A derrocada de Bolsonaro e o Resgate do Brasil

oto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

13 Setembro 2021


"Foi provavelmente confiando nestes trunfos que o arco conservador optou por abrir o movimento para se divorciar de Bolsonaro", escreve Antonio Martins , jornalista e editor do portal Outras Palavras, em artigo publicado por Outras Palavras, 10-09-2021.

 

Outras Palavras segue esforço para pensar reconstrução do país. Sugerimos: não pode haver acordo por cima, sem mudanças reais, após derrota do fascismo. Em debate: Renda Básica, Reforma Tributária e ressignificação da Assistência Social.

 

Eis o artigo.

 

O presidente Jair Bolsonaro está queimando de forma acelerada, desde o 7 de setembro, o capital político que lhe restava. A ameaça fascista que seu governo representa nunca esteve tão enfraquecida e próxima do naufrágio. Avançou muito rapidamente, por outro lado, a articulação do grande arco conservador – poder econômico-financeiro, establishment político, mídia e Judiciário – para salvar da derrocada, e manter vivo, o programa neoliberal que acompanha o bolsonarismo desde o início, ainda que o presidente afunde. Este movimento duplo pode ser visto, ao mesmo tempo, com alívio e inquietação.

 

Mas para ir além do que ele oferece – a mera volta ao “velho normal” – é preciso recompor um horizonte político de esquerda. A partir da próxima segunda-feira (13/9), Outras Palavras voltará a contribuir com esta reconstrução. O projeto Resgate, que busca desenvolver ideias-força para a superação do neoliberalismo, realizará nove novos diálogos. Estarão em debate a Renda Básica, a Reforma Tributária e a ressignificação da Assistência Social. A agenda já está disponível.

 

A prova de que o risco de um “autogolpe” fascistizante (ao estilo da “tomada do Capitólio”) foi real são seus fios desencapados, que ainda crepitam. Os bloqueios nas rodovias de 16 estados, feitos por “caminhoneiros” ligados ao agronegócio, que agora o presidente tenta desmobilizar, por saber que o ato tem suas digitais. Os poucos seguidores do ex-capitão que permaneceram acampados em Brasília e, para tentar iludir a própria frustração, “comunicam” nas redes sociais que se decretou estado de sítio. Os vídeos em que o foragido Zé Trovão dirige-se diretamente a Bolsonaro e lhe indaga, entre decepcionado e lastimoso, por que não cumpriu sua parte na trama.

 

Os porquês do malogro operacional do “autogolpe” emergirão aos poucos (circulam hipóteses plausíveis, como a de Fernando Horta). Mas, ainda que tivesse sido exitosa no primeiro momento, a aventura não se consolidaria. As multidões que o bolsonarismo ainda consegue mover são um fenômeno político a ser examinado em profundidade – mas, com certeza, insuficientes para assaltar o poder e controlá-lo. E não é só porque os chefes das forças armadas faltaram ao “capitão” (ausentando-se inclusive do palanque em Brasília), nem porque as polícias militares deixaram de acudir em seu socorro (é emblemático que o governador João Doria estivesse no Comando de Operações da PM de São Paulo – o Copom – no momento em que pronunciou-se pela primeira vez em favor do impeachment de Bolsonaro, no 7 de setembro).

 

 

Ocorre que há outra história do 7 de setembro a ser contada no futuro. Por algum motivo, um conjunto de atores políticos do campo das elites reposicionou-se em oposição a Bolsonaro quase em bloco. Incluem-se no rol os ministros do STF; expoentes de partidos como o MDB, o PSDB, e até o DEM e o PSL; os meios de comunicação dominantes, que se pronunciaram por meio de editoriais e de seus articulistas. Os integrantes deste bloco ou haviam participado da eleição de Bolsonaro (no caso dos dirigentes partidários e da mídia empresarial), ou sido coniventes com as irregularidades que a marcaram (os membros do Supremo, que afastaram Lula da disputa). Também mantiveram indiferença, diante dos seguidos crimes de responsabilidade cometidos pelo capitão desde o início de seu mandato.

