Davi: um rei, um fiel, um homem

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07 Agosto 2021

 

"Donatella Scaiola é leiga e casada, doutora em Ciências Bíblicas e professora da Faculdade de Missionologia da Pontifícia Universidade Urbaniana. Depois de vários livros dedicados aos profetas menores, aos Salmos e às figuras de mulheres na Bíblia, em seu novo livro ela aborda a figura multifacetada e complexa de Davi."

O comentário é de Roberto Mela, teólogo italiano e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado em Settimana News, 28-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

No capítulo dedicado às questões introdutórias (pp. 11-32), além da história de 1-2Sm na posição no cânone, ela aborda a organização de 1Sm 16-1Re 2. Tradicionalmente, esses capítulos eram lidos como uma “história da ascensão de Davi ao trono” (1Sm 16-2Sm 8) e uma “história da sucessão ao trono” (2Sm 9-20 + 1Re 1-2) (J. Wellhausen; cf. L. Rost).

Os limites da história são discutíveis. Se a interpretação crítico-redacional distinguia dois documentos fundamentais, um dedicado à ascensão de Davi e outro à sua sucessão (para alguns, distintos e unidos de modo desajeitado), as leituras de tipo sincrônico estão atentas ao caráter narrativo-literário do texto, valorizando a sua natureza de story, um belo exemplo de arte narrativa, uma história contada com grande habilidade. J.-P. Sonnet propõe a seguinte divisão: 1Sm 16-2Sm 5 (“Tudo que é preciso para ser rei”) e 2Sm 7-2Rs 2 (“Tudo que é preciso para ser pai”).

 

Gênero literário e propósito

Acerca do gênero literário e ao objetivo da narrativa, considerava-se que a história era uma antiga obra historiográfica atribuível a testemunhas oculares dos eventos e que a sua intenção era a de indicar Salomão como legítimo sucessor do trono de Davi. De acordo com outros, por sua vez, o autor era contrário à monarquia de Davi-Salomão, mas o relato original passou por uma redação favorável a Davi.

G. von Rad sublinhou a importância teológica do relato, inserindo a história da sucessão no contexto da historiografia antiga, um texto pertencente à saga de um herói, em que a humanização da história envolve o fato de que as decisões humanas são levadas a sério e consideradas como fatores determinantes no desenvolvimento dos eventos históricos.

J. van Seters define o relato como uma “saga de Davi”, com o objetivo de ser um “serious entertainment” e de criticar a instituição da monarquia, escrita no século IV a.C.

R. Alter, por outro lado, pensa que o objetivo principal do relato não é a sucessão ao trono, mas a iluminação das complexas relações que existem entre as histórias de Saul, Davi e Samuel.

P. K. McCarter prefere falar de “apologia de Davi”, elaborada no reino de Judá por círculos favoráveis a Davi.

As prováveis acusações contra Davi poderiam ser as seguintes: Davi tentou se apresentar na corte, às custas de Saul; Davi foi um desertor; Davi foi um mercenário a serviço dos filisteus; Davi estava envolvido na morte de Saul e de Jônatas; Davi estava envolvido na morte de Abner e Isbaal.

Vários autores (por exemplo, B. Halpern) defendem que a obra tem uma natureza apologética, que quer ser histórica, e endossam a sua leitura servindo-se de dados arqueológicos.

Halpern chega a apresentar uma figura histórica de Davi que é o contrário daquela retratada na Bíblia.

S. L. McKenzie também considera que o relato bíblico é uma apologia de Davi, que, ao invés disso, teria sido um tirano e um assassino.

Lembremos – além da estela de Mesha – que a estela de Dan, descoberta em 1993, menciona uma bytdawd, que poderia significar “casa de Davi”.

A subdivisão do relato em dois ou mais documentos é uma hipótese, afirma Scaiola. O que temos é um ciclo de relatos que dizem respeito a Davi, à sua família e à sua corte. Várias leituras dos estudiosos fornecem uma imagem parcial de Davi, tanto em sentido positivo quanto negativo. Algumas o consideram um herói; outras, um assassino e um usurpador; outras consideram que a narrativa é uma apologia de propaganda elaborada em defesa da monarquia. Muitos – segundo a estudiosa – tendem a simplificar o retrato matizado que a Bíblia oferece de Davi.

