeita ao seu pensamento.

 

Claro, a experiência da fé é algo diferente da experiência filosófica. Mas isso não impede de pensar na experiência da fé, não proíbe desdobrar uma filosofia da religião e, eventualmente, explorar os conceitos fundamentais do cristianismo. Ou, pelo menos, é o que tentei fazer.

 

"Deus não provou que a sabedoria do mundo é louca?" (1 Coríntios 1,20), Paulo escreve. De que maneira o "logos" cristão se opõe ao "logos" grego?

 

Aqui, você me remete ao cerne da discussão com Lutero e Heidegger. Com Santo Agostinho (354-430), entendeu-se que "a sabedoria do mundo" se refere à filosofia, ao logos grego. E Lutero interpreta esse texto da mesma maneira. Já se percebe, no entanto, que há algo de errado: Paulo, que é judeu, mas que viajou por todo o mundo grego, se expressa em grego, recorre ao logos grego, argumenta com a ajuda do pensamento grego, do qual faz parte a filosofia.

 

Devemos, portanto, colocar esta frase de volta no seu contexto. Paulo enfrenta uma situação em que os crentes de Corinto estão divididos entre diferentes mestres, porque são seduzidos por seu logos (sua eloquência e seus raciocínios).

 

Paulo os lembra que o que importa não são os mestres da sabedoria, mas o anúncio puro e simples do Messias. Um anúncio baseado em um evento escandaloso para a fé judaica: o Messias tão esperado foi crucificado, condenado à morte mais obscena, depois ressuscitou. Ao transmitir isso, há certeza de voltar ao essencial. Voltando ao centro, nos colocamos acima das facções e encontramos a unidade.

 

Isso significa que o "logos" cristão é antifilosófico?

 

Paulo não é de forma alguma um antifilósofo. Dizer isso é acreditar que ele está preocupado com a filosofia. Ainda é uma pretensão de filósofo! Quando ele critica a sabedoria do mundo, não se trata de filosofia.

 

É preciso entender que o termo "mundo" não designa o espaço-tempo, mas o conjunto de forças que resistem a Deus.

 

A novidade constituída pelo anúncio do Messias provoca a resistência daqueles que sabem. Porque não se revela na eloquência ou na ostentação do saber. Revela-se aos mais humildes e menos sábios - entre os quais Paulo se coloca. Aquele que nada sabe é portador da verdadeira sabedoria.

 

É justamente o que prova que é uma palavra transcendente, um discurso que ninguém possui e do qual ninguém pode se gabar. Longe de rejeitar a filosofia, Paulo se coloca em cena como um novo Sócrates, diante dos novos sofistas.

 

Segundo você, a rejeição de Paulo aos conhecimentos gregos não é uma rejeição da "racionalidade" como tal. Então, como se caracteriza a sabedoria cristã?

 

Mais uma vez, Paulo é um judeu por completo. Ele não tem a impressão de pertencer a uma nova religião. Simplesmente adere a Jesus-Messias. A sabedoria que ele invoca é aquela do Livro da Sabedoria. Em primeiro lugar, a sabedoria de Deus, infinitamente mais sábio em seu mistério do que a sabedoria dos homens. O princípio da sabedoria, para os homens, é a fidelidade à palavra de Deus.

 

Nesse livro eu não tentei de forma alguma definir a sabedoria de Deus "de cima", a partir da vertiginosa altura de Deus. Só tentei mostrar como, segundo Paulo, o homem poderia viver de uma maneira que se conformasse com a sabedoria divina. Paulo quer mostrar que um evento absolutamente novo veio para abalar a história: a vinda do Messias. Deus salva. E como o vinho novo faz os odres velhos estourarem, esse evento sem precedentes leva o homem a reconfigurar a própria vida e o próprio pensamento ao seu redor.

