Partidários e inimigos das vacinas: um olhar retrospectivo

Ilustração "The Wonderful Effects of the New Inoculation". (Foto: Wikimedia Commons)

12 Janeiro 2021

"Sempre que se trata de evitar o perigo de uma doença grave para o indivíduo ou a sociedade, desde que, segundo a concepção atual da medicina, existam sérias probabilidades de efeito útil e na ausência de dano grave ao indivíduo, deve-se advertir a obrigação moral de se vacinar", escreve Domenico Marrone, pároco, professor, doutor em Teologia e diretor do Istituto Superiore di Scienze Religiose S. Nicola, il Pellegrino, da Facoltà Teologica Pugliese, em Bari, Itália, em artigo publicado por Settimana News, 11-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Desde o surgimento da primeira vacina, no século XVIII, por obra de Jenner, assim chamada por se originar do vírus da varíola, a possibilidade de imunizar a população contra doenças transmissíveis sempre trouxe consigo expectativas de bem-estar sanitário e anátemas de vários tipos.

 

Nesse sentido, uma pequena digressão histórica pode ser útil, referente às primeiras décadas do início do uso das vacinas.

 

Um debate que continua até os nossos dias

 

A primeira experiência feita em doenças contagiosas com o intuito de induzir imunidade contra a doença em indivíduos, deve-se ao médico inglês Jenner que, após 23 anos de estudo, constatou com segurança que a infecção local por varíola em bovinos, embora ocorrendo sem gravidade, imuniza o ser humano contra a varíola humana. Ele inoculou pela primeira vez em seu filho, em 1789, a linfa proveniente de pústulas suínas, tornando-o imune às inoculações subsequentes (1791-1792) de varíola; em 14 de maio de 1796, ele inoculou uma criança com pus da varíola (cow-pox) que se desenvolveu nas mãos de uma leiteira; dois meses depois, a criança resultou vacinada e refratária à inoculação de varíola humana.

 

A vacinação assim inventada difundiu-se deixando de lado todos os meios anteriormente utilizados, como a "variolação" (inoculação da linfa da pústula da varíola em indivíduos com formas brandas) ou a introdução de crostas de varíola nas narinas ou até mesmo o hábito de usar roupas de pessoas com varíola [1].

 

A inoculação ou "enxerto" em doses muito pequenas de varíola, no caso humana por ser retirada de pústulas de doentes leves ou em processo de recuperação ("variolização"), para prevenir uma doença devastadora, é patrocinada por grandes intelectuais milaneses de prestígio, incluindo Beccaria, Verri, que a define como uma "prática muito vantajosa" [2], e o "colega" poeta satírico Parini, ao mesmo tempo católico fervoroso (abade) e iluminista, que na prolixa e ilegível ode L'innesto (1765) critica o fatalismo e a falta de prevenção de quem acredita esse e todo mal inelutável: "Ó arte débil, ó escolta mal segura / que espera o mal e não o previne com prudência".

 

A inoculação da varíola foi até disposta pelo Papa Bento XIV (Prospero Lambertini), que tem todo o tempo - morreria em 1758 - para participar com posição favorável, mas prudente, da grande disputa sobre a inoculação que inflamava a Europa naqueles anos, e especialmente a Itália. Sobre o tema segue pessoalmente seu teólogo de confiança, o grande iluminista católico Ludovico Antonio Muratori.

 

“Se eu fosse imperador ou rei - escreve Bento XIV ao médico Bianchi, líder dos católicos antivacinais - a inoculação, pelas vantagens que vejo, seria agora permitida nos meus estados. Mas não quero escandalizar os tímidos e os fracos”.

 

Os jesuítas, sempre atentos à ciência, revisam favoravelmente o relatório do italiano Jacopo Pilarino, o primeiro médico no mundo que pratica (1701), estuda e publica (1715) o método de inoculação em relatório científico (ver abaixo) , e imediatamente, precisamente em 1715, começam a experimentá-la nos indígenas em suas missões na América do Sul. Aliás, como o enxerto de varíola vem do Oriente, eles fazem ironia sobre os católicos anti-enxerto: "Quase parece que eles temem que com a varíola seja inoculado até o islamismo! " Os jesuítas aprovam, mas depois se retiram do debate: espinhoso demais.

 

A inclusão de profilaxias revolucionárias como a vacina na medicina e na moral tradicional da época provoca um debate que ainda hoje se mantém aceso.