 

Leitura sincrônica e narratológica

Scaiola decide examinar o texto final do relato bíblico, lendo os episódios salientes e sublinhando as relações entretecidas por Davi com os vários personagens da trama. Ela valoriza o fato de os livros de Samuel serem considerados textos proféticos na tradição judaica, com significados profundos que vão além do puro relato dos fatos.

A estudiosa está atenta ao fenômeno da intertextualidade, valoriza a veia sapiencial presente no relato, que convida o leitor a fazer um atento discernimento sobre os personagens e a história que lhes diz respeito, levando em consideração as complexas relações que são progressivamente delineadas. Não faltam traços de ironia e de crítica à sabedoria puramente humana.

As preferências vão sempre no sentido do texto hebraico massorético. Recorre-se à tradução da Conferência Episcopal Italiana, com melhorias quando necessário. Além da bibliografia científica de referência, as notas contêm algumas breves discussões que ilustram o significado literal das palavras. As duplicatas presentes ilustram as facetas da figura de Davi.

A articulação do livro de Scaiola segue, grosso modo, o texto bíblico, sublinhando as relações que Davi mantém com os outros personagens, implementando uma leitura sincrônica e narratológica que faz com que se aprecie a beleza da intriga do texto, não esquecendo as intuições nele presentes que se referem a uma visão tecnológica em que Deus, às vezes materialmente ausente no texto, continua abraçando, seguindo e respeitando as decisões humanas, mesmo que nem sempre sejam positivas.

Trata-se do princípio da “dupla causalidade”, segundo o qual o homem e Deus contribuem, cada um de sua parte, com a evolução da história. No entanto, o autor bíblico não deixa de apontar, várias vezes, a desaprovação de Deus (por meio da do autor).

 

Saul e Davi

O início da história de Davi (1Sm 16-17, pp. 33-68) apresenta diferentes pontos de vista sobre a sua figura. Em 1Sm 16, sucedem-se a escolha de Davi por parte de Deus (mesmo sendo o menor dos irmãos da sua família) e depois por parte de Saul. 1Sm 17 narra a presença de Davi que, no campo de batalha, é apresentado a Saul e mata o arrogante gigante filisteu Golias.

Nos dois capítulos seguintes (pp. 69-118; 119-154) são analisadas as relações entre Saul e Davi: o surgimento do conflito por ciúme sobre a quantidade de inimigos mortos, o massacre dos sacerdotes de Nob, enquanto em 1Sm 24-26 parece que, no centro do relato, está a pergunta sobre qual modelo de rei é o melhor.

Davi poupa por duas vezes a vida de Saul como consagrado do Senhor e se casa com a sábia Abigail, viúva do tolo Nabal. Davi é apresentado como um homem que busca a paz e o diálogo, e também o reconhecimento da própria inocência por parte de Saul. Permanece uma grande distância entre os dois, e, enquanto Davi foge ao encontro dos filisteus, tornando-se um guerreiro famoso e um protetor mais ou menos “mafioso” dos rebanhos locais, Saul se encaminha à sua morte no Monte Gilboa. Os dois nunca mais se verão de visu.

O texto bíblico ilustra a necessidade de não se ter que matar ninguém, nem o consagrado Saul, nem o tolo Nabal. Desta vez, Davi conteve seu rancor, que o levaria ao assassinato de Nabal. Após o período de serviço na corte do rei filisteu de Gat, Aquis, é narrado o fim de Saul, sem prejuízo da ambiguidade da exata concretização do evento, suspenso entre o suicídio e a morte por parte de um soldado estrangeiro amalecita, que, por esse gesto errado contra o consagrado do Senhor, será morto pelos guardas do corpo de Davi.

No Monte Gilboa, morrem Saul e Jônatas, filho do rei, mas ao mesmo tempo amigo de Davi. Scaiola adverte que o sentido geral da elegia composta por Davi para a morte de Saul e Jônatas (cf. 2Sm 1,19-27) é discutível: em um primeiro nível, Davi celebra a coragem e as proezas militares dos dois heróis e lamenta a morte deles. Em um segundo nível, parece que está difamando os dois. A elegia, de fato, não está estruturada seguindo as ênfases típicas da qinah, o lamento fúnebre. De fato, parece que se canta o contraste entre aquilo que havia no alto e que agora caiu. Apesar da sua grandeza, eles caíram, e Saul foi rejeitado.

