Os sete pecados capitais à luz da psicanálise

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13 Mai 2021

 

"William Castilho presta um grande e pertinente serviço para a Igreja ajudando os agentes de pastorais a relacionar os sete pecados capitais à luz da psicanálise conjugando-os com os três âmbitos que ação evangelizadora precisa tocar: a pessoa, a comunidade e a sociedade", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Os sete pecados capitais à luz da psicanálise (Vozes, 2021, 304 p.).

 

Eis o artigo.

 

O estudo oferecido pelo psicólogo clínico Dr. William Cesar Castilho Pereira no livro: Os sete pecados capitais à luz da psicanálise (Vozes, 2021, 304 p.) gira em torno de três temas: o pecado, a doença mental e os modos de sofrimento psíquico com o objetivo de “criar discussões que há tempos repousam silenciosas ao redor do pecado, da loucura e da dor subjetivada que impacta a relação do sujeito com o cotidiano familiar, religioso, no trabalho, na educação, nas redes sociais e nas inúmeras organizações do Estado” (p. 15). O “diálogo entre os sete pecados capitais, as classificações de doenças mentais e os modos de sofrimento psíquico tocam o vasto mosaico das paixões humanas, desde tempos imemoriais” (p. 67). O autor esclarece que “os conceitos de pecadodoença mental e modos de sofrimento psíquico, além de estarem intimamente relacionados, não se configuram como meras abstrações ou ideias necessariamente distintas. Não são conceitos incontestáveis, mas auxiliam na percepção das tensões sofridas pelo ser humano” (p. 22).

Imagem: Capa do livro 'Os sete pecados capitais
à luz da psicanálise'

O livro estruturado em nove (9) capítulos é, portanto, um convite a colocar em análise os três temas acima citados objetivando levar o leitor à “participação reflexiva no processo de análise do sofrimento psíquico de homens e mulheres que buscam no pecado a aventura da felicidade impossível” (p. 16).

 

No primeiro capítulo, intitulado “Pecado e sofrimento psíquico” (p. 21-66), busca-se ampliar o debate acerca do conceito de pecado, doença mental e de sofrimento psíquico, o que, por sua vez impacta a relação do sujeito com as instituições. Condensa-se nestas páginas boa parte da pesquisa histórica quanto a origem da definição dos setes pecados capitais e sua correlação com a doença mental e os modos de sofrimento psíquico, por isso, como pano de fundo, o autor analisa os sete pecados capitais e os conceitos de psicopatologia à luz da psicanálise.

 

Num primeiro momento William Cesar Castilho Pereira se pergunta se essas referências teóricas poderiam auxiliar na aproximação entre os conceitos de pecado e os modos de sofrimento psíquico do sujeito, se existiria uma relação entre pecados capitais e patologias psíquicas, qual seria o lugar das classificações psiquiátricas na leitura dos sete pecados capitais em um regime neoliberal que evidencia diversos tipos de sintomas, qual seria a responsabilidade do sujeito enquanto cidadão e das instituições enquanto guardiões dos direitos humanos. Numa perspectiva hermenêutica, o autor questiona, ainda, o que a ética dos desejos tem a dizer sobre os pecados capitais, os sintomas contemporâneos e os modos de vida atuais (p. 24-39).

 

Num segundo momento deste capítulo, a psiquiatra Dra. Luciana Andrade de Rodrigues traz à luz alguns pontos importantes da história da psiquiatria e do surgimento do conceito de doença mental – apresentando à luz da psiquiatria uma breve introdução ao conceito de doença mental (p. 39-52), destacando que antes de se estabelecer como disciplina da medicina, a psiquiatria surgiu de uma necessidade social de lidar com o problema da loucura; com os limites sempre inconstantes da loucura e delinquência. Seu objeto de estudo, portanto, precede e se situa na interface do sujeito com a sociedade; o que determinará seu caráter médico, social e institucional (p. 39). Sem expor minuciosamente o tema, Dra. Luciana faz um breve recuo às origens da psicopatologia e, ainda anteriormente, ao nascimento da medicina, sua introdução no método científico e ao nascimento da clínica psiquiátrica.

