O que torna a mistagogia do beneditino Elmar Salmann original e atual é o fato de ele trabalhar sobretudo sobre as condições de possibilidade da fé na linguagem ritual e litúrgico-sacramental. Em outras palavras, é como se ele se dirigisse a um interlocutor cético e tentasse mostrar-lhe a plausibilidade de termos como “rito”, “liturgia”, “sacramento” e, mais em geral, o desejo de que o mistério celebrado na liturgia cristã seja verdadeiro.
Publicamos aqui o prefácio ao livro de Salmann intitulado “Metaphorein. Passaggi aperti tra vita e sacramento” [Metaphorein. Passagens abertas entre vida e sacramento], editado por Gianluca De Candia (Assis: Cittadella, 2021).
De Candia é teólogo italiano e professor da Universidade de Münster, na Alemanha. O artigo foi publicado em Settimana News, 28-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A memória é fecunda, se somos capazes de decifrar na recordação o presságio daquilo que ainda há de vir. Esse é o espírito que anima as “Lectiones Vagagginianae”. Trata-se de uma iniciativa desejada pelo Pontifício Ateneu Santo Anselmo para dar continuidade à reflexão de Cipriano Vagaggini (1909-1999), um dos pais tanto do Pontifício Instituto Litúrgico quanto da especialização dogmático-sacramental do Anselmianum.
Inauguradas em 2004 e 2005 com as intervenções de Luois-Marie Chauvet [1] e Eberhard Jüngel [2], as “Vagaggini Lectures” continuaram regularmente com as contribuições igualmente respeitáveis de Pierangelo Sequeri (2011) [3], Gerd Theissen (2012) [4], Georg Braulik (2013) [5], Jean-Yves Lacoste (2014) [6] e daqueles que intervieram no Congresso Internacional Católico-Luterano realizado em Roma em 2016 [7].
A tarefa de realizar a oitava edição das Lectiones, realizadas em Roma em 21 de novembro de 2018, foi confiada ao Pe. Elmar Salmann OSB, ex-professor do Ateneu romano. Como professor, porém, Salmann nunca lecionou teologia litúrgica, mas sim filosofia e teologia sistemática. Essa observação, que em princípio poderia ser completamente negligenciável, é, ao contrário, extremamente significativa.
De fato, ao convidar o teólogo alemão, o Pontifício Instituto Litúrgico e a Faculdade de Teologia pretenderam idealmente aceitar o convite que o Pe. Vagaggini, ainda no fim dos anos 1950, havia dirigido nas páginas de “Il senso teologico della liturgia” [O sentido teológico da liturgia]: “Podemos ter certeza de que, enquanto a questão das relações qualitativas entre liturgia e teologia sintética geral não for resolvida teoricamente e aplicada praticamente em grande escala, o movimento litúrgico e a sua eficácia prática não estarão fundados na rocha que, por si só, no fim das contas, pode garantir a sua estabilidade” [8].
Quando o beneditino escreveu isso em 1957, ninguém pensava em um sucessor de Pio XII, nem imaginava que este, depois, convocaria um Concílio Ecumênico. Eram poucos aqueles que, de fato, tentavam integrar a disciplina litúrgica no horizonte mais amplo da exegese, da tradição patrística, da teologia dogmática, da orientação espiritual e pastoral.
Esse programa, do qual justamente o Pe. Vagaginni foi o iniciador [9] e que o Movimento Litúrgico depois levou em frente, receberia finalmente o seu selo com o Concílio Vaticano II. Porém, a recepção da nova orientação teológica inaugurada pela constituição Sacrosantum Concilium é um trabalho que absolutamente não pode ser considerado concluído.
Por isso, nas últimas décadas, a pesquisa teológica realizada no Ateneu Santo Anselmo não só recolheu a exigência de inserir a ciência litúrgica no quadro mais geral da teologia sistemática, mas também contribuiu para estender o campo do aprofundamento litúrgico-sacramental.
De fato, a formação litúrgica oferecida hoje em Santo Anselmo apresenta um horizonte mais amplo que, ao lado dos estudo das fontes, apela a recursos provenientes de âmbitos disciplinares diversos, como as ciências humanas, a antropologia, a filosofia, as artes, a arquitetura.
Essa abordagem integral da teologia litúrgico-sacramental pode certamente ser qualificada como “sapiencial” [10], contanto que não se entenda essa fórmula como o sinal de um déficit de reflexão teórica, mas, pelo contrário, como a feliz união entre a mais rigorosa reflexão sistemática e as implicações essencialmente práticas que dela derivam e que se enquadram, com todo o direito, na mais nobre tradição monástica.