 

A Igreja está dividida e incerta. Dois lados se enfrentam: inoculistas e anti-inoculistas. Grande parte do clero e do povo são contrários, até mesmo na França, que é mais racionalista e laica que a Itália. Padres e devotos estão até convencidos de que “administrar a um ser humano uma doença que talvez não lhe ocorresse naturalmente é tentar a Deus”. Uma nova forma de superstição, em suma. Os párocos bretões reunidos em assembleia falam de um "crime contra a lei divina".

 

Mesmo médicos católicos, como Philippe Hecquet [3] que em Razões para duvidar da inoculação (1722), argumenta que se trata de uma prática reprovável, contrária ao poder divino, que não tem nada de médico e se assemelha à magia.

 

Com a vacina, ou seja, com o vírus tirado de vacas, as reações dos tradicionalistas são exacerbadas. Sangue de animais misturado com o de homens? Não mesmo! Alguns filósofos moralistas leigos a definem "bestialidade". Assim, a "sacralidade" do Homem é minada, lastimam alguns teólogos.

 

Mas o bispo anglicano de Worcester em 1752 se declara a favor do enxerto, causando alvoroço. Na própria Roma católica, não só alguns médicos são favoráveis (1754), mas o teólogo agostiniano Gian Lorenzo Berti em 1762, com outros dois teólogos eruditos. Francesco R. Adami e Gaetano Veraci, publica em Pisa um importante documento ético em defesa da inoculação [4].

 

Um importante documento teológico-moral

 

É interessante repercorrer as páginas da cartilha citada para destacar a abordagem metodológica que eu não hesitaria em chamar de "científica", no sentido contemporâneo do termo adotado nas disciplinas teológicas.

 

O raciocínio, embora proceda segundo a metodologia típica dos estudos da casuística, caracteriza-se por elementos que parecem antecipar os critérios do procedimento científico: o fundamento escritural, a referência às ciências profanas - neste caso à medicina -, a enunciação dos critérios morais.

 

A argumentação parte de um quesito, de acordo com a abordagem da casuística clássica: “Pergunta-se se seria legítimo provocar a varíola a uma criatura, apesar do caso (embora remoto) de que ela possa morrer dela, e apesar das outras evento em que tal Criatura pudesse estar livre de tal doença; e junto com esta questão acredita-se que se possa levantar a objeção, isto é, que não são desproporcionalmente mais numerosos os casos (sejam mesmo cem para um), em que morreriam de varíola, crianças e adultos, devido à inoculação"[5].

 

O primeiro autor, Giovan Lorenzo Berti, prossegue em sua exposição referindo-se antes de tudo ao fundamento bíblico. Refere-se a Sr 38,1-8 e afirma que “ensinados, pois, por este documento divino, certamente seríamos imprudentes, mas avisados, se rejeitássemos os medicamentos, e os remédios julgados oportunos e benéficos por algum sapientíssimo médico”[6].

 

O autor também deseja esclarecer que “deveríamos aguardar a opinião não da grande multidão dos que exercem a medicina, mas dos poucos que a praticam com o louvor de sua doutrina, e em benefício dos Outros, e que têm plena cognição e reiterada experiência certíssima de tal matéria, isto é, da enxertia da varíola"[7].

 

Depois de afirmar a necessidade de recorrer a médicos especialistas com experiência e competência comprovadas, o autor faz uma pausa para ressaltar um dos princípios fundamentais da ética médica: primum non nocere: “E creio que não há quem não saiba, que eles (os médicos) violam o mandamento divino, e se tornam réus de grave culpa, sempre que fazem mal ao doente confiado aos seus cuidados, e prescrevem remédios que podem matá-los, ou agravar consideravelmente a sua doença, ainda que resultasse acidentalmente a saúde e a melhora dos próprios enfermos. E o que deve ser particularmente notado, é que quando surge a dúvida, se um remédio pode beneficiar o doente ou prejudicar (o que não vejo como não poderia, e não se deveria afirmar da mesma forma de um remédio preservativo) o médico estaria muito errado ao administrá-lo”[8].

 

Berti também considera a triste eventualidade da morte após a inoculação da vacina e chega a esta conclusão: “Eu digo que quando apenas um contra cem tenha morrido após a inoculação, e os outros cem sobrevivido, a morte não deve ser atribuída à própria inoculação, mas a outras causas desconexas e supervenientes” [9].

