Reflexões para tempos difíceis: compromissos para um novo tônus vital. Artigo de Faustino Teixeira

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26 Abril 2022

 

"Uma dica preciosa que a autora [Ana Claudia Quintana Arantes] nos dá, sobretudo para esses tempos difíceis: 'Talvez o jeito mais fácil de viver bem seria incorporar no nosso dia cinco nuances da existência: demonstrar afeto, permitir-se estar com os amigos, fazer-se feliz, fazer as próprias escolhas, trabalhar com algo que faça sentido no seu tempo de vida, e não só do tempo de trabalhar. Sem arrependimentos'", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do canal Paz e Bem.

 

Eis o artigo.

 

 

Em conversa com minha companheira, Teita, no dia 18 de abril de 2022, falava sobre toda essa situação difícil nas redes, nas tensões entre falas, nos desentendimentos, controvérsias e contendas problemáticas que apontam para a dificuldade de convivência mútua e respeitosa entre pares. Foi quando ela me passou a dica de um livro que li com muito atenção e alegria. Tratava-se do livro de Ana Claudia Quintana Arantes: A morte é um dia que vale a pena (Sextante, 2019). A mesma autora escreveu outro livro interessante: Histórias lindas de morrer (Sextante, 2020).

 

Capa do livro: A morte é um dia que vale a pena.

 

O primeiro livro apresenta uma reflexão da autora sobre sofrimento e finitude, sobre os caminhos necessários para lidar de forma realista na relação com a dor e a morte. Como Ana Claudia sublinha, foi um livro que teve grande repercussão, e a colocou em contato com muitas histórias de vida. Serviu também de espaço para a irradiação de dores que habitam as pessoas. Algo que não pode simplesmente ficar estancado no fundo de cada um. Como diz o evangelho apócrifo de Tomé, citado pela autora, “se você expressar o que habita em você, isso irá salvá-lo. Mas se você não expressar o que habita em você, isso irá destruí-lo”[1].

 

A autora é médica formada pela USP, tendo se dedicado ao tema dos cuidados paliativos. Como ele prefere dizer, é alguém que cuida de pessoas que morrem. Algo que provoca seja espanto ou pelo menos muita surpresa nas pessoas que ouvem dela esse dado de sua especialização. O certo é que fiz a leitura de seus livros, e estes me remeteram a um autor que ela cita, e que achei bem interessante: Dom Miguel Ruiz, Os quatro compromissos. O livro da filosofia tolteca (Best Seller, 2021, 43ª edição).

 

Dom Ruiz nasceu numa família de curandeiros, sendo criado no México por sua mãe e avô nagual mexicano. Ele se formou em medicina, tendo passado no início da década de 1940 por uma dura experiência, num acidente de carro. Foi algo que o fez se aproximar da sabedoria ancestral dos toltecas, que identificam no nagual alguém que tem como missão a partilha de ensinamentos espirituais. São “homens e mulheres de sabedoria”. E assim seguiu a sua jornada de mestre e pensador.

 

Em seu livro, Dom Ruiz analisa quatro compromissos vistos como essenciais para uma afirmação pessoal de sentido existencial. São compromissos simples, e ao mesmo tempo difíceis e complexos, que exigem “muita força de vontade” para a sua realização, mas que uma vez assimilados ajudam profundamente para uma vida diferente e nova.

 

Em primeiro lugar, o compromisso de ser impecável no uso da palavra. A palavra vem animada pelo poder de criação, mas também de destruição. Ela pode ser tanto um rico manancial de expressão e enriquecimento, mas igualmente uma lâmina negativa, que destrói e corrompe tudo o que a circunda. Como mostra Ana Cláudia, “quando colocamos nossa voz em algo em que acreditamos, a palavra passa a ter algo de nós mesmos (...). Porém, dependendo de quando dissermos, quem ouviu a crítica poderá concordar com ela ou se irritar profundamente. Se não for possível encontrar a palavra impecável, fique em silêncio”[2].

 

O grande teólogo e pensador, Jacques Dupuis, que foi meu orientador do pós-doutorado em Roma, advertia num de seus livros para o tremendo risco da palavra deletéria que marca muitas vezes nosso discurso sobre as outras religiões. Uma linguagem ferina, violenta, desprovida de qualquer delicadeza ou cortesia. Ele falava do fundamental desafio de “purificação da linguagem”, um aprendizado essencial para qualquer pensador que busque maturidade em sua reflexão e visão do mundo[3].

 

Em segundo lugar, o compromisso de não levar nada para o lado pessoal. Como diz Dom Ruiz, “o que quer que aconteça com você, não tome como pessoal”. Se somos presa dessa armadilha, acabamos partilhando de um veneno que nos aprisiona no “sonho do inferno” [4]. Há que considerar que as maiores altercações começam com as palavras. Tenho dito nesses tempos que muitas violências que ocorrem no campo das religiões, provocando intolerâncias inadmissíveis, nascem nos púlpitos, mediante o uso inadequado das palavras.

 

Mesmo que digam que você é fantástico ou maravilhoso, evite sempre tomar tais palavras como veredictos. Mantenha acesa a humildade. Na visão de Ruiz, quando alguém diz que você é maravilhoso, não é “por sua causa” que estão dizendo. Em muitos casos, o resultado disso será sofrimento, e por nada. É o que também pondera Ana Cláudia, quando nos deixamos envolver por malhas deterioradas, que suscitam redes de conclusões apressadas: “As pessoas à nossa volta tornam-se simples personagens de histórias malucas que construímos em nossa mente, tantas vezes perversa”[5].

