Lutero: herança e história. Entrevista com Franco Buzzi

Foto: Pixabay

25 Fevereiro 2021

No aniversário da morte de Martinho Lutero (18 de fevereiro de 1546), publicamos uma entrevista com Mons. Franco Buzzi, presidente da Academia de Estudos Luteranos na Itália e autor de vários volumes especializados, incluindo Quale Europa cristiana?, Jaca Book, Milão 2019.

 

A entrevista é de Andrea CappellettiGiordano Cavallari, publicada por Settimana News, 18-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Professor, gostaria de nos lembrar do princípio a partir do qual começou a distinção de Lutero?

 

Com Martinho Lutero, monge agostiniano contemporâneo de Erasmo de Rotterdam, nos encontramos em pleno Humanismo, nos desdobramentos da tardia escolástica do final do século XV. O principal representante desse pensamento foi Guilherme da Ockham, enquanto na Alemanha seu intérprete foi o famoso professor de Tübingen, Gabriel Biel.

 

Lutero foi um grande conhecedor da tradição agostiniana, à qual pertenceu: suas fontes fundamentais estão em Santo Agostinho e, naturalmente, em São Paulo – o Paulo convertido a Cristo - especialmente no conceito de justiça divina, como recuperação da misericórdia e do perdão de Deus. De acordo com esse conceito, todos os homens são acolhidos sob o manto da graça divina, da qual são tornados participantes pelas promessas feitas a Abraão. Paulo é o justo convertido: justo no sentido de quem observou a lei judaica, mas se converteu porque chegou à consciência de um maior sentido de justiça, entendida como efeito da graça totalmente concedida por Deus ao pecador.

 

Sabemos que, no Ocidente, o grande intérprete desse conceito de justiça divina foi Santo Agostinho. Agostinho experimentou múltiplas conversões: a primeira da retórica à filosofia, que o fez superar o maniqueísmo através do neoplatonismo.

 

A partir de suas respostas ao bispo Simpliciano - sucessor de Ambrósio que o havia batizado - podemos compreender como Agostinho viveu uma profunda luta interior, no centro da qual estava a passagem de um cristianismo entendido como expressão da filosofia neoplatônica à descoberta de Jesus Cristo, salvador através de um dom, uma gratuidade que não pode ser conquistada pelo homem com suas próprias tentativas de santificação, ainda que por boas obras. Essa segunda conversão está relacionada com a sua aversão ao pensamento de Pelágio que postulava a possibilidade do homem se salvar com suas próprias forças.

 

A posição de Agostinho foi assumida por Lutero na descoberta do primado da graça, já obviamente bem presente em São Paulo.

 

Lutero sentiu, em sua época, a necessidade de se opor fortemente àquela forma de cristianismo - de derivação neoescolástica - que ainda estava envolto pelo pelagianismo, efetivamente negando o primado de Deus como único dispensador da graça salvífica. A posição de Lutero suscitou, como sabemos, reações violentas, pois teologicamente rejeitou o esforço ético e moral do homem em alcançar sua própria salvação.

 

 

Lutero nunca negou a liberdade do homem, mas em seu De Servo Arbitrio ele contestou a faculdade humana de alcançar a salvação com suas próprias forças. Ele chegou a essas conclusões através de uma releitura dos Salmos (nos anos 1513-1515) e de alguns livros do Novo Testamento, em particular as Cartas Paulinas: aos Romanos, aos Gálatas, aos Hebreus. Já no comentário ao Salmo 50 - o miserere - Lutero identifica na insuficiência da observância da lei o limite intransponível do homem para poder se considerar justo.

 

Só Deus, gratuitamente, pelo primado da Palavra, realiza a obra da justificação. A lei é apenas o espelho através do qual o homem reconhece suas próprias falhas, seu próprio pecado. O homem, portanto, não pratica a lei para dar graças a Deus, mas simplesmente para justificar a si mesmo: consequentemente, ele anula o seu valor salvífico. Portanto, a única salvação vem de Jesus Cristo. O homem deve reconhecer que não é capaz de observar a lei e confiar totalmente na Palavra de Deus feita carne, crucificada: Jesus Cristo, justamente. Somente pela fé em um único salvador o homem pode ser reconhecido como justo por Deus e perdoado.

 

Lutero e as Igrejas

 

Por que o princípio luterano não foi aceito pela Igreja do Papa Leão X?