 

O risco é um componente inevitável em todo ato humano. Especificamente, na saúde não é possível pensar em sua eliminação completa. Assim, perante a consciência de que não é possível ser médico excluindo e eliminando os riscos, surge o problema de gerir da melhor forma a profissão, assumindo a responsabilidade e tomando decisões, quando possível com base em critérios científicos, mas sempre com base em considerações éticas.

 

Berti não deixa de apontar como a frente dos inimigos da vacina aduzem razões que, como veremos, ainda estão em voga nas confissões religiosas contemporâneas: “No entanto, a mera menção desta inoculação partiu dos circassianos, dos turcos, do mar Cáspio, e é praticada na América, na Tartária, e ainda na Inglaterra, gera neles não sei que repulsa, o que nos faz parecer abominável, tanto mais porque na própria Inglaterra alguns, e até mesmo um do púlpito, declararam-na uma superstição mortal e inventada pelo Diabo” [10].

 

Ele não hesita em afirmar que: “Portanto, deve ser considerada lícita e proveitosa; e também é possível, falando da Varíola, dar a quem ama a vida de si mesmo e de seus Filhos aquela lembrança do Sábio Eclesiástico [11] 18, antes que surja a enfermidade, que enfraquece ou tira o vigor, usa o medicamento"[12].

 

Portanto, é "bom se precaver contra o feroz ataque maligno daquela (varíola), pois há uma probabilidade muito grande de um mal, certamente futuro, ou quase certamente" [13].

 

Portanto, "deduzimos que pertence à prudência, à humanidade, à piedade e ao benefício do amor próprio, buscar diligentemente aqueles meios que o grande Criador todo-poderoso preparou como preventivos específicos para as doenças mais comuns e funestas, e que no gênero de tais preventivos deve-se contar aqueles que são prescritos de comum acordo e afirmação pelos mestres da arte dos médicos competentes, desinteressados e partidários do bem público"[14] .

 

O segundo teólogo, Francesco Raimondi Adami, está na mesma linha de Berti. De fato, afirma: "A Lei Cristã nos ensina a receber tranquilamente da mão de Deus as doenças pelas quais somos afeitos, mas não nos proíbe de nos proteger contra elas com remédios oportunos, e preveni-las com os segredos da arte" [15 ] Portanto, o médico “fará uma ação útil, prudente e caridosa, prevenindo o perigo natural” [16].

 

Raimondi, com uma pergunta retórica, pergunta-se: “O enxerto não deveria ser proposto como um remédio, para o qual os princípios nos convidam, não menos que uma moral cristã, do que uma sã política? E não menos condenável seria a obstinação daqueles que, contra as evidências, talvez ainda em sua consciência persistem em rejeitar o Enxerto”[17].

 

Por fim, o terceiro teólogo que se expressa na consulta, Gaetano Veraci, não hesita em afirmar que “a religião participa nessa operação, que parece ser tão útil para a sociedade humana e para a nossa conservação” [18].

 

Afirma também, contra os inimigos do Enxerto: “Se é difícil provar que o Enxerto é contra a Moral natural, também será difícil provar que ofende a Religião” [19].

 

Veraci continua a sua reflexão, sempre seguindo o enfoque casuístico, afirmando: “Pergunta-se, se em caso de necessidade que tivesse que ser determinada, João ofende mais a caridade ou a justiça, que expõe José a um remoto perigo de perder a vida para tirá-lo de um mais próximo; ou se Antônio, que abandona José a um perigo próximo, quando poderia colocá-lo em outro mais remoto. Acredito que qualquer um, seja quem for, certamente se decidirá a favor de João”[20].

 

Não podemos ignorar que, para além da moral suasion, da persuasão moral com autoridade, que esses teólogos propuseram para orientar escolhas e comportamentos em relação à vacina, toda a Igreja em substância, dividida entre os não e os sim enfáticos, entre os partidários do enxerto e os inimigos do enxerto, parece suspender o juízo e aguardar a evolução científica ao longo de todo o século XVII.

 

Leão XII: papa antivacina?

 

A vacinação foi tornada obrigatória nos Estados Papais em 20 de junho de 1822, dois anos após a eclosão da enésima epidemia de varíola, pelo Papa Pio VII, Barnaba Niccolò Chiaramonti, provavelmente devido às pressões ou à opinião, respeitadíssima, do influente Conde Monaldo. Leopardi, Gonfaloniere de Recanati e pai do poeta Giacomo.