 

Em terceiro lugar, o passo de não tirar conclusões precipitadas. Em verdade, “temos a tendência a tirar conclusões sobre tudo. Presumir. O problema é que acreditamos que elas são verdadeiras. Poderíamos jurar que são reais. Tiramos conclusões sobre o que os outros estão fazendo e pensando – levamos para o lado pessoal -, então os culpamos e reagimos enviando veneno emocional com nossa palavra” [6].

 

O monge vietnamita Tich Nhat Hanh, fala do risco das “formações internas” que acabam povoando o nosso mundo interior, a partir de grilhões ou nós que vão se delineando a partir de recepções mal elaboradas. É o que ocorre, por exemplo, quando somos presa de palavras indelicadas ou indevidas. Se o motivo nos escapa, aquilo vai ganhando corpo dentro de nós e firmando nós que são difíceis de serem desatados. Em sua visão, “se não desfizermos esses nós enquanto eles estão se formando, eles ficarão cada vez mais fortes e apertados” [7].

 

Estamos todos envolvidos num jogo de interpretações dos outros que são às vezes de extrema complexidade. É tão comum nos enganarmos em nossas interpretações do outro, por exemplo no campo dos relacionamentos. Nós “frequentemente presumimos que nossos parceiros sabem o que pensamos e que não temos necessidade de expressar nossos desejos. Presumimos que eles irão fazer o que queremos porque nos conhecem muito bem” [8].

 

O outro com o qual nos relacionamos, está sempre resguardado por um grau de “solidão” e incomunicabilidade, que exclui qualquer possibilidade de arremate nosso. O poeta Rainer Maria Rilke nos adverte contra esse risco, sublinhando que o amor não pode estar livre de uma “solidão” necessária [9]. E esse inacabamento é passo fundamental para o amadurecimento no amor. Respeitar esse “silêncio intransponível” que habita o mundo do outro.

 

Retomando esse terceiro compromisso, Ana Claudia nos fala sobre o risco da baixa auto-estima. Os outros estão simplesmente traçando o ritmo de sua vida, mas a pessoa “imagina que só se ocupam de pensar que ela não é importante. A baixa auto-estima é um jeito torto de ser egocêntrico. Não somos tão especiais a ponto de todos pensarem que não somos bom o suficiente. O mundo não está girando em torno do nosso umbigo, ou apesar dele. O contrário também é verdadeiro: receber elogios não deve ser levado para o lado pessoal. Se alguém nos acha importantes e interessantes, isso não necessariamente tem a ver conosco. Tem a ver com aquela chave que temos e que abre a porta de bem-estar da pessoa que elogia” [10].

 

Em quarto lugar, o compromisso da dar o melhor de si. É este compromisso que possibilita o bom enraizamento dos outros três. Estar sempre atento para dar aquilo que de mais precioso existe em nós, o que não significa que este “melhor” aconteça da mesma forma em todos os nossos momentos. Estamos num mundo em movimento: “tudo está vivo e mudando o tempo todo”, e nesse sentido, “fazer o melhor algumas vezes pode produzir alta qualidade e outras vezes não será tão bom” [11].

 

Dar o melhor de si é buscar o equilíbrio necessário, evitando tanto o exagero como a timidez na dinâmica do dar. Com o exagero, topamos no esgotamento de si; com a timidez, podemos produzir frustrações. O horizonte é buscar integramente o viver intensamente a vida, com alegria e generosidade. Estamos no tempo para assumir riscos e ter coragem, e isso significa manter sempre aceso o apreço pela vida, dizendo não quando for o caso e sim, quando tiver que dizer sim.

 

Como pontua Ana Claudia,

 

“às vezes nosso melhor é estar de mau humor, não sair de casa ou ficarmos zangados. Com meus filhos, com meus amigos, com meu amor, se tenho um dia difícil chego em casa e aviso: hoje não estou bem. Misteriosamente, a louça surge lavada, meu café fica pronto, aparece um chá, alguém põe a minha música favorita para tocar. Ganho sorrisos e carinhos. É mágico perceber como estamos e avisar ao outro (...). Quando estamos muito mal, melhor não fazer, se calar, ou avisar que não estamos bem” [12].

 

E uma dica preciosa que a autora nos dá, sobretudo para esses tempos difíceis: “Talvez o jeito mais fácil de viver bem seria incorporar no nosso dia cinco nuances da existência: demonstrar afeto, permitir-se estar com os amigos, fazer-se feliz, fazer as próprias escolhas, trabalhar com algo que faça sentido no seu tempo de vida, e não só do tempo de trabalhar. Sem arrependimentos” [13].

 

Notas:

 

[1] Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena. Rio de Janeiro: Sextante, 2019, p. 9.

[2] Ibidem, p. 151.

[3] Jacques Dupuis. O cristianismo e as religiões. Do desencontro ao encontro. São Paulo: Loyola, 2001, p. 321.

[4] Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos. O livro da filosofia Tolteca. 43 ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2021, p. 49-50.

[5] Ana Claudia Quintana Arantes. A morte..., p. 151.

[6] Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos, p. 59.

[7] Tich Nhat Hanh. Paz a cada passo. Como manter a mente desperta em seu dia-a-dia. 3 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 87-88.

[8] Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos, p. 61.

[9] Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 55.

[10] Ana Claudia Quintana Arantes. A morte..., p. 152.

[11] Don Miguel Ruiz. Os quatro compromissos, p. 67.

[12] Ana Claudia Quintana Arantes. A morte..., p. 152.

[13] Ibidem, p. 153.

 

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