“Quando a peste passar”

Reprodução de parte da obra Os quatro Cavaleiros do Apocalipse, por Viktor Vasnetsov | Wikimedia Commons

24 Março 2021

 

“Assim, desde o cotidiano, na forma como tratamos a água, os animais e as plantas, a reciclagem do que usamos e do que podemos renunciar, até as empresas transnacionais e os governos, temos o inelutável ajuste de contas aos quatro cavaleiros do apocalipse se não nos ajustarmos à ecologia da vida sobre a terra” escreve Frei Luiz Carlos Susin, OFMCap, teólogo e professor da PUCRS.

 

Eis o artigo.

 

Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse que devastam e destroem corpos e cidades são a guerra, a peste, a fome e a morte – esta última, acompanhada pelo inferno (Cf. Ap 6, 1-7). E nós, tão modernos, que podemos ter considerado essas figuras como sendo apenas simbologias bíblicas ou medievais e de muito mau gosto, fomos surpreendidos agora pelo mais sorrateiro e invisível dos quatro cavaleiros, a peste.

A palavra é realmente de mau gosto, parece mais moderno e científico chamá-la de epidemia – etimologicamente, epidêmios é “o que cai sobre o povo”. No caso, pandemia, doença contagiosa e letal assaltando “todo o povo”, provocada por um vírus só visível em microscópio na forma irônica de coroa – o vírus corona – que infectou todos os rincões do planeta terra, a mais completa globalização que jamais houve na história deste mundo, escondendo atrás da máscara todos os sorrisos em todos os continentes e ilhas mais remotas. É o mais recente da série corona, e com capacidade de contágio mais veloz e multiplicador do que as recentes influenzas, além de complicações e sequelas mais sérias. Obrigou ao distanciamento físico e ao isolamento social, o que paralisou a economia e provocou uma crise econômica ainda incalculável, cujas consequências últimas é o agigantamento do cavaleiro seguinte, a fome, que provoca mais morte.

Os quatro cavaleiros marcham e ceifam unidos por toda a face da terra. Podemos dar-lhes nomes mais científicos: vírus, crise, óbitos, mas são os quatro de sempre. Em termos de análise, podemos ainda atualizar seus nomes: crise política, crise sanitária, crise econômica e finalmente a crise terminal – a morte. É algo exagerado, um apocalipse de dimensões impensáveis? Eles estão aí à nossa porta, falta desvendar melhor o que provocou o começo de sua marcha para diagnosticar melhor e encontrar algum remédio. E quem sabe voltar a festejar? “Peste, nunca mais!”

 

 

Neste tempo de ciência e secularização, ninguém está seriamente atribuindo a Deus, a um castigo divino, esse aparecimento atualizado da peste. Mas é contágio, deve vir de algum lugar, de alguém– de outro, do lugar do outro. A busca pela origem maligna inclina impenitentemente a culpar o outro”. Os soldados americanos levaram da região da Pensilvânia para a Europa, já no final da primeira grande guerra mundial, a “gripe espanhola” – e os espanhóis, que não tinham entrado na guerra, levaram a culpa. Nos anos cinquenta, depois da segunda guerra, com seus resíduos de guerra fria na ÁsiaCoreia, Vietnam, Camboja - veio cavalgando para o Ocidente a “gripe asiática” – eles, os colonizados, os “outros”, levaram a culpa. De lá, de novo, na movimentação pós-comunista, desde a década de noventa, nos vem a “gripe aviária”, a “gripe suína”. Da África, provavelmente em meio aos novos conflitos pós-coloniais de fronteiras, com o êxodo forçado e comunidades que o tinham sob controle, teria emergido o vírus do HIV, uma hipótese levada a sério no Ocidente. E o vírus ebola, só não causou maior pavor porque por ora foi contido na África, em países subsaarianos pobres. E agora novamente da Ásia: a gripe vem dos morcegos chineses, da China profunda – sempre o outro é o pretenso culpado.

 

 

Mas dá para reparar em todos estes casos sem exceção, que a guerra – o primeiro dos quatro cavaleiros – com a movimentação colonial e militar - cavalgou primeiro e levou na bagagem esta arma invisível e mortal. Foi a principal arma colonial no Novo Mundo do século XVI, que dizimou milhões incalculáveis de nativos, povos inteiros do Novo Mundo, seguidos de milhões de africanos negros por mar e em terra. Mas estamos agora metidos numa forma nova de guerra, uma guerra de quarta geração, que superou as três outras modalidades modernas, as guerras napoleônicas de campo demarcado, a guerra de trincheiras, como foi a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918, e a de tomada de cidades – a Segunda Grande Guerra. Agora envolve tecnologia, mercado, bolsas de valores, inteligência artificial, cultura e inclusive religião, de forma praticamente continuada e total, uma guerra híbrida e antiecológica. Esta é uma guerra longamente gestada por dentro das anteriores. O vírus acaba de fazer uma revelação tremenda, ainda pouco avaliada: desde a era industrial do século XIX, a peste anda de mãos dadas com uma guerra generalizada contra as demais criaturas não humanas que habitam ecologicamente este planeta.