 

Na terceira parte deste primeiro capítulo (p. 53-66), o autor analisa a possibilidade de uma intersecção entre os conceitos de pecado, doença mental e sofrimento psíquico. Salienta que a intersecção é um espaço composto, no qual as partes se misturam, não havendo aí ruptura. Distanciando-se de visões dualistas de bem e mal, normal e patológico, real e ideal, o autor faz notar que “o objeto deste estudo é discutir a interseção entre o conjunto de vícios, patologias, deslizes e transgressões e as potencialidades humanas, sob um viés propositivo” (p. 68). Diante disso, o autor destaca a relevância de estudar os modos de sofrimento psíquico dos humanos no âmbito das organizações sociais – analisando as interações entre o sujeito e outro, as implicações que os analisadores das instituições produzem como bem-estar ou mal-estar: espiritualidade, poder, dinheiro, saber, afetividade/sexualidade, vida profissional, práticas culturais, redes de comunicação social e conflito das novas gerações. Assim, quando os sujeitos não possuem meios afetivos e adequados e estratégias de enfrentamento da organização da organização, acabam não somente ardendo (apaixonando-se), mas queimando-se (enlouquecendo), produzindo sintomas como pecado, doença mental e sofrimento psíquico (p. 64-66).

 

Nesta perspectiva – do capítulo segundo ao oitavo (p. 67-235), William Cesar Castilho Pereira analisa cada um dos sete pecados capitais em associação às classificações dos transtornos psiquiátricos como modos de sofrimento psíquico.

 

O segundo capítulo, que concentra boa parte do trabalho teórico deste livro, é dedicado ao tema da vaidade (p. 67-97). Segundo o autor “a vaidade é uma experiência que dilata a imagem do ser humano, embaça seu próprio olhar e, de certa forma, torna o sujeito escravo do olhar do outro” (p. 69), uma vez que “a existência da vaidade é correspondente à experiência do narcisismo” (p. 17). Assim entendida - busca-se relacionar as análises dos primeiros teólogos e papas da Igreja com os estudos freudianos sobre o narcisismo: a vaidade como gozo narcisista (p. 72-77), o narcisismo como experiência de vaidade (p. 78—79), o narcisismo e a experiência do sagrado (p. 79-81), a vaidade como luxúria do espírito (p. 81-85), a vaidade como narcisismo das pequenas diferenças (p. 85-88). O autor tece comentários sobre a megalomania, mitomania e autoestima mostrando as diferenças entre narcisismo como puro amor de si e narcisismo como autoestima (p. 88-91). As reflexões finais deste capítulo relacionam o narcisismo e os modos de sofrimento psíquicos trazidos pelo mundo globalizado e midiatizado, pelo consumismo, pela diminuição da palavra, da recordação e de desqualificação das tradições, pela agressividade, intolerância, irritabilidade e violência em vez do diálogo e pelo alto investimento na cultura do corpo (p. 92-97).

 

No terceiro capítulo o autor dedica-se a discutir o tema da luxúria (p. 98-132). O luxurioso é tomado como aquele que padece de excessivo investimento libidinoso do corpo (cf. p. 97), é a “soberba do corpo” (p. 132). Frente a isso William Cesar Castilho Pereira busca mostrar quais são os impactos da dimensão do prazer na vida dos seres humanos. Para isso apresenta uma interrogação: como as concepções filosóficas clássicas greco-romanas, o cristianismo dos primeiros séculos, a ciência moderna e o momento atual veem a dimensão do prazer e a relação deste com a luxúria (p. 100-114). Discutem-se, nestas páginas, temas como a afetividade e sexualidade, o problema da pedofilia e efebofilia; o masculino e o feminino; a relação entre arte, pornografia e o modelo neoliberal (p. 114-132). Esclarece-se que “o luxurioso tem dificuldade de encontrar o outro, considerando um objeto para obter prazer mediante sedução, conquista e humilhação. O sedutor manifesta superioridade diante do seduzido, estado de alma típico do soberbo oposto ao enamorado, pois este reconhece o outro. Nas relações de trabalho este pecado é identificado pelo assédio sexual – em nome da posição do poder hierárquico o chefe impõe ao subordinado a submissão. O luxurioso busca o excessivo erotismo e não o amor: busca um instrumento de gozo, não o Outro. Ele pode infringir sofrimento e disso extrair o maior gozo” (p. 132).