A realeza de Saul é difamada. O arco e a espada aludem a uma celebração convencional do sucesso militar dos dois. O arco de Jônatas alude à escolha de Jônatas em favor de Davi, contra o parecer do pai. A espada remete ao fato de que Saul não matou o rei inimigo Agag, fato que lhe custou a sua rejeição por Deus. Aquela espada, em vez disso, matou os sacerdotes de Nob e foi o instrumento com o qual Saul se suicidou. Davi, portanto, pode cantar o fracasso da história de Saul, que terminou de modo trágico.

“Em conclusão, o lamento de Davi pode ser entendido como autêntica expressão de dor, ou como um discurso que serve aos seus próprios interesses; talvez nem seja necessário escolher entre as duas opções, que conteriam, ambas, uma parte da verdade” (pp. 152-153).

Ordenamento o ensinamento da elegia aos filhos de Judá, Davi se coloca como o novo líder que está na posição e tem o poder de interpretar com autoridade (e de forma definitiva) o sentido da morte de Saul (e de Jônatas). Posta no centro dos livros de Samuel, essa elegia refere-se intertextualmente tanto ao início da história – ao cântico de Ana (1Sm 2,1-10) – quanto ao fim, aos cânticos de Davi (2Sm 22; 23,1-7).

 

Estátua do rei Davi (Foto: Przemek Pietrak | Wikimedia Commons)

 

Davi, Jônatas e Micol

Scaiola dedica um capítulo do seu livro ao relacionamento entre Davi e Jônatas (1Sm 18,1-5; 19,1-7; 20; 23,15-18; pp. 155-173), o filho do rei Saul.

Ligado a Davi por uma profunda amizade – e não por outro tipo de afeto, afirma a estudiosa –, ele representa um personagem “perfeito” (p. 171). Ele não evolui na sua atitude: fiel ao pai, ao lado do qual morrerá, é uma figura de extrema generosidade, amizade, fidelidade, ausência de inveja e de ódio para com quem, de fato, está suplantando-o na realeza. Ele doa as suas vestes e as suas armas a Davi, abdicando virtualmente à sua sucessão ao trono. Jônatas media continuamente entre o pai, Saul, e o amigo Davi: defende-o, salva a sua vida, apoia-o e, quando a sua função é cumprida, desaparece de cena. Jônatas resolve desse modo o grave problema: como Davi poderá se tornar rei, mesmo tendo sido ungido pelo Senhor? Ao abdicar do seu direito ao trono, Jônatas favorece e torna possível a transição entre Saul e Davi.

Scaiola não deixa de notar a passividade de Davi em tudo isso, levantando uma dúvida sobre a reciprocidade da relação entre os dois. Porém, o fato é que, no relato bíblico, Davi não manifesta claramente os seus sentimentos e não está isento de mentiras, relutâncias e silêncios. “Não se diz que Davi amou alguém nos livros de Samuel [...] Os motivos, os pensamentos, os sentimentos e os medos que outros personagens sentem, especialmente os de Saul e da sua família, são incessantemente revelados, enquanto os de Davi permanecem opacos” (p. 160).

Outro personagem que se encontra em uma posição muito difícil é Micol (“Davi e Micol”, pp. 173-202), a filha de Saul dada em casamento a Davi pelo preço de 100 prepúcios filisteus (Davi levará 200 a Saul, para se certificar..., cf. 1Sm 18,20-27).

Micol é chamada de “filha de Saul” quando desafia o marido, e de “mulher de Davi” quando, por outro lado, engana o pai favorecendo a fuga de Davi.

Micol exerce a sua liberdade primeiro apoiando o marido e, depois, representando a casa do seu pai. Quanto ao resto, ela é manipulada pelos dois: é vítima tanto do desejo de Saul de eliminar Davi quanto do desejo de Davi de se tornar genro do rei, adquirindo poder desse modo.

O relato faz o leitor refletir sobre os riscos que a monarquia representa: riscos ligados a um certo modo de gerir o poder e os abusos que a luta por ele gerou na sociedade israelítica. No fim do relato, Micol (cuja falta de filhos é lembrada) é tratada de modo muito duro por Davi (2Sm 6,21-22), do qual não se conhecem os reais sentimentos em relação a ela (apenas cinismo político?).

Após a morte de Saul, Davi a pediu de volta a Isbaal, e o marido Faltiel – ao qual, durante a ausência de Davi em Jerusalém, ela havia sido dada em casamento – a levará de volta chorando amargamente (cf. 2Sm 3,14-16). Ela morrerá sem ter tido filhos (cf. 2Sm 6,23).