 

Diria essencialmente porque está contido na contingência histórica da aquisição (venda) das indulgências, proposta como instrumento de justificação perante Deus, com o pagamento do óbolo. O dominicano Johann Tetzel defendeu essa tese, pregando-a em todo o distrito de Wittenberg. Para Lutero, tudo isso nada mais era do que uma expressão da heresia pelagiana tanto criticada por ele: as famosas 95 teses expostas na porta do castelo de Wittenberg em 1517 são uma expressão clara disso.

 

Atrás da venda de indulgências, historicamente, existia um contrato - diríamos hoje - de tipo multinacional entre potências: entre o papado, Alberto de Magdeburgo e seu irmão Joaquim de Brandemburgo, príncipes eleitorais. Essas potências multinacionais haviam concordado em uma divisão dos lucros mediada pelo banco alemão dos Fuggers. O papa, em particular, ambicionava essas quantias para poder concluir a construção da Basílica de São Pedro. Esse contrato, tão importante no plano político, econômico e eclesial, certamente não poderia ser evitado pela voz de um monge desconhecido da Saxônia, embora portador de uma verdade tão significativa.

 

A questão da justificação pela fé está no centro da Declaração Conjunta entre a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial de 1999: quais coincidências e quais diferenças?

 

Diria que o aspecto mais importante reside no fato de as pequenas diferenças que ainda subsistem não justificam hoje as excomunhões mútuas do passado. Elas podem ser qualificados como nuances de sensibilidade teológica que não abalam a fé comum na realidade salvífica de Jesus Cristo.

 

 

Durante séculos, as contraposições basearam-se nas modalidades da justificação pela fé: do lado católico, argumentou-se que o luteranismo pregava uma justificação puramente verbal, a chamada justiça imputada, que considera o homem justo sem que realmente o seja. Para o catolicismo, a justificação pela fé devia e deve levar, ao contrário, a uma mudança real do humano.

 

Em grande parte, trata-se de um mal-entendido. Na verdade, mesmo a definição luterana de justiça implica uma transformação real de humano de parte da justiça de Deus, embora o homem continue sendo pecador. A Palavra de Deus é eficaz, atua e não fica sem consequências. A palavra hebraica dávar significa não apenas palavra abstrata, mas também ato, fato. As visões luterana e católica convergem nisso e é assim que a Declaração Conjunta se expressa.

 

O pecado no homem não é dominans, mas é dominatum, isto é, é dominado pela graça. Para Lutero, o pecado se manifesta na concupiscência, a não ser entendida apenas como impulso libidinal, mas como impulso para ir contra Deus, contra sua Palavra. Para o luterano, qualquer ação, ainda que boa, mas que se configure como ato contrário à vontade de Deus, é pecado. O fato de a concupiscência ainda esteja presente no homem é em si um pecado. Para o católico, ao contrário, a tentação, em si, ainda não é um pecado: o pecado é ceder a ela no ato.

 

Quais são as consequências com respeito ao sacramento da reconciliação ou confissão do pecado?

Lutero nunca negou a importância disso. Principalmente em alguns textos - uma vez esgotada a fase polêmica e de controvérsia com a Igreja de Roma - o sacramento da confissão não é rejeitado e se encontra presente até mesmo no texto da Confissão de Augsburgo.

 

 

Além disso, Lutero nunca deixou de se confessar pessoalmente e sempre sugeriu aos fiéis para praticar a confissão, mesmo através do ministro, porque entre os elementos que a constituem - isto é, a preparação, o arrependimento, a contrição, a resolução de não pecar mais - o momento da absolvição é preservada, no qual, em Lutero, está certamente presente o elemento sacramental.

 

Acho que, nesta frente, o mundo católico ainda deveria sair daquela mentalidade contra reformista que o impediu de apreender as nuances de sentido que poderiam ter levado a uma recomposição há muito tempo.

 

A Declaração Conjunta - significativamente assinada em Augsburgo - não só sancionou um acordo ecumênico, mas pode ser plenamente adotada pela Igreja Católica como um patrimônio da doutrina, agora comum, junto com os luteranos, mas também com os metodistas, os reformados e os anglicanos.

 

Portanto, esse documento não deveria ser tratado como um acordo de cúpula, mas como um texto que tem algo a dizer a todos os cristãos. Claro, o fruto, por enquanto, ainda é um pouco decepcionante. Mas reler a história juntos foi muito importante. Se visões diferentes foram alimentadas por cinco séculos, obviamente leva muito tempo para se constatar outros efeitos.