 

No quarto capítulo abre-se ao estudo do pecado da avareza (p. 133-156). O avarento é "um atormentado pelo clamor perseverante de adquirir mais e mais. Sendo assim, cobiça, poder dinheiro, status, objetos variados. O avarento é excessivamente apegado a bens, pois seu medo é a proximidade da escassez do objeto” (p. 133). Diante disso o autor analisa a “dimensão sócio-histórica da civilização e a construção de modos de subjetivação a partir do significante dinheiro” (p. 18). Trazendo fragmentos da história econômica, de textos atribuídos a Moisés, Jean Baptiste PoquelinMolière, Karl Marx e Sigmund Freud discute-se o conceito de fetiche: o fetiche do avaro (p. 136-153), o “dinheiro passa a ser a imagem substitutiva do eu desamparado e do eu incompleto: substituto artificial ou prótese para sustentar o eu inseguro” (p. 153). Assim o “dinheiro como símbolo do afeto tem muito a dizer sobre as relações entre as pessoas e as diferentes patologias institucionais” (p. 18).

 

No quinto capítulo o autor ocupa-se com o pecado da ira (p. 157-177). É um dos pecados que “mais causa sofrimento, sendo também difícil de ser escondido” (p. 157), nomeando um “intenso ódio dirigido a si mesmo (autoagressividade) ou ao outro (heteroagressividade)” (p. 157). Diante das manifestações de ira (p. 158-159), o autor recorre ao ensinamento de Tomás de Aquino para fundamentar a questão da ira e da cólera (p. 159-164). Buscando esclarecer a pergunta por que iramos, salienta que várias teorias sobre o tema da ira e da agressividade ocupam boa parte das pesquisas em psicanálise, dentre elas a teoria do narcisismo, a formulação de Freud no texto Psicologia de massas e análise do eu e também a proposição de Freud para explicar a ambivalência entre o afeto e o ódio que se encontra na perspectiva ampliada do Complexo de Édipo, e no ensaio: Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (p. 164-175). O autor conclui este capítulo fazendo considerações sobre a agressividade enquanto indignação das minorias (p. 175-177), “a ira ou a agressividade deve ser, também considerada uma paixão. São da esma origem pulsional dos afetos, energia fundamental e indispensável ao enfrentamento dos obstáculos” (p. 176).

 

No sexto capítulo adentra-se no pecado da inveja enquanto “doença do olhar” (p. 18). O autor destaca que o primeiro sentimento de inveja se constitui enquanto sofrimento do olhar. O segundo é que o invejoso tem a convicção de que algo lhe foi roubado pelo outro e, perversamente, tem direito de reconquistar, com cólera, o que imagina ser seu (p. 179-181). O autor mostra como a inveja se torna um grande empecilho nas relações entre esposos/ esposas, pais e filhos, colegas e amigos: “a inveja aparece no interior das íntimas relações afetivas, dificilmente entre seres distantes. O invejoso elege seu próprio lugar de habitação ou trabalho como o pior lugar para se viver. Dai a máxima: amigos íntimos, rivais perigosos” (p. 181). O tema da inveja é analisado pelo autor também nos contos de fada (p. 184-186), na ótica da psicanálise (p. 181-186). Buscando entender a subjetividade do invejoso (p. 189-192), as páginas finais trazem a distinção entre a percepção de injustiça e o pecado da inveja (p. 192-195).

 

No sétimo capítulo o autor faz considerações sobre a gula como o pecado mais aceito no convívio social (p. 196-214). É o pecado que “ninguém tem vergonha de assumir” (p. 197). O autor analisa fragmentos da história da comida no mundo ocidental: desde a partilha dos alimentos com os deuses até as refeições self-service, fast-food (p. 198-208). Dialoga-se com os escritos de Sigmund Freud e do antropólogo René Girard para ressaltar os aspectos psicossociais da gula (p. 208-212). As reflexões deste capítulo trazem uma análise dos traços de identificação entre as formas de alimentação e o modelo neoliberal, sobretudo através dos sintomas de obesidade – sendo possível constatar também “uma ausência do outro e um transbordamento de prazer de comer sozinho – gozo autoerótico” (p. 214).