 

Mas agora, a atitude mudou. Todos condenam as ameaças golpistas, ainda que com distintas ênfases. Vai crescendo, muito rapidamente, a adesão à proposta de impeachment. A tendência pode se tornar irreversível nos próximos dias, devido a pelo menos quatro fatores: a degradação rápida das condições de vida da maioria e da situação econômica do país; as novas revelações, potencialmente explosivas, da CPI da Covid e dos diversos inquéritos policiais abertos contra os filhos do presidente; a crescente paralisia do governo, que decepciona e distancia os defensores da agenda neoliberal; e o esfacelamento da base bolsonarista mais fiel, descontente com o que vê como “traição” de seu “mito”.

 

 

Nesta hipótese provável, vai se abrir um novo cenário político. A polarização simplista, que hoje opõe Lula a Bolsonaro, tende a dar lugar a quadro mais complexo. Surgirá um terceiro polo, expresso pela emergência de uma oposição neoliberal ao bolsonarismo. A disputa política crucial que se estenderá até as eleições de 2022 não será binária. Exigirá o debate de projetos. Embora não contem, no momento, com um candidato popular, os neoliberais poderão se apoiar em outras fortalezas: o acomodamento das maiorias ao senso comum; a capacidade de formar a opinião pública por meio da mídia; o freio que as instituições impõem a qualquer projeto que ameace os interesses plutocráticos. Foi provavelmente confiando nestes trunfos que o arco conservador optou por abrir o movimento para se divorciar de Bolsonaro.

 

 

Evitar que o fim da ameaça fascista signifique um mero retorno ao “velho normal”; e propor caminhos para a superação do neoliberalismo são, precisamente, as ideias centrais do projeto Resgate, lançado por Outras Palavras no início de julho. A iniciativa identifica uma brecha histórica: durante quatro décadas, prevaleceu no Ocidente o “consenso de Washingnton”, a ideia paralisante segundo a qual as sociedades e os Estados precisam submeter-se à disciplina fiscal ditada pelos mercados. Mas esta crença está em crise: foi sempre desacatada na Ásia (em especial na China); agora os próprios Estados Unidos a rejeitam. Seu declínio abre espaço para recuperar a ideia da transformação social.

 

O Resgate parte de 16 ideias-força que desafiam o credo neoliberal. Cada uma delas é debatida, ao longo de três semanas, por ativistas e pensadores que a criticam e reformulam. Depois da multiplicação do investimento público e da ampliação e fortalecimento do SUS, com retomada dos princípios da Reforma Sanitária, chegou o momento de debater Renda Básica, Reforma Tributária e ressignificação da Assistência Social. Queremos fazê-lo por meio de nove diálogos, ao longo de três semanas.

 

O ciclo começa na próxima segunda-feira, 13/9, às 20h. Nessa noite, o economistas Eduardo Fagnani e André Calixtre abordam um tema atual e polêmico: “A Renda Básica como fundamento para o Estado de Bem-Estar Social”. Há uma hipótese essencial por trás desta formulação: os antigos modelos de Previdência, baseados na contribuição de trabalhadores formais, empregadores e Estado, tornaram-se anacrônicos. Em sociedades onde a informalidade urbana e rural cresce, é preciso encontrar outras formas de redistribuição de riqueza para assegurar vida digna. Fagnani e Calixtre explorarão as possibilidades da Renda Básica cumprir este papel.

 

Dois dias depois, o tema será ampliado. A filósofa e matemática Tatiana Roque apresentará a Rede Brasileira de Renda Básica, um movimento social nascente, e sua proposta de sentido claramente pós-capitalista: desvincular o direito à vida digna da submissão assalariada. Ela dialogará com o economista David Deccache. Partidário da Teoria Monetária Moderna – e portanto partidário da ideia de ampliação vasta do investimento público, David debaterá caminhos para viabilizar a proposta.