 

De fato, o poeta Giacomo Leopardi foi um dos primeiros a ser vacinado na região das Marche por iniciativa de seu pai Monaldo, famoso católico reacionário muito respeitado em Roma e prefeito papal de Recanati, mas um propagandista convicto da vacina, que acabou impondo-a em sua própria cidade e nas Marche.

 

Leão XII é definido como o "Papa antivacina", alegando que teria se oposto à vacina contra a varíola e se tornado responsável pela morte de milhares de pessoas.

 

O fato costuma ser acompanhada desta frase: “Quem se deixa vacinar deixa de ser filho de Deus. A varíola é um castigo disposto por Deus, a vacinação é um desafio contra o céu”. É uma frase claramente absurda, não é por acaso que essa citação carece de fonte bibliográfica e nenhum texto de Leão XII a relata.

 

De acordo com Donald J. Keefe [21], nenhum documento oficial relata tais afirmações.

 

Hoje, porém, sabemos por fontes oficiais da época que o Papa Leão se limitou a retirar a obrigatoriedade da vacinação, mesmo mantendo seu caráter gratuito: “Pio VII então reinante, que por tempo a havia adotado seus estados, convencido pela experiência, das admiráveis vantagens que certamente dela se obtêm, renovou os regulamentos (...) Seu sucessor Leão XII, numa circular legislativa de 15 de setembro de 1824 (...) revogou (...) qualquer disposição a esse respeito, deixando a vacinação livre a quem quisesse valer-se dela, sem afastar a obrigação dos médicos e cirurgiões de ministra-la gratuitamente a todos os que a solicitassem; sendo este, segundo a frase daquela circular, o tratamento e a prevenção de uma doença que, como todas as outras, eram obrigados a reparar”[22].

 

De fato, de acordo com a opinião pública da época, a vacinação era perigosa, pois utilizava material humano e não bovino, e não eram raras as mortes em decorrência de "vacinas” contaminadas. Durante grande parte do século XIX, de fato, muitos expoentes famosos da ciência e da cultura se opuseram a essas (então novas) práticas, consideradas inúteis ou prejudiciais. Entre outros, personagens como o filósofo alemão Immanuel Kant e seu colega inglês Herbert Spencer e Charles Darwin foram hostis à vacinação contra a varíola, pois negavam a sua eficácia.

 

É importante notar que a vacina antivariólica na época não era obrigatória em muitos estados europeus, incluindo o Reino da Sardenha (posteriormente Reino da Itália), onde passou a ser obrigatória apenas em 1859 [23]. A título de comparação, a Inglaterra ofereceu vacinação gratuita em 1840 e tornou-a obrigatória em 1853 [24].

 

Deve-se notar que Leão XII em 1824 concedeu a Luigi Sacco a ordem equestre da Espora de Ouro [25] como agradecimento pelo envio de 108 exemplares de seu livro sobre vacinação, que foram distribuídos nas repartições de saúde do Estado pontifício. Esse fato foi descoberto por A.P. Gaeta em uma correspondência inédita que encontrou no Arquivo Secreto do Vaticano [26]. Comentando essa descoberta, Maria Luisa Righini Bonelli observa que “o que alguns quiseram afirmar não parece proceder, a saber, que Leão XII teria se mostrado contrário ao que Pio VII havia feito e especialmente o Cardeal Consalvi, promotor do edital emitido em 1822 a favor da vacinação" [27].

 

Aliás, considerando a última expressão da Circular Legislativa de 15 de setembro de 1824, o Papa Leão XII fala claramente. Se fosse realmente um acirrado antivacina, certamente não teria acrescentado: "obrigação de reparar". Por que, de fato, atribuir aos médicos “a obrigação de reparar” essa doença dada por Deus, como diziam padres e teólogos antivacinistas, ao mesmo tempo em que reconhecia a vacina como “a cura e a prevenção”, a esse ponto únicos? Quase se poderia pensar que o Papa Leão, em sua disposição, na realidade tenha ficado sobre o muro, tenha diplomaticamente mediado entre duas posições presentes na Igreja. Claro, se a análise lógica não for uma opinião, a última frase pode sugerir uma posição favorável.

 

Os inimigos das vacinas: uma frente ainda aberta

 

Já em 1798, quando Jenner publicou os resultados do uso da varíola bovina para a imunização de uma criança, informando assim o mundo da invenção da vacina contra a varíola, foi fundada nos Estados Unidos a "Sociedade dos anti Vacinadores" [28]. Eles argumentavam que as vacinas deveriam ser rejeitadas porque acreditavam que interferissem na obra de Deus [29].