 

No oitavo capítulo se propõe e dedica-se ao estudo da preguiça (p. 215-235). Fazendo uma abordagem histórica, o autor destaca como os primeiros teólogos da Igreja percebiam a acídia, enquanto vazio da alma ou tédio profundo em face do bem espiritual (p. 215-218). Faz notar que “os primeiros teólogos da Igreja Católica compreendiam a indolência, a apatia e o desinteresse pelo nome de acídia, que significava o apagamento da vitalidade da alma em busca de deus. Alma triste e melancólica. Posteriormente, se assume o conceito leigo de preguiça enquanto algo moral, hábito do pobre indolente, resistente ao tempo rápido da produção mercantilista” (p. 233). William Cesar Castilho Pereira ressalta que a preguiça, com o tempo, é perpassada por várias classificações tais como: indolência, desânimo, síndrome de burnout, depressão, e por último, discriminações psíquicas, sociais, raciais e econômicas (p. 218 -227). Diante disso, o autor se pergunta: “os deprimidos são preguiçosos” (p. 227), destacando que o “deprimido sofre duplamente. Primeiro, pelo quadro físico e mental dos sintomas. Segundo, pelo olhar preconceituoso das instituições” (p. 228). Daí “os preguiçosos são todos os condenados da terra” (p. 235).

 

No último capítulo, intitulado “Confessionário e consultório” (p. 236-283), rastreando nas obras de Freud as referências e os enfoques que ele traz ao campo da origem da civilização, o drama entre a lei desejo e a função da religião (p. 238-254), o interesse do autor é analisar os espaços do confessionário e do consultório psicanalítico tomados como práticas de cuidado de si. Nestas páginas busca-se elencar suas diferenças e aspectos comuns e que demandas têm os sujeitos que se direcionam a estes espaços. Busca-se ainda responder se há entre eles aspectos comuns (p. 255-263). Concluindo este capítulo, apresenta-se um rico diálogo entre entrevistados: teólogos e psicanalistas sobre o tema do pecado, espaço do confessionário e do consultório psicanalítico (p. 264-283). Nas palavras conclusivas do autor, “o confessionário e o consultório psicanalítico constituem-se como lugar para a escuta do que é impossível dizer: os pecados capitais” (p. 283).

 

William Cesar Castilho Pereira se inscreve na tradição freudiana. Uma avaliação deste trabalho é feita pela psicanalista Maria Rita Kehl (p. 11-14). Classifica esta obra como um texto “muito vivo”. Como profissional e crítica da pretensão/onipotente de muitos psicanalistas de que todos os fenômenos sociais e, sobretudo, todas as expressões da cultura, estariam sujeitas as interpretações freudianas, o que segundo ela é um erro epistemológico, destaca que sua proposta é original e seu texto é fluente. A facilidade da leitura não barateia em nada o desenvolvimento de seu raciocínio. Em primeiro lugar, o autor não escreve como se a psicanálise, sozinha, fosse capaz de dar conta de todos os fenômenos da cultura. Por isso, Maria Rita Kehl ressalta que a psicanálise não se vale da ideia de pecado. É uma ciência laica. A liberdade, nesse caso, é do autor. Para isso, se vale de fontes bíblicas, além de referências históricas e filosóficas. Maria Rita faz menção às liberdades extra-acadêmicas a que William Castilho recorre como a de tomar depoimentos de amigos, correndo o risco de ser acusado de falta de rigor científico. No entanto, é preciso arriscar.

 

De nossa parte dizemos que esta obra traz uma excelente contribuição para uma ação pastoral consequente com os avanços de nosso tempo. Nossos teólogos pastoralistas não nos cansam de lembrar que a ação evangelizadora da Igreja e no mundo precisa ser pensada teologicamente, à luz da fé e a partir dos desafios da realidade, sob pena de ser inconsequente com o Evangelho e irrelevante para seu tempo. Não só isso. É preciso caminhar apoiado nas ciências, pois não se faz pastoral só com teologia – embora esta seja imprescindível, as ciências não podem ser dispensadas. Daí a necessidade de estabelecer uma relação interdisciplinar com aquelas ciências imprescindíveis para pensar a pastoral e agir pastoralmente, dialogando e sabendo ler a valiosa contribuição das ciências num mundo plural e cada vez mais diversificado. Neste sentido Willian Castilho presta um grande e pertinente serviço para a Igreja, ajudando os agentes de pastorais a relacionar os sete pecados capitais à luz da psicanálise, conjugando-os com os três âmbitos que a ação evangelizadora precisa tocar: a pessoa, a comunidade e a sociedade.

 

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