Um exemplo dessa teologia litúrgica de amplo fôlego, que sabe unir reflexão e prática, tradição e inovação, está agora nas mãos do leitor.
As lições reunidas neste livro representam uma espécie de “mistagogia” para o nosso tempo, em que Salmann, com aquele estilo que muitos aprenderam a apreciar, recorre à literatura, à fenomenologia da vida, à filosofia, aos recursos da teologia clássica e, mais recentemente, para propor uma introdução ao significado dos sacramentos e à sua relevância para a existência.
A abordagem proposta pelo autor que, como se verá, parte do visível para chegar ao invisível, tem o seu modelo de referência no método da catequese mistagógica. Muitos seriam os exemplos que poderiam ser citados a esse respeito. Limito-me a recordar aquilo que Teodoro de Mopsuéstia (350-428) escrevia sobre as razões pelas quais é preciso explicar aos neófitos aquilo que eles celebram:
“Cada sacramento é a indicação, por meio de sinais e símbolos, de realidades invisíveis e inefáveis. Uma revelação e uma explicação sobre tais realidades certamente são necessárias, se alguém quiser conhecer a força desses mistérios. Se aquilo que acontece efetivamente fosse apenas aquilo que se vê sendo feito, a explicação seria supérflua, porque bastaria a visão para nos mostrar as coisas que se verificam. Mas como no sacramento encontram-se sinais daquilo que vai acontecer ou daquilo que já aconteceu, é necessário um discurso que explique o sentido dos sinais e dos mistérios” [11].
A preocupação expressada por Teodoro, e com ele por muitos outros padres, é a de ajudar os fiéis a penetrarem cada vez mais profundamente no significado vital dos sinais sacramentais. Na minha opinião, esse também é o espírito que anima as lições que se seguem, mas com uma diferença muito interessante.
O que torna a mistagogia de Salmann original e atual é o fato de ele trabalhar sobretudo sobre as condições de possibilidade da fé na linguagem ritual e litúrgico-sacramental. Em outras palavras, é como se ele se dirigisse a um interlocutor cético, a um europeu culto do nosso tempo, e tentasse mostrar-lhe a plausibilidade de termos como “rito”, “liturgia”, “sacramento” e, mais em geral, o desejo de que o mistério celebrado na liturgia cristã seja verdadeiro.
Sob essa ótica, a sua proposta assume a forma de um caminho mental, que começa a partir de baixo e avança ao longo de quatro etapas em subida.
O que dá início à discussão é uma constatação, que eu reformulo aqui em forma de pergunta: por que o ser humano, entre todos os seres vivos, é o único que sente a exigência de incrustar em formas rituais a precariedade e a ambivalência da vida? Que sente a necessidade de recorrer aos registros da linguagem poética e simbólica? (“Da vida ao rito”).
Na segunda etapa, sob a lente de surpreendentes análises fenomenológicas, a vida se transforma progressivamente em “símbolo” de uma ulterioridade, e o rito, em “liturgia” (“Do rito à liturgia”).
A terceira lição representa, por assim dizer, o nó do cálice, ou seja, o lugar de inversão do andamento argumentativo: agora, não é mais a experiência, mas sim o mistério eucarístico que ilumina as diversas passagens e as diversas dimensões da vida humana. Porque, no evento da conversio eucarística ou da metabole, como ela é definida pelos Padres gregos, não ocorre apenas uma renovação da substância do pão e do vinho, mas sim da vida inteira do mundo, com as suas categorias de pensamento.
Nessa luz, a própria “carne” da experiência torna-se “sacramento”. Também sobre esse ponto, Salmann não está tão distante assim de Vagaggini, um dos primeiros a ter chamado a atenção para o papel da corporeidade na liturgia [12].
Na quarta lição, revela-se, enfim, qual é a lógica que sustentou toda a argumentação conduzida pelo relator. Trata-se daquilo que ele chama de metaphorein, ou seja, de uma dinâmica de passagem e metamorfose que subjaz à lógica da vida, da linguagem, do mistério cristão e da experiência litúrgico-sacramental.
Ao término desse itinerário, o leitor verá que aquilo que se realiza na liturgia é muito mais do que uma reevocação, muito mais do que uma projeção ou do que uma mera metáfora; é a realização, embora frágil, de uma promessa que todos sentimos que nos pertence profundamente, mas cujo cumprimento não está em nosso poder.
Nestas páginas, os teólogos profissionais apreciarão a originalidade da abordagem seguida pelo professor, a harmonia com que ele sabe fazer interagir as diferentes disciplinas, sabe reinterpretar a teologia clássica, como a de São Tomás, também à luz da teologia e da filosofia mais recentes, principalmente de origem alemã.