 

Mas não seria a Renda Básica, como tantas outras propostas avançadas, suscetível de captura? Para examinar este risco – e criar anticorpos – o Resgate programou um diálogo específico. Em 17/9, os economistas Arnaldo Lanzara e Rogério da Veiga dialogarão sobre “A armadilha neoliberal que tem por isca a Renda Básica". Eles abordarão a visão de Milton Friedman e do Banco Mundial, segundo a qual a RB não é um novo direito social – mas a mercantilização dos hoje existentes. Em vez de criar redes orgânicas de Saúde e Educação, por exemplo, o Estado se limitaria a distribuir vouchers, a ser pagos ao setor privado.

 

A série sobre Renda Básica será concluída em 20/9, com o exame de políticas que estão em aplicação concreta, em territórios específicos. O cientista social Fábio Waltenberg vai expor as experiências de Niterói e Maricá (RJ), cujas prefeituras mantêm políticas de garantia de renda desvinculada de trabalho assalariado. Também está convidado Joaquim Melo, criador do Banco Palmas, para um relato sobre a experiência de finanças alternativas da instituição que ajudou a criar.

 

O ciclo sobre a ideia-força 8 prossegue com dois diálogos sobre Assistência Social. Assim como o SUS, o SUASSistema Único de Assistência Socialestá sob ameaça. Mas é ainda mais desconhecido da população. Em 22/9, sempre às 20h, a cientista política Natália Satyro descreverá este sistema, que inclui benefícios não-vinculados a contribuições financeiras — como o BPC para idosos e portadores de deficiência. Natália também falará sobre como ampliar as políticas inovadoras de assistência já existente.

 

Dois dias depois, em 24/9, outro diálogo provocará ainda mais a imaginação politica. Será possível passar da ideia de assistência à de Proteção Social – substituindo, portanto, um conceito que cheira a caridade por outro que se relaciona a um direito universal? E como assegurar a Proteção em sintonia com a organização dos territórios, em especial os que emergem nas periferias? A conversa sobre estes assuntos envolverá o antropólogo Alan Brum, que atua no Complexo do Alemão, no Rio, e lá coordena o Centro de Pesquisa, Documentação e Memória e Aldaíza Sposati, ex-secretária das Administrações Regionais de São Paulo.

 

Três diálogos fecharão o ciclo. Versarão sobre a Reforma Tributária. Trata-se aqui de colocar em ação políticas capazes de reverter a brutal desigualdade brasileira – ao invés de aprofundá-la, como ocorre hoje. Eduardo Fagnani e Paulo Feldman abrirão o ciclo, em 27/9. Abordarão a necessidade de construir um novo paradigma fiscal. Ele precisa atualizar, em pelo menos cem anos, a base de tributação do Estado brasileiro, substituindo o consumo pela renda e riqueza, como fontes arrecadatórias. Significa, em especial, eliminar a dupla tributação que recai hoje sobre os assalariados e os mais pobres. Eles são taxados ao receber seus salários, já descontados de tributos; mas, em seguida, como consomem em geral tudo o que recebem, voltam a sofrer taxação sobre o que compram.

 

Em 29/9, dois dias depois, um diálogo específico tratará da justiça fiscal na tributação dos rendimentos das pessoas físicas e jurídicas. Os economistas Fabrício Oliveira e Rodrigo Orair apontarão caminhos, por exemplo, para elevar as alíquotas de desconto dos salários mais altos e das maiores empresas – reduzindo, em contrapartida, os tributos de quem ganha menos, e ampliando as faixas de isenção.

 

Finalmente, em 1º/10, Gabriel Galipolo e Pedro Humberto tratarão de dois assuntos-tabus no Brasil. Apresentarão caminhos para tributar a grande riqueza em geral (hoje tão isenta de tributos). Tratarão em especial das finanças – uma esfera de acumulação de riquezas cada vez mais agigantada e sempre livre de impostos.

 

No momento em que o debate político torna-se mais complexo, Outras Palavras pensa que não há atalhos sectários para resolvê-lo. Nas lutas contra a ameaça fascista representada pelo bolsonarismo, por exemplo, precisam caber todos, sem discriminação partidária. A diferenciação não se fará por meios restritivos que apequenem a luta democrática – mas pela reconstrução de um horizonte político de crítica radical ao capitalismo e busca de alternativas. É a isso que se volta o Resgate.

 

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