Vivo... e sem tempo a perder. Artigo de Timothy Radcliffe

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06 Janeiro 2022

 

“O diagnóstico do câncer havia me despertado para a minha mortalidade. Agora a morte me ligou para dizer que estava a caminho. Meu consultor me disse que a taxa de sobrevivência para esta operação é de 60% após cinco anos. É muito tempo ou é pouco? Não tenho certeza. Posso viver por muito mais ou menos tempo, mas certamente a convocação é para viver agora. Não há outra preparação para a vida eterna. Quem são as pessoas cujo perdão devo buscar? Quem são aqueles a quem amo, mas nunca disse a eles? Quais são os atos de bondade que devo fazer hoje? Não há tempo a perder”, escreve Timothy Radcliffe, ex-superior da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) de 1992 a 2001, em artigo publicado por The Tablet, 23-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

De uma pincelada com a morte e uma experiência de total dependência dos outros se abre uma janela em um profundo pensamento de quem nós somos e o porquê nós estamos aqui.

 

Eu celebro esse natal e ano novo com um prazer a mais. Não somente porque eu estou vivo depois de uma grande cirurgia, mas porque eu aprendi um pouco mais o que significa viver. Eu hesitei a escrever sobre a minha doença. O doente pode ser autocentrado: olhos vidrados sobre como se recita a litania das pílulas e sintomas. Virginia Woolf diz que o doente não espera qualquer simpatia. Esses que estão bem necessitam cuidar das suas próprias vidas. Ouso fazer isso porque espero que ilumine nossa crença em nosso Deus que se encarnou.

 

Eu internei no hospital no dia seguinte da Assunção para uma operação de câncer na mandíbula. Levou 17 horas. Eu fiquei desacordado, de um minuto ou dois, por 30 horas. Cinco semanas no hospital eram eventualmente seguidas por seis semanas de radioterapia. Mas na Festa da Imaculada Conceição, eu senti o primeiro retorno de um tipo de energia. Ainda há um longo caminho pela frente, mas a curva foi dobrada. É hora de tentar pregar novamente.

 

Esta experiência de doença foi abraçada por duas grandes festas marianas, ambas sobre o corpo de Maria: o início da vida no seu seio materno e sua participação na vitória de Cristo sobre a morte. Nos dias após a operação, era quase impossível orar. Ficava sem fôlego depois das primeiras palavras do Pai-Nosso. Duas orações me sustentaram: a Eucaristia diária, transmitida ao vivo de Blackfriars, o dom do corpo de Cristo, e a Ave Maria, cujas poucas palavras abrangem o drama da vida corporal, desde a concepção de seu filho, depois uma grávida cumprimentando outra, e finalmente nossas orações por ajuda para viver este momento presente e enfrentar o seu fim, “agora e na hora da nossa morte”.

 

O trauma dessa operação, com a remoção de vários centímetros de minha mandíbula e sua substituição por osso e tecido de minha perna, abriu uma pequena janela para a Encarnação, a personificação da divindade. Se a religião é entediante porque empurramos Deus de volta ao céu, longe da perigosa intimidade?

 

Tomás de Aquino afirmou que “eu não sou minha alma”. Se eu arrancar meu dedão do pé, não terá nenhum significado espiritual, mas certamente toda experiência espiritual está alicerçada em nossa corporeidade. Tomás de Aquino novamente: “Nada está na mente que não esteja primeiro nos sentidos”. A doença nos mergulha na confusão desordenada de nossa vida corporal, onde Deus nos abraça, mesmo que com infinita discrição.

 

A doença destruiu a identidade que eu havia criado e abriu a porta para uma identidade mais profunda que era um presente a ser descoberto. Logo depois de acordar na ala de Blenheim do Hospital Churchill, em Oxford, um jovem médico sentou-se ao lado da minha cama e fez perguntas simples, incluindo: “Onde você está?”, lembrei-me de que o lugar estava conectado com Blenheim, mas não se parecia com o palácio. Eu não pude responder. Eu esperava que ele me perguntasse quem era o primeiro-ministro para que eu pudesse responder que não tinha certeza se Boris sabia! Em vez disso, ele me perguntou quem era a rainha, a única pergunta para a qual dei a resposta correta.

 

Eu estava, disse ele, desorientado. A separação do mundo dos meus sonhos e da realidade desperta tornou-se porosa. Li nos olhos das enfermeiras que tinha sido difícil. Esse tempo de confusão durou apenas alguns dias, mas tocou o coração de quem eu pensava ser: um professor e pregador, um escritor para quem uma certa clareza de espírito era essencial. A breve fragilidade de meu controle da realidade revelou a profunda unidade de corpo, alma e espírito, cujos dramas estão entrelaçados. A Palavra se fez carne e nos envolveu em nossos momentos de clareza e confusão. Ele sabe quem somos mesmo quando perdemos o rumo e estamos mergulhados na névoa. Tive a sorte de descobrir que era irmão de quem sofre de doenças mentais.