Não são poucas as vezes em que a inteligência teológica é aqui desafiada a aprofundar as suas categorias, a repensar as formas da linguagem ontológica, a ampliar a gama dos códigos litúrgicos para responder às condições culturais em mudança.
Os não adeptos aos trabalhos, por sua vez, terão a oportunidade de entrar em contato com o pensamento de uma das figuras mais originais da teologia italiana dos últimos 30 anos, ouvirão a sua voz (já que o livro é uma transcrição) e serão tomados pela mão e introduzidos, como em uma espécie de grande meditação, em uma visão cristã da liturgia.
Em apêndice ao volume, por fim, são relatados os dois discursos proferidos pelo Prof. Philippe Nouzille OSB e por mim, por ocasião do ato acadêmico em homenagem ao 70º aniversário natalício de Elmar Salmann, realizado no dia 22 de novembro de 2018 na Sala Capitular do Ateneu beneditino, no dia seguinte às VIII Lectiones Vagagginianae.
Que o presidente do Pontifício Instituto Litúrgico, Prof. Jordi-A. Piqué i Collado OSB, o decano da Faculdade de Teologia, Prof. Eduardo López-Tello García OSB, o decano da Faculdade de Filosofia, Prof. Philippe Nouzille OSB, e os colegas Prof. Ruberval Monteiro da Silva OSB, Prof. Andrea Grillo e Prof. Andrea De Santis saibam a minha gratidão pela cordial e generosa colaboração em ambos os eventos.
[1] L.M. Chauvet. Della Mediazione. Quattro studi di teologia sacramentaria fondamentale, trad. de Andrea Grillo. Assis: Cittadella, 2006.
[2] E. Jüngel. Essere sacramentale in prospettiva evangelica, trad. de Andrea De Santis. Assis: Cittadella, 2006.
[3] P. Sequeri. Ritrattazioni del simbolico. Logica dell’essere-performativo e teologia, editado por Cyprian Krause. Assis: Cittadella, 2012.
[4] G. Theissen. La dinamica rituale dei sacramenti nel cristianesimo primitivo. Da azioni simbolico-profetiche a riti misterici, trad. de Cyprian Krause. Assis: Cittadella, 2013.
[5] G. Braulik. L’esegesi anticotestamentaria e la liturgia. Nuovi sviluppi negli ultimi decenni, trad. de Cyprian Krause e Marinella Perroni. Assis: Cittadella, 2014.
[6] J.-Y. Lacoste. Recherches sur la parole. Louvain-la-Neuve: Peeters, 2015.
[7] Cf. Signs of Forgiveness, Paths of Conversion, Practice of Penance, editado por Theodor Dieter, Andrea Grillo e James Puglisi. Nova York: Peter Lang, 2017.
[8] C. Vagaggini. Il senso teologico della liturgia. Saggio di liturgia teologica generale, Roma, 1957, pp. 426-427.
[9] Magnus Löhrer atesta que Vagaggini, ainda nos primeiríssimos anos do seu magistério em Santo Anselmo, considerava a liturgia como parte da teologia sistemática e propunha uma “teologia da liturgia”: M. Löhrer, “Il modello gnostico-sapienziale della teologia. La prospettiva di base della metodologia teologica di C. Vagaggini”, in Lex orandi, lex credendi. Miscellanea in onore di P. Cipriano Vagaggini, editado por G. J. Békés e G. Farnedi, Studia Anselmiana 79, Roma, 1980, p. 23.
[10] Ibidem; ver também: E. Salmann, “Sullo stile di una teologia monastico-sapienziale: A. Stolz, C. Vagaggini, J. Leclercq”, in Il monachesimo tra eredità e aperture, editado por M. Bielawski e D. Hombergen, Studia Anselmiana (Analecta monastica 8), Roma, 2004, pp. 921-929.
[11] Teodoro de Mopsuéstia. Omelie catechetiche, 12, 2. Uma preciosa antologia de textos mistagógicos patrísticos é oferecida pelo monge Bose Luigi d’Ayala Valva: Entrare nei misteri di Cristo. Mistagogia della liturgia eucaristica attraverso i testi dei padri greci e bizantini, Introduzione, trad. de Luigi d’Ayala Valva, prefácio de Enzo Bianchi. Magnano: Edizioni Qiqajon, 2012.
[12] Cf. C. Vagaggini, Caro salutis est cardo. Corporeità, Eucaristia e liturgia (19661), Volume 243 de Vita Monastica, Camaldoli, 2009.