 

 

O texto De libero arbitrio de Erasmo de 1524 - ao qual Lutero respondeu, no ano seguinte, com o De servo arbitrio - contém em si uma consideração da liberdade humana em colaboração com Deus, que pode ser definida como semipelagiana. Lembro que o Concílio de Trento reiterou a condenação do pelagianismo. Agora, portanto, a posição erasmiana não pode ser totalmente definida na doutrina católica: é sempre Deus quem, ao conceder livremente o seu dom, confere à liberdade humana a faculdade de colaborar: a graça de Deus está sempre no centro, é sempre o motor de toda boa ação humana.

 

Costumo apresentar continuamente palestras sobre esse tema: se em um primeiro momento o argumento parece ser compreendido pela maioria, depois, facilmente, volta-se a recair na atitude anterior. Cinco séculos de história, de formação do clero, de uma relação mal compreendida com Lutero e o luteranismo não são facilmente apagados. O ecumenismo, portanto, tem diante de si a grande tarefa de remover o que se sedimentou, de criar um clima diferente, de dar outros passos em direção a um melhor e mútuo entendimento.

 

Lutero: uma academia italiana

 

Você é presidente da Academia de Estudos Luteranos da Itália. Qual é a proposta?

 

A Academia nasceu em 2011 e pretende aumentar o conhecimento e a sensibilidade em torno da figura de Lutero e da teologia luterana: acolhe professores católicos, luteranos e valdenses. O propósito fundamental é colocar-se em atitude de escuta recíproca, tanto nas dobras dos aspectos ora considerados compartilhados, como naqueles ainda percebidos de forma diferente, pois, evidentemente, as diferenças deixaram de ser um aspecto negativo do diálogo. Cada um permanece sendo si mesmo, no empenho de escutar o outro, segundo a verdade.

 

Juntos sentimos a necessidade de retomar e relançar o caminho, obviamente através de um estudo aprofundado e aberto, de ambas as partes. Por um lado devem ser estudadas e retomadas as novas linhas historiográficas, especialmente dos países germânicos, escandinavos e finlandeses, e, por outro lado, a tradição católica deve ser estudada e aprofundada para valorizá-la em seus elementos mais preciosos, para considerar como muitos posicionamentos já continham, em si, a possibilidade de entendimento.

 

Na verdade, com o nascimento da teologia da controvérsia, durante séculos se instaurou um diálogo entre surdos. Esse tempo acabou.

 

A relação entre Lutero e a mística foi tradicionalmente pouco estudada no mundo alemão, enquanto hoje é valorizada: estamos, assim, dando espaço a um aspecto que vem evidenciando uma linha clara de continuidade entre Lutero e a filosofia medieval, especialmente franciscana, que encontramos, por exemplo, em São Boaventura.

 

Em outros aspectos, estamos dedicando muita atenção à consideração que o próprio Lutero teve pela tese oriental da divinização do humano: o justificado, de fato, para Lutero, torna-se verdadeiramente uma nova criatura, com todo o resultado ontológico consequentes. Isso já foi objeto de uma nossa publicação recente. Além disso, abre enormes portas de diálogo com o mundo ortodoxo.

 

As coisas que você diz são muito bonitas, mas também muito sutis e um tanto distantes do sentimento comum nas Igrejas ocidentais. O que realmente precisa ser posto em evidência?

 

Em resposta a esta exigência fundamental, a Academia organiza regularmente jornadas de estudo sobre temas gerais relacionados com a fé cristã, realizados em muitas cidades italianas e com fins de divulgação. Em meio a tantos problemas concretos e urgentes, pode soar estranho o que estou dizendo. No entanto, estou convencido de que o futuro da Europa será tanto mais pleno e feliz quanto mais todos - cristãos das várias confissões - conseguirem desenterrar e trazer à luz os tesouros fundamentais da fé que geraram a nossa cultura.

 

 

Isso se aplica não apenas à Europa Ocidental, mas também à Europa Oriental, o outro pulmão da cristandade, segundo a definição dada por João Paulo II. Se estudarmos o pensamento teológico russo atual - fundamental para nós hoje - inevitavelmente descobrimos como isso não poderia ter acontecido sem a mediação dos países eslavos meridionais, como Bulgária, Sérvia, Macedônia, Kosovo, etc. Nesses países, em seus mosteiros, ocorreu a mediação, não só linguística, do patrimônio cultural cristão de Bizâncio.

 

Reunir todo o patrimônio cristão significa, para mim, recompor um enorme recurso para fundar ou restabelecer a unidade europeia. Os frutos virão - senão imediatamente no plano político - na consciência crescente de ser, no plano cultural e religioso, uma única humanidade.

 

Leia mais