 

A recusa de vacinas, mais do que por motivos científicos, baseia-se assim em razões “fideísticas”, por vezes até “religiosas” [30]. Quem se apoia em um tipo de homeopatia "fundamentalista" motiva sua aversão às vacinas referindo-se à alma que seria afastada do corpo devido à inserção da agulha na pele; a medicina steineriana, que é fruto das teorias da sociedade antroposófica, listada pelo Cesnur (Centro de Estudos sobre Novas Religiões) entre os "grupos teosóficos e pós-teosóficos" [31], olha com desconfiança as vacinas porque limitariam o crescimento espiritual do indivíduo.

 

Alguns grupos religiosos consideram a recusa da vacinação parte de suas crenças. Dentre eles, o mais conhecido é a igreja cientista, ou Christian science, fundada nos Estados Unidos em 1892 por Mary Baker Eddy [32]. Seus seguidores acreditam que as doenças podem e devem ser curadas contando exclusivamente com a oração.

 

Uma "associação cultural", denominada "La Biolca", afirma reportar-se às teorias steinerianas sobre nutrição e saúde, assume o objetivo visa sensibilizar católicos, judeus, muçulmanos e testemunhas de Jeová sobre as substâncias que estariam contidas nas vacinas e que cada um deles, se fosse um bom crente, teria que se recusar a consumir. As vacinas, de acordo com esta tese, conteriam células de fetos abortados [33] e derivados de animais, como sangue bovino e gelatina de porco [34].

 

É necessário especificar que na doutrina das principais religiões do mundo não há proibição alguma em relação às vacinas, sejam ou não obrigatórias. Ainda assim, pode acontecer que a recusa em se submeter, ou sujeitar os próprios filhos, a vacinas seja baseada em argumentos religiosos, que um estudo dividiu em três categorias: as vacinas violariam a proibição de matar, violariam alguns preceitos alimentares religiosos, interfeririam com a ordem natural das coisas dispostas por Deus [35].

 

Ao primeiro conjunto de argumentos contra as vacinas pertencem as perplexidades apresentadas por alguns grupos ligados ao Jainismo, uma religião oriental que proíbe matar qualquer ser vivo, mesmo bactérias ou, no nosso caso, vírus [36]. A vacinação deveria, portanto, ser considerada ilegal, pois comporta uma ação violenta contra os vírus, que são seres vivos.

 

Mais complexas são as questões relacionadas à presença de substâncias alimentares que algumas religiões consideram ilícitas. Estas são especialmente os excipientes de origem suína que são utilizados na preparação de algumas vacinas. Como se sabe, as religiões judaica e islâmica consideram o porco um animal impuro e, portanto, proíbem comer sua carne e seus derivados.

 

Neste caso, os estudiosos judeus consideram prevalente a intenção de salvar a vida, pessoal e dos outros, como o cumprimento de uma ordem divina. Ressalta-se que a proibição da ingestão de alimentos não kosher não se aplica às vacinas que são, geralmente, injetadas pela pele e que, em todo caso, todos os medicamentos que servem para salvar vidas são lícitos, ainda que não sejam kosher. Estudiosos islâmicos que aplicam o princípio da transformação à questão, segundo o qual um produto, originalmente impuro, pode se tornar halal, também assumem posições semelhantes.

 

O direito islâmico, portanto, permite a administração de vacinas, mesmo que contenham substâncias originalmente haram, e isso com base em três princípios: o direito de proteger a vida, o dever de prevenir o perigo e a proteção do interesse público. A prevenção de doenças por meio de vacinas está de acordo com a lei divina e, em algumas circunstâncias, é necessária, por exemplo, por ocasião da peregrinação anual a Meca (hajj), durante a qual a vacinação é útil para prevenir a propagação de epidemias entre a grande massa de peregrinos que afluem para os lugares sagrados. No entanto, em algumas comunidades islâmicas, houve episódios de recusa de vacinação, mesmo de forma violenta [37].

 

No âmbito cristão, além da citada igreja cientista, são absolutamente contrários à vacinação os Amish, grupo que nasce como uma corrente radical do anabatismo, que rejeita todos os aspectos da modernidade, inclusive o uso de medicamentos e, portanto, das vacinas [38]. Algumas congregações reformadas holandesas acreditam que os fiéis devem confiar exclusivamente em Deus, e que ser vacinado constitui falta de fé na providência divina: será o próprio Deus, caso o julgue necessário, a imunizar seus fiéis.

