“Pontifexit”: o papado romano e o Ocidente. Artigo de Massimo Faggioli

Papa Francisco mateando no Vaticano. Foto: Paul Haring | CNS

16 Mai 2022

 

“Na mais grave crise de segurança da história europeia desde 1945, o pontificado de Francisco sinalizou que o papado e a Igreja Católica estão redefinindo suas relações com o Ocidente – seu sistema político, interesses econômicos e preocupações estratégicas. Com Francisco, essa desocidentalização significa de maneira eficaz e clara que o papa não é mais o 'Patriarca do Ocidente' – nem teológica nem politicamente. Isso está acontecendo no contexto de uma guerra em uma parte-chave da Europa. A propaganda ortodoxa russa e estatal está muito ciente disso, provavelmente mais do que no Ocidente. Componentes importantes dos estabelecimentos ocidentais agora se sentem geopoliticamente órfãos do papado”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 11-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Segundo ele, "a leitura geopolítica de Francisco da invasão russa da Ucrânia, vista mais como um subproduto da OTAN e menos do imperialismo russo, explica como “ser global” não é garantia de estar alerta ao colonial".

 

"A questão não é mais se o catolicismo e o papado se tornarão menos europeus e mais globais - assevera o historiador. Isso já está acontecendo e é irreversível. A questão é como o papado global se relacionará com uma multiplicidade de potências mundiais e suas narrativas legitimadoras político-religiosas conflitantes".

 

Eis o artigo.

 

No início do seu pontificado, Bento XVI eliminou o “Patriarca do Ocidente” da lista de títulos que historicamente descreviam o Pontífice Romano.

 

No começo de 2006, esse título não aparecia mais no Annuario Pontificio, o guia anual do Vaticano.

 

Na época da sua remoção, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade Cristã (PCPUC) explicou a decisão do papa como “um ato de realismo histórico e teológico” que “poderia ajudar no diálogo ecumênico”.

 

“Atualmente o significado do termo ‘Ocidente’ remete a um contexto cultural que não se refere apenas à Europa Ocidental, mas se estende dos Estados Unidos da América à Austrália e Nova Zelândia, então isso se diferencia de outros contextos culturais”, disse o comunicado do PCPUC (que até hoje só está disponível em francês e italiano).

 

“Óbvio, o significado do termo ‘Ocidente’ não pretende descrever um território eclesiástico, tampouco ser usado como uma definição de território de patriarcado. Se nós queremos dar ao termo ‘Ocidente’ um significado aplicável à linguagem jurídica eclesial, essa poderia ser entendida apenas com referência à Igreja latina”, afirmou.

 

A conclusão era clara:

 

Portanto, o título ‘Patriarca do Ocidente’ descreveria a relação especial do Bispo de Roma com este último e poderia expressar a jurisdição particular do Bispo de Roma para a Igreja Latina.  Como resultado, o título ‘Patriarca do Ocidente’, confunde desde o início, tornando obsoleto e praticamente não aplicável à evolução da história. Portanto, parece sem sentido insistir em arrastar seu uso”.

 

Identidade do catolicismo e Europa

 

A decisão levantou suspeitas entre alguns teólogos e criou diferentes interpretações sobre seu significado e as intenções de Bento.

 

O que é importante notar agora, mais de 15 anos depois, é que o Papa Francisco deixou claro que a relação entre o papado romano e “o Ocidente” está passando por uma transição ainda maior do que a prevista por Bento XVI.

 

E não é só porque o papa jesuíta modificou o Annuario Pontificio, optando por listar-se primeiro pelo título básico de “Bispo de Roma”.

 

Por um lado, há uma clara diferença entre Bento e Francisco. Diferente de Jorge Mario Bergoglio, Joseph Ratzinger sempre viu a identidade teológica e cultural do catolicismo como essencialmente e imutavelmente ligada à história europeia e ocidental.

 

Isso explica, em boa parte, as tensões desencadeadas pela mudança de pontificado em 2013 com a eleição do primeiro papa latino-americano.

 

Uma Igreja deixando para trás sua identidade com o Ocidente

 

Por outro lado, Francisco completou a decisão de Bento XVI em 2006 com algo que poderíamos chamar de “Pontifexit”.

 

Assim como o “Brexit” foi a palavra para a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, “Pontifexit” denota como o papado está deixando para trás sua identificação com o Ocidente.

 

Francisco fez isso do ponto de vista eclesiástico e teológico, com ênfase na descentralização, inculturação e “as periferias”. Mas ele também fez isso do ponto de vista geopolítico, e isso tem sido muito visível desde o início de seu “papado liminar”.

 

Nas últimas semanas, isso ficou ainda mais evidente a partir de sua avaliação das raízes da guerra na Ucrânia também como parte da luta não resolvida e contínua pela supremacia global entre os Estados Unidos (com a OTAN) e a Rússia.

 

O que está acontecendo é uma maciça e complicada mudança no auto-entendimento da Igreja Católica e do papado. É algo que começou com João XXIII.

 

Em sua encíclica final, Pacem in terris (11 de abril de 1963), o João destacou o papel da Igreja na promoção da paz. Ele rejeitou a ideia de uma guerra nuclear como algo “irracional”.

 

Ao fazer isso, ele estava distanciando o papado de ser o “capelão do Ocidente”, papel que as potências ocidentais lhe atribuíram durante a Guerra Fria. As elites políticas e diplomatas do “mundo livre” ficaram chocados e consternados com a posição de João; eles sentiram uma sensação de abandono.

 

Um papa pressionado pela ascensão das mídias sociais

 

Isso é semelhante ao que aconteceu nas últimas semanas, apenas em maior escala e com algumas diferenças importantes.