 

Davi, Betsabeia e as práticas erradas da monarquia

A virada decisiva no relato (2Sm 11,1-12,15) está contida nos capítulos que narram a trágica história do adultério de Davi com Betsabeia e o cínico e pérfido assassinato do seu legítimo marido, Urias, o hitita, fiel oficial de Davi.

Segue-se a intervenção crítica do profeta Natã, que, com a parábola do homem com uma única ovelha criada como uma filha e sequestrada e morto por um rico proprietário, joga na cara de Davi a sua culpa homicida, profetizando-lhe, da parte do Senhor, a punição que está prestes a lhe impor, formulada de acordo com a lei do talião e que também expõe o juízo teológico sobre todo o crime: “Mataste à espada Urias, o heteu, fazendo-o perecer pela espada dos amonitas e tomaste por esposa sua mulher. Pois bem, a espada jamais se apartará de tua casa, porque me desprezaste, tomando por esposa a mulher de Urias, o heteu” (2Sm 12,9-10). Uma punição e um juízo teológicos bem claros.

A espada jamais se apartará da casa de Davi, o filho nascido de Betsabeia morrerá, e Absalão se unirá à luz do sol com as concubinas de Davi (2Sm 16,22).

Não vem à tona nenhum sentimento particular de Davi em relação a Betsabeia, e assim também por parte desta última. Não é fácil estabelecer se o fato se configurou como um estupro ou como um ato sexual entre adultos consenscientes (mesmo que de posições sociais diferentes). A parábola narrada por Natã “pertence ao gênero literário do rîb, cujo objetivo é o de permitir que Davi reconheça os pecados por ele cometidos, pedindo o perdão de Deus” (p. 224).

No ápice da sua carreira, anuncia-se a Davi o fim da sua dinastia. Ela terminará não por causa do destino, mas por causa das escolhas feitas pelo rei e pelos seus filhos, que cometerão as mesmas culpas de Davi, senão até piores. Davi cometeu atos que afetaram não apenas a relação com os homens, mas também com o próprio Deus, que ele desprezou. E Davi reconhece isso e se arrepende: “Eu pequei contra o Senhor!” (2Sm 12,13).

Nessa parte do relato, divisor de águas na narrativa relativa a Davi, emergem com clareza alguns traços da personalidade do rei. Primeiramente ambíguos, agora se revelam com cores cada vez mais foscas. Emerge um Davi diferente: um pai cego e passivo com os filhos, um rei fraco e facilmente manipulado por vários personagens, até mesmo seus conselheiros.

Por meio da citação da Escritura – por parte do seu sobrinho, o general Joab – e pela mediação do profeta Natã, expressa-se uma crítica contra a monarquia e, mais em geral, o poder. “Não é contestada nem a instituição monárquica como tal, nem o fato de que o poder deve ser exercido por alguém; a contestação profética diz respeito ao modo como na prática a monarquia utiliza o poder, explorando as pessoas para favorecer os interesses pessoais e traindo a relação com Deus” (p. 228).

A partir de uma fraqueza, “o rei se vê enredado em uma rede tecida por ele mesmo, feita de mentiras, manipulações, violências, da qual ele sai ferido e em parte derrotado, mesmo que perdoado por Deus” (p. 229).

Uma história dramática e muito atual, que descreve a dinâmica da culpa, que, de um desejo secreto, evolui para atos cada vez mais graves, com consequências cada vez mais devastadoras, até que se chegue ao momento da verdade, confessando a própria culpa e aceitando o perdão de Deus. “A culpa negada, de fato, produz a morte, enquanto a confissão do pecado abre para a vida” (ibid.).

 

Amnon e Tamar. Estupros, mulheres e poder

O capítulo dedicado por Scaiola ao dramático episódio de estupro consumado por Amnon contra a sua meia-irmã Tamar (2Sm 13; pp. 231-260) destaca a posição totalmente indefesa da mulher em questão, o conselho injusto recebido por Amnon da parte de Jonadab – “um homem muito experiente” – (2Sm 13,3), o surdo rancor incubado por Absalão contra seu meio-irmão (que o levará a mandar matá-lo, 2Sm 13,29), a falta de controle de Davi sobre a conduta dos filhos.

Com o ato do estupro, não se cometia tanto um ato contra a mulher, mas uma ofensa contra a honra, o poder político ou o status social de um clã ou de uma família que, assim, ficavam comprometidos.