 

Sempre adorei acordar cedo, ansioso pelas tarefas do dia, mas nas primeiras semanas fui privado de todo o arbítrio. Fiquei ali deitado, conectado a uma miríade de tubos, que bombeavam um gotejamento 12 horas por dia e carregavam os resíduos. Eu era constantemente injetado, testado, examinado. Mesmo quando os tubos começaram a ser removidos, não pude fazer nada, nem mesmo limpar minhas próprias nádegas. Eu me preocupava sem parar se alguém me arranjaria uma comadre a tempo. Portanto, minha identidade como sujeito também foi perdida por um tempo. As enfermeiras e médicos deram o seu melhor, sempre pedindo minha permissão antes de qualquer procedimento. Meu frágil senso de identidade era nutrido por seu olhar e toque, seus olhos e mãos. Existimos no olhar que os outros nos oferecem.

 

Essa dependência absoluta foi abraçada por nosso Deus que se tornou uma criança indefesa envolta em fraldas, incapaz de qualquer coisa, também precisando que seu nariz e seu traseiro fossem enxugados, mas segurado e visto por sua mãe. Ele se tornou os olhos e as mãos de Deus, olhando para o nervoso Natanael, para a mulher samaritana argumentativa no poço, para o desprezado cobrador de impostos Mateus, e vendo os amigos de Deus e estendendo a mão para os enfermos. Essas enfermeiras eram ministras do olhar e do toque divinos, assim como meus irmãos que fielmente vinham e se sentavam comigo todos os dias, mesmo quando eu não podia dizer nada.

 

A Grã-Bretanha é uma terra secular, afirmam, mas o hospital estava cheio de religião. Uma enfermeira me mostrou sua imagem favorita da Virgem. Outro viu meu rosário e me mostrou o dela. Outros pediam orações e as prometiam, sussurrando sua lealdade a seu Deus, cristão ou muçulmano. A maioria deles veio de países onde a religião ainda faz parte do ar que respiram. O NHS é considerado a religião da Grã-Bretanha moderna, mas é um templo no qual Deus é reconhecido e servido todos os dias.

 

Um terceiro desafio à minha identidade pessoal era uma espécie de privação sensorial. Como toda a minha família, adoro comer e beber. Sempre hesitei nas palavras de Paulo: “Porque o reino de Deus não consiste em comida e bebida” (Romanos 14, 17). Certamente a palavra “apenas” foi abandonada? O gosto é fundamental para a abertura do corpo para o que é outro e, portanto, para o senso de identidade de cada um. Mas durante semanas fui “nulo por via oral”. Me senti preso dentro de mim, e pensava frequentemente nas amargas linhas de Hopkins “Meu gosto era meu”. Quando por fim eu andava mancando com um andador, eu amava lavar as minhas mãos com o sanitizador e passar um pouco de álcool.

 

Eu primeiro despertei com uma sede voraz, a qual alternava com a sensação de pânico porque eu estaria me afogando com um líquido descendo minha garganta. Por meses não me era permitido beber qualquer coisa, apenas molhar meus lábios com uma esponja molhada. Tudo que eu conseguia pensar era no desejo atormentado de Israel por água enquanto vagava pelo deserto, sem confiar no Senhor que tirou a água da rocha. Repeti obsessivamente as palavras do Salmo 81: “eu o provei nas águas de Meriba”. Neste deserto, deve-se confiar no Senhor, de quem se tem sede. Em dias de festa, cantamos aquelas palavras lindas do Salmo 62:

 

Sois vós, ó Senhor, o meu Deus!
Desde a aurora ansioso vos busco!
A minh’alma tem sede de vós,
minha carne também vos deseja

 

Deus se tornou humano para compartilhar nossa sede e nos ensinar como vivê-la bem: um bebê com sede de leite materno, ressecado por 40 dias no deserto, pedindo de beber à samaritana junto ao poço e finalmente desidratado na Cruz.

 

Em “Soif”, romance de Amélie Nothomb, Jesus se deleita com a sede. “Tendo ofegado de sede por um tempo, não beba o cálice de água direto. Tome um gole, mantenha na boca antes de engolir. Meça o quão maravilhoso é”. Então, mais uma vez, privação seguida por um novo presente. “Provem e vejam como Javé é bom” (Salmo 34, 8). Frequentemente, eram as palavras dos Salmos que brilhavam. Como foi maravilhoso aquele primeiro gole de água, cuja beleza eu nunca tinha conhecido antes.

 

A Ave Maria termina com o pedido das orações de Maria “agora e na hora da nossa morte”. O diagnóstico do câncer havia me despertado para a minha mortalidade. Agora a morte me ligou para dizer que estava a caminho. Meu médico me disse que a taxa de sobrevivência para esta operação é de 60% após cinco anos. É muito tempo ou é pouco? Não tenho certeza. Posso viver por muito mais ou menos tempo, mas certamente a convocação é para viver agora. Não há outra preparação para a vida eterna. Quem são as pessoas cujo perdão devo buscar? Quem são aqueles a quem amo, mas nunca disse a eles? Quais são os atos de bondade que devo fazer hoje? Não há tempo a perder.

 

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