 

Já em 1963, João XXIII era visto pelas elites políticas ocidentais como uma exceção, um erro, que não tinha muito tempo de vida. Na verdade, ele morreu menos de dois meses após a publicação de Pacem in terris.

 

Havia a expectativa de que a Igreja voltasse ao normal após sua morte. Mas João lançou o Concílio Vaticano II (1962-65) e a Igreja pré-conciliar nunca voltou totalmente. O pontificado de Francisco fornece evidências diárias disso.

 

Além disso, em 1963, estadistas, diplomatas e líderes da Igreja não estavam nas mídias sociais, e o papa nunca deu entrevistas. Os pronunciamentos dos papas e da diplomacia (incluindo a diplomacia papal) foram menos expostos à pressão pública por declarações diárias e notícias.

 

Essa pressão tornou mais complicada a relação entre os aspectos proféticos e diplomáticos do ministério papal. Também complicou o trabalho da Igreja em geral.

 

Além disso, deve-se notar que a visão geopolítica de Francisco sobre a guerra na Ucrânia não é apenas sua.

 

Também é típico de muitos católicos da América Latina, Ásia e África. Ao contrário de muitos europeus, eles não veem a invasão russa da Ucrânia como potencialmente genocida e decisiva para a sobrevivência da democracia.

 

À luz de lidar com as consequências dos Estados Unidos exercerem seu poder no século passado, muitos católicos do “sul global” veem a guerra na Ucrânia como uma guerra entre os EUA e a Rússia.

 

E eles acreditam que o Vaticano faz bem em se distanciar o máximo possível da Europa e do Ocidente.

 

Sentindo-se órfão pelo papado

 

Na mais grave crise de segurança da história europeia desde 1945, o pontificado de Francisco sinalizou que o papado e a Igreja Católica estão redefinindo suas relações com o Ocidente – seu sistema político, interesses econômicos e preocupações estratégicas.

 

Com Francisco, essa desocidentalização significa de maneira eficaz e clara que o papa não é mais o “Patriarca do Ocidente” – nem teológica nem politicamente.

 

Isso está acontecendo no contexto de uma guerra em uma parte-chave da Europa. A propaganda ortodoxa russa e estatal está muito ciente disso, provavelmente mais do que no Ocidente.

 

Componentes importantes dos estabelecimentos ocidentais agora se sentem geopoliticamente órfãos do papado.

 

Isso ocorre em um momento em que “o Ocidente” – da Europa às Américas, Austrália e Nova Zelândia – não pode confiar em nada unificador, como interesses econômicos, um senso de destino comum e certamente não religião.

 

Do ponto de vista da história religiosa, é um Ocidente internamente separado por uma cristandade comum pré-Vaticano II e maneiras muito diferentes de se desfazer dele (e algumas tentativas perturbadoras de voltar a ele).

 

Na Europa, “o Ocidente” também se sente órfão pelos novos Estados Unidos, onde qualquer coisa europeia é considerada velha, manchada por ideologias de supremacia branca, o oposto de diversidade e inclusão.

 

Catolicismo globalizado e a falta de uma narrativa geopolítica mestra da Igreja

 

A ruína do Ocidente também significa que a Europa olha para os EUA hoje com consternação: a “solução” unilateral da guerra afegã, a aliança militar com o Reino Unido e a Austrália, um partido trumpiano prestes a vencer as eleições de meio de mandato em novembro de 2022, e por aí vai.

 

Este “Pontifexit” é uma transição muito complicada: de um papado moldado pela geopolítica de Roma localizada no coração do Ocidente, para um papado global para uma Igreja Católica global.

 

Para o catolicismo, Roma ainda é Roma, como demonstra a recente reforma da Cúria Romana de Francisco. Mas o centro de gravidade mudou significativamente, especialmente desde o pontificado de Bento XVI.

 

Este é, de certa forma, um dos frutos do 11 de setembro, que fez a geopolítica de Bento gravitar evidentemente para a Europa e a América do Norte.

 

Agora, sob Francisco, não há mais uma narrativa geopolítica mestra onde o papel do catolicismo é pré-definido. As exceções se tornaram a regra. E não é apenas uma questão de diferentes perspectivas nacionais.

 

Entre os católicos do mesmo país, e mesmo entre os do Vaticano, há diferentes perspectivas sobre o alinhamento geopolítico do papado.

 

Graças à migração em massa, o catolicismo global está em toda parte: você não precisa voar para o sul do Mediterrâneo para vê-lo.

 

O papado global e sua relação em evolução com as potências mundiais

 

Muitos especialistas na história da Rússia e da Ucrânia veem a guerra de Putin na Ucrânia como uma guerra colonial.

 

A leitura geopolítica de Francisco da invasão russa da Ucrânia, vista mais como um subproduto da OTAN e menos do imperialismo russo, explica como “ser global” não é garantia de estar alerta ao colonial.

 

As diferenças nas perspectivas católicas sobre a guerra na Ucrânia nos fizeram perceber que em todo o mundo existem maneiras muito diferentes de olhar para os eventos globais – como o Holocausto, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a revolução cubana, os ataques de 11 de setembro de 2001 e as guerras no Oriente Médio.

 

As diferentes perspectivas ajudaram a moldar os desenvolvimentos teológicos e doutrinários modernos em uma série de questões. Isso também é verdade para o que está acontecendo na Ucrânia e para o que vier a seguir, por exemplo, entre a China e Taiwan.

 

A questão não é mais se o catolicismo e o papado se tornarão menos europeus e mais globais. Isso já está acontecendo e é irreversível.

 

A questão é como o papado global se relacionará com uma multiplicidade de potências mundiais e suas narrativas legitimadoras político-religiosas conflitantes.

 

Leia mais