Os relatos bíblicos não reconhecem o estupro em primeiro lugar como um crime cometido contra as mulheres, mas sim como um ato de força exercido contra os seus respectivos pais e maridos. Nesse caso, atenta-se contra a honra de Absalão, enquanto a união deste último com as concubinas de Davi à luz do sol será uma afronta contra Davi e expressará o direito cultivado e implementado de suceder o rei no cargo. Esse será o caso da intenção não declarada de Adonias em querer Abisag, a mulher que cuidava de Davi na sua “fria” velhice.

Tamar implora a Amnom que não cometa uma terrível nebalah, jamais cometida em Israel, uma coisa tola que pode ser evitada pedindo as dívidas permitidas. A sabedoria se opõe à paixão obsessiva. Amnon degrada Tamar reduzindo-a a um objeto, desumaniza-a destruindo-a, forçando-a a viver o resto da sua vida retirada em casa, na vergonha. A irmã, bela e virgem, tornou-se a irmã violentada e isolada.

 

Amnon e Tamar (Foto: Picryl | Domínio Público)

Davi fica com raiva, mas não pratica nenhuma reação e se cala. De fato, ele amava muito Amnom, como seu primogênito (2Sm 13,21b), realidade lembrada apenas pela tradução grega da Septuaginta e pela Vulgata, ausente no texto hebraico massorético. Davi é um rei fraco. Absalão hospedará Tamar na sua casa e lhe vingará dois anos depois, mandando matar Amnom (cf. 2Sm 13,23-37).

O caso de intertextualidade com Gn 38 (Tamar que se une ao sogro Judá que lhe nega o levirato, o casamento com seu terceiro filho, Sela, após a morte do primeiro marido Er) é muito claro. José com o manto de mangas compridas (como a de Tamar, 2Sm 13,18), como homem é mais forte do que Tamar e consegue rejeitar os avanços da mulher de Putifar (cf. Gn 39,7-11).

Outros relatos sombrios de violação de mulheres são relatados em Gn 34 (a história de Diná violentada, que leva a um passo da extinção da tribo de Benjamin) e em Jz 19 (a violação e a morte da concubina do levita). Na história de Tamar (e de José) é impossível não notar que Deus não intervém e não escuta o grito do ofendido.

(À p. 238, nota 15, letra A., leia-se “apaixonado”).

 

Davi e Absalão. Amigos e adversários

A relação entre Davi e Absalão, examinada atentamente por Scaiola (pp. 261-294) nos coloca diante de um filho de Davi extremamente bonito, com cabelos muito abundantes (= grande virilidade), ambicioso, narcisista, frio programador de seus próprios projetos de poder e de vingança.

Davi respondera ao profeta Natã que aquele que – na parábola que lhe foi proposta – havia sequestrado do pobre pastor a única ovelha que possuía, teria que pagar quatro vezes mais (cf. 2Sm 12,5-6). E, de fato, Davi perderá quatro filhos: o primeiro filho nascido de Batsabeia, Amnom, Absalão e, por fim, Adonias.

A raiz da história de Absalão pode ser vista em 2Sm 13-14, mas a revolta começa com o capítulo 15, se desenvolve nos capítulos 16-18 e se conclui com a morte de Absalão (cf. 2Sm 18,14).

A revolta de Absalão começa quatro anos após a sua fuga para Gesur, depois do assassinato de Amnom que ele ordenou e o seu retorno a Jerusalém, com o perdão obtido de Davi dois anos depois (cf. 2Sm 14,33). Em seguida, Absalão se apresenta na porta de Jerusalém (= neste caso, na sua função de tribunal...) como alguém que quer dar razão a todos aqueles que se apresentam a ele, sem a busca da correta verdade judicial. Ele julga a favor do litigante, não a favor do inocente. Isso vai contra Dt 25,1, a lei de YHWH.

A avaliação do personagem por parte do autor bíblico é negativa. Absalão subverte a lei de Israel para obter o apoio de quem pode ajudá-lo na sua revolta. Ele manipula Davi, que o despede em paz para a sua peregrinação a Hebron (2Sm 15,9). Será a última vez que o verá vivo.

A fuga de Davi diante de Absalão (cf. 2Sm 15,13ss) é um misto de decisão religiosa de um fiel e o ato de um astuto estrategista.