 

Essa reconfiguração significa que o tempo será vivido de modo diferente, como uma ardente expectativa do Messias; que a relação com os outros será vivenciada de forma diversa, como prioritária em relação a si mesmo; que as diferenças sociais, étnicas e sexuais não terão mais valor; que a Lei de Deus só terá sentido como contrapartida de seu amor gratuito etc. São todas as determinações da existência que mudam de sentido, da maneira que tentei descrever.

 

Em que o acontecimento messiânico modifica, segundo Paulo, a nossa relação com o tempo?

 

Paulo está convencido de estar no fim dos tempos. A história terminará em breve, e isso será o advento do Messias. No entanto, se opõe a todos os cálculos milenaristas: ninguém sabe quando o Messias virá, e isso é muito bom. Na verdade, caso se soubesse, se correria o risco de adormecer numa falsa tranquilidade.

 

Em vez disso, "virá como o ladrão de noite" (1Tessalonicenses 5,2).

 

Precisamente, é preciso estar vigilantes, estar sempre atentos a ele: o Messias pode vir a qualquer momento, ele já está chegando, e é aconselhável estar pronto para recebê-lo, aqui e agora. A iminência do fim dos tempos não gera pânico nem paralisia. Empenha o ser humano a agir com serenidade e ao mesmo tempo com urgência: fazer tudo o que estiver ao seu alcance agora para realizar o bem e resistir ao mal.

 

Assim, é toda a existência humana que é reorientada para a vinda do Messias. Todas as dimensões do mundo atual (sociais, políticas, étnicas) não são imediatamente abolidas pela nova fé, mas se tornam indiferentes: comparadas ao futuro absoluto, essas diferenças não contam.

 

Paulo faz surgir um novo elemento na problemática do conhecimento: a caridade. Por que um conhecimento sem o amor de Deus é em vão?

 

Sua pergunta me lembra a observação de Agostinho: "Não se pode entrar na verdade senão com a caridade".

 

Paulo poderia ter escrito esta frase?

 

O certo é que, para ele, a existência do crente se baseia em três pilares: "a operosidade da , o esforço da caridade, a paciência da esperança" (1Tessalonicenses 1,3). Essas três atitudes são modalidades de esforço, não são fatos adquiridos nos quais se basear. A caridade é, portanto, justamente um dos fundamentos da existência dos novos crentes.

 

No entanto, não é uma emoção, mas uma prática, são atos concretos: "Se o seu inimigo estiver com fome, alimente-o" (1Romanos 12,20). Paulo não é o inventor do universalismo: os estoicos já o haviam inventado.

 

No entanto, aquele universalismo permanecia abstrato, era o amor do homem como homem. Enquanto Paulo se concentra no indivíduo, no outro como outro, no inimigo como inimigo. É preciso derrubar as barreiras que separam o judeu do pagão, o vizinho do estrangeiro, o amigo do inimigo.

 

Você questiona a interpretação agostiniana que argumenta que Paulo supera o legalismo judaico. Qual é, então, a relação de Paulo com a Lei?

 

A superação da Lei está no centro do pensamento de Agostinho. Ele acredita que o homem não tenha o poder de realizar a Lei e nem mesmo de querer o bem para si mesmo, e que precisa da graça (da ajuda de Deus) para alcançá-lo.

 

No entanto, o problema de Paulo não era o de graça e do livre arbítrio, nem o da fé e das obras. Era aquele do lugar dos pagãos no projeto de salvação divino. Ao contrário do que se costuma dizer, o judaísmo do primeiro século não era legalismo. Os escritos de Qumran mostram que se entra na Aliança com Deus através de seu amor gratuito - mesmo que se permaneça nela sendo fiel à Lei.

 

Quando fala que os pagãos que ignoram a Lei podem ser associados à salvação do povo judeu, Paulo se mostra fiel a essa interpretação. São salvos através da misericórdia divina, o que significa que não são obrigados a observar as prescrições rituais da Lei. Basta que respeitem o essencial: os mandamentos do Decálogo. E estes podem ser resumidos em uma frase: "Amarás ao seu próximo como a ti mesmo" (Romanos 13,9). Por isso, Paulo pode afirmar que a Lei não foi abolida.

 

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