 

A guerra é a verdade do ser” filosofava o pré-socrático Heráclito. Agora colhemos a verdade do antropoceno, essa época em que o ser humano adquiriu imenso poder de exploração, de apropriação e transformação do mundo seguindo o critério da “destruição criativa”, da crença de que vale a pena destruir uma vez que se tem capacidade de construir melhor. E assim passamos da conta. O planeta – um ser vivo e a única casa que temos como humanidade – apresenta muitos sintomas de doença. Os microrganismos sempre estiveram por aí, antes de nós, antes dos grandes animais e das plantas. Agora cada vez mais intensamente em tempos modernos, dão sinal de desequilíbrio ecológico, desequilíbrio de relações vitais, ou seja, enfermidade viral, que se transforma em peste, pandemia. Afinal, nosso prato exige a criação artificial e a morte de milhões de animais por dia, e os animais ditos selvagens em geral são obrigados a viver cada vez mais perto uns dos outros e de nós por migrarem de seus ambientes destruídos. Os microrganismos, que não apareciam, são também afetados, e agora mostram sua força capaz de desencadear o caos e a morte. Eles se dirigem a nós: de anjos cuidadores da terra, filhos do primogênito Caim, o “portador de força divina” para cuidar de seu irmão menor, Abel, o “frágil”, nos tornamos assassinos, o satã da terra, um poder destrutivo, que precisa ser destruído em favor de uma terra saudável para as demais espécies. Os cavaleiros do apocalipse marcham em nossa direção.

 

O que podemos aprender e ainda redimir na iminência de um caos sem volta?

 

Em primeiro lugar, o vírus invisível, mas poderoso, nos obrigou a “desacelerar”. Tivemos que travar e ficar em casa. É a possibilidade de refletirmos sobre nossas correrias, sobre o tipo de progresso que realmente vale a pena.

 

Em segundo lugar, o vírus tornou visíveis as massas populacionais mais vulneráveis e em situação de perigo: levam mais facilmente adiante o contágio porque não têm como se proteger nem se isolar. Em diversas capitais brasileiras lotaram as entradas de hospitais. Vieram à luz diante de quem não tem olhos para elas. E uma enorme onda de solidariedade, de energia primária em defesa da vida, ou seja, de comida, simbolizada na onda de cestas básicas e “quentinhas”, estabeleceu um novo modelo de “correria”, a da compaixão e da solidariedade, da busca de um mínimo de equilíbrio de relações, começando a tratar justamente o ponto em que a doença está – as relações desequilibradas. Essa forma positiva e saudável de relação pode e deve ser estendida às demais criaturas, com respeito e sobriedade de utilização, com novas formas de cultivo ecológico.

 

Em terceiro lugar, o vírus obrigou ao socorro público daqueles que não conseguem se manter, em contraste com os afortunados que acumulam recursos, bens e dinheiro de forma desvairada – uns precisariam de diversas vidas para usufruir tudo o que acumulam enquanto metade da população da terra está continuamente, diariamente, ameaçada pelos cavaleiros da fome e da morte precoce.

 

 

Enfim, em quarto lugar, se quisermos ter futuro na terra, o vírus nos ensinou que é necessário renunciar esta guerra total e contínua que desequilibra os povos, as classes, as comunidades humanas, mas agora também toda a ecologia, desde os vírus invisíveis até os grandes animais selvagens ou criados de forma massiva e desastrosa, que causam enormes sofrimentos e novos desequilíbrios. Pacificação, justiça animal e ecológica importam. Como ensinou Teilhard de Chardin há 60 anos: passou o tempo belicoso das nações - em guerra por soberania -, é tempo de cuidarmos juntos da terra. Agora precisamos acrescentar urgentemente: Passou o tempo do mercado global sem limites e sem leis globais mais eficazes que regulem esta ânsia que devora a terra transformando tudo em commodity.

 

Assim, desde o cotidiano, na forma como tratamos a água, os animais e as plantas, a reciclagem do que usamos e do que podemos renunciar, até as empresas transnacionais e os governos, temos o inelutável ajuste de contas aos quatro cavaleiros do apocalipse se não nos ajustarmos à ecologia da vida sobre a terra. Não só a multiplicação de movimentos sociais de caráter ecológico, mas, inclusive com a inspiração e o entusiasmo de Francisco como um verdadeiro insumo, uma nova economia e uma nova educação serão decisivas para um novo modelo de civilização. No entanto, segundo uma lição de Gramsci, enquanto um mundo já velho persiste na demora em morrer e um novo mundo tarda a nascer, como em um lusco-fusco onde não se sabe direito se é crepúsculo ou amanhecer, o tempo é de monstros. A peste vai acalmar, ainda há tempo, mas, como advertiu Jesus, não sabemos nem o dia e nem a hora.

 

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