Davi encontra uma série de personagens que o apoiarão e a outros a quem promete salvar a vida, mesmo que, no momento, o insultem, apenas para depois retirar a sua palavra dada no momento do testamento relatado em 2Rs 2. Nele, Davi pedirá a Salomão que feche as contas com Joab e com Semei.

O sacerdote Sadoc passará para o lado de Absalão – mas Salomão, no fim, o nomeará sacerdote em Jerusalém no lugar de Ebiatar –, Etai de Gat permanece fiel a ele, seu amigo Cusai continua fiel e serve a Davi como informante e consultor de Absalão contra o muito ouvido Aquitofel (por causa de um conselho seu não seguido por Absalão, este se suicidará, um caso raro na Bíblia).

Siba o abastece novamente de víveres assim que ele chega com os seus, exausto, ao topo do Monte das Oliveiras, enquanto Semei o cobre de insultos, de poeira e de pedras na subida de Baurim. Davi o deixa fazer isso, pensando que ele está cumprindo uma vontade divina.

As escolhas das pessoas centram-se no problema: qual é a parte da justiça, a do rei ou a de seu filho? Mas o conselheiro de Absalão, Aquitofel, também era avô de Betsabeia e talvez, no fim das contas, queria se livrar de Absalão...

2Sm 17,4 afirma o princípio da dupla causalidade (cf. também 2Sm 16,8.11): "O Senhor havia estabelecido tornar nula o bom conselho de Aquitofel para fazer cair a ruína sobre Absalão. As pessoas agem livremente, mas Deus não está totalmente ausente da cena. Por um lado, Absalão é um instrumento nas mãos de Deus para punir Davi pelo seu pecado, mas, por outro, Absalão também age de forma equivocada por escolha sua: pela sua ambição, pelo seu narcisismo etc.” (p. 287).

Na Bíblia, buscava-se o conselho de YHWH por meio dos profetas. Os conselheiros humanos na história de Davi são um pouco ironicamente criticados e diminuídos. Aqui também outra pergunta para o leitor: onde está a verdadeira sabedoria dentro de uma história muitas vezes governada por escolhas ambíguas e por lógicas de poder?

Violando o expresso mandato do rei Davi, o general Joab – um valoroso soldado, líder do exército, além de sobrinho de Davi – matará Absalão a sangue frio, enforcado com os seus longos cabelos em um grande carvalho, enquanto o jumento (ou seja, a sua pretensão ao trono real) se enfiou debaixo da árvore. Davi chorará muito pelo seu filho, contra quem, porém, enviou o exército para combater... (cf. 2Sm 19,1-9). O ambíguo rei parece fracassar tanto como pai quanto como rei e, no momento em que o papel público e o privado entram em conflito, ele não consegue mais tomar decisões lúcidas.

A dor de Davi desta vez é verdadeiramente autêntica, mas, ao mesmo tempo, ele demonstra sujeição completa em relação ao general Joab, que lhe dirige a palavra de forma muito dura, convidando-o a se mostrar ao povo, fazendo prevalecer o aspecto público – político – do resultado do caso.

No seu testamento, Davi pedirá a Salomão que mate Joab (cf. 1Rs 2,5-6): “Agirás conforme tua sabedoria, mas não deixes que a sua velhice desça em paz para a morada dos mortos”. Depois de se juntar ao rebelde Adonias, Joab encontrará a morte precisamente junto ao altar onde havia se refugiado. Assim, ele pagou pela sua violência perpetrada contra Absalão, contra o chefe do exército do norte, Abner, e Amasa, chefe do exército de Judá (cf. 1Rs 2,28-35).

“Em conclusão – pergunta-se Scaiola – podemos nos perguntar quem na realidade ganha ou perde no confronto entre Davi e Absalão, e entre Davi e Joab” (p. 294).

 

Perto do fim da história. Heroísmo de Resfa, oração, oráculo e censo

Os capítulos que iniciam a conclusão da história de Davi (2Sm 21-24) não parecem ser um simples acréscimo de episódios variados e desconectados uns dos outros e da narrativa anterior.

Em 1902, K. Budde identificou neles uma interessante estrutura quiástica:

a) fome e pecado de Saul (21,1-14);

b) lista de guerreiros de Davi (21,15-22);

c) poema (22,1-51);

c’) poema (23,1-7);

b’) lista de guerreiros de Davi e;

a’) censo e punição de Davi (24,1-25). (À p. 315, nota 41, r 5, leia-se “praise”).

O enforcamento de sete descendentes de Saul em contrapartida a um juramento não cumprido de Saul em relação aos gabaonitas – não mencionado de outra forma – traz à luz a trágica história da corajosa e piedosa Resfa, concubina de Saul, que vigia tenazmente durante meses, dia e noite, para proteger os cadáveres dos seus dois filhos e dos outros cinco da destruição (cf. 2Sm 21,1-4).

O primeiro dos dois poemas de Davi (= Sl 18) descreve a confissão de fé de Davi e a invocação a Deus, a situação de angústia e a descrição da experiência de libertação (22,1-7); segue a descrição de uma teofania que lembra a do Sinai (vv. 8-20), uma reflexão sobre a libertação obtida do Senhor (vv. 21-28) e uma confissão de fé (vv. 29-51).

O segundo poema (23,1-7) relata as últimas palavras de Davi na forma de “oráculo de Davi, filho de Jessé, oráculo do homem elevado pelo Altíssimo” (v. 1b-c).

Davi também é apresentado inesperadamente como um profeta. O censo (2Sm 24), como ato de potência militar que desafia a pura confiança em Deus, é punido com três dias de peste. Davi pede perdão a Deus por isso, comprando também a eira de Areúna e construindo ali um altar.

 

Davi e Salomão. Um testamento “exigente”

A verdadeira conclusão da história de Davi abrange o seu testamento e a sua morte, relatados em 1Rs 1,1–2,11. O rei idoso, que sofre de frio, é acudido pela bela Abisag e morre no seu leito depois de ditar o seu testamento (cf. 1Rs 2,10-11). Adonias, filho de Davi e Hagit, e filho mais velho entre os permaneceram vivos, encena uma entronização que lembra a de Absalão. Ele é perdoado uma primeira vez por Salomão, consagrado, enquanto isso, definitivamente como sucessor de Davi depois que Betsabeia e o profeta Natã haviam apelado à promessa/juramento de Davi sobre o seu sucessor, manipulando-o com palavras ligeiramente diferentes entre si.

No seu testamento, Davi pede a Salomão que acerte as contas com Joab e Semei, ordenando-lhe que os mate. Após a morte de Davi, Adonias pede a intercessão de Betsabeia para que Salomão lhe dê como esposa a bela Abisag, que acudia do idoso rei Davi. Ao pedir uma mulher pertencente ao harém real, ele atenta desse modo contra a sucessão real. Desta vez, Adonias não escapará da morte, mandada imediatamente por Salomão e também imediatamente executada por Banaías.

 

Davi e Salomão (Foto: Domínio Público)

Colocando em prática as disposições testamentárias de Davi, Salomão acerta as contas com os adversários do pai (e, potencialmente, também seus): ele exila o sacerdote Abiatar em Siló e nomeia Sadoc em seu lugar como sacerdote em Jerusalém, manda Banaías matar o general Joab e também Semei, a quem, em um primeiro momento, Davi havia jurado poupar, mas que se tornou culpado de ter violado o mandato de Salomão de não sair das fronteiras de Jerusalém. Desta forma, Banaías tornou-se chefe do exército.

No fim da história, as contas são acertadas com todos os potenciais adversários, e a sucessão de Salomão, fruto de intrigas e de promessas humanas, mas abraçada também por Deus pelo princípio da “dupla causalidade”, está estavelmente assegurada.

 

Espelho

A exegeta Scaiola comenta de forma convincente os vários acontecimentos relativos a Davi e a sua personalidade de muitas facetas. Anotações filológicas preciosas e reflexões teológicas sobre a presença de YHWH em toda a história são acrescentadas ao exame narratológico.

A Bibliografia (pp. 34-358) permite um aprofundamento pessoal de estudo sobre essa figura central no texto bíblico e na história de Israel.

Davi se apresenta, definitivamente, como o espelho de cada um de nós, manifestando os vários perigos em que o abuso de poder pode nos fazer incorrer: desprezo pela vida humana, manipulação das pessoas e da comunicação verbal, cinismo frio e cálculo político, negligência na educação familiar. No entanto, não faltam a Davi o traço da fé e a dimensão do arrependimento e da oração.

Davi: um rei, um crente, um homem. Como se queria demonstrar.

 

Referência:

Donatella Scaiola. Davide: un re, un credente, un uomo (Bibbia per te 40). Pádua: Edizioni Messaggero, 2021, 364 páginas.

 

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