 

Outras pequenas denominações cristãs, como Faith Tabernacle, a Church of the First Born, a Faith Assembly e a End Time Ministries, também se alinham a essas mesmas posições, que proíbem seus fiéis de usar qualquer tipo de fármaco. No passado, as Testemunhas de Jeová também haviam se pronunciado contra a vacinação, mas desde 1952 sua atitude mudou e hoje as vacinas são aceitas. Os grupos religiosos que proíbem a vacinação de seus membros estão presentes principalmente na sociedade estadunidense.

 

Para concluir

 

Ao longo dos séculos, a vacinação sempre sofreu novas modificações e aperfeiçoamentos, geralmente provando ser sempre muito útil, embora ocasionalmente tenha encontrado críticos ferozes, especialmente no mundo anglo-saxão. A partir dessa primeira experiência, o novo meio de tratamento foi generalizado a outras doenças infecciosas, ainda hoje não destronado nem mesmo pela antibioticoterapia e o termo "vacinação" assumiu de forma mais universal o valor de produção em um indivíduo de um estado de imunidade pela introdução de antígenos ou toxinas microbianas dotada da capacidade de estimular a formação de substâncias de defesa no indivíduo, ou seja, anticorpos e antitoxinas.

 

É praticada para muitas doenças, tanto para fins preventivos como terapêuticos. Os resultados curativos, embora muitas vezes muito bons, não têm um valor absoluto para todas as doenças infecciosas; por outro lado, para alguns delas, a obrigação legal foi imposta a grandes massas de indivíduos, perfilando-se assim problemas de valor social e médico-moral. Por exemplo, na Itália existem vacinas obrigatórias; as normas internacionais de profilaxia exigem vacinação para algumas doenças em indivíduos que viajam de um país para outro; algumas profissões requerem vacinas preventivas obrigatórias.

 

Do ponto de vista médico-moral, pode-se discutir o direito do Estado de interferir na liberdade do indivíduo, obrigando-o a se submeter a uma vacinação e seu dever de realizá-la ou de se oferecer espontaneamente. Esses problemas continuam a ser discutidos.

 

Pessoalmente, creio que devemos falar em obrigação moral, antes mesmo que de obrigação legal e, portanto, ainda mais vinculante para a consciência do indivíduo. Sempre que se trata de evitar o perigo de uma doença grave para o indivíduo ou a sociedade, desde que, segundo a concepção atual da medicina, existam sérias probabilidades de efeito útil e na ausência de dano grave ao indivíduo, deve-se advertir a obrigação moral de se vacinar. Isso está de acordo com os ditames da moral, que o indivíduo é obrigado a renunciar a parte de seu bem pelo da comunidade, desde que não se trate do perigo de sua vida ou de grave comprometimento de suas funções essenciais.

 

Notas:

[1] Cfr. E. Tognotti, Vaccinare i bambini: tra obbligo e persuasione. Il caso dell’Italia, FrancoAngeli, Milano 2020.

[2] “Trata-se de deixar perecer a décima parte da raça humana ou de conservar a vida”, escreve ele em um longo artigo “Sobre o enxerto de varíola” (Il Caffè, n.34 e 38,1766). Disponível aqui.

[3] Philippe Hecquet (11 de fevereiro de 1661 - 11 de abril de 1737) foi um médico francês e ativista do vegetarianismo.

[4] Raccolta di osservazioni e ragionamenti teologici e medici sopra la necessità dell’innesto del vaiolo composti da Giovanni Lami, Giovanni Lorenzo Berti, Raimondi Adami, Gaetano Veraci, con l’aggiunta di ampie Annotazioni di Giovanni Calvi, Stamperia di Agostino Pizzorno, Pisa 1766,

[5] Ivi, p. 6-7.

[6] Ivi, 13-14.

[7] Ivi, 14.

[8] Ivi, 16.

[9] Ivi, p. 37.

[10] Ivi, 47.

[11] A referência é ao livro do Eclesiástico 18,19: “Cuide-se para não ficar doente”.

[12] Coleta de observações e raciocínios teológicos e médicos sobre a necessidade de enxerto de varíola composta por Giovanni Lami, Giovanni Lorenzo Berti, Raimondi Adami, Gaetano Veraci, com acréscimo de amplas anotações de Giovanni Calvi, Stamperia di Agostino Pizzorno, Pisa 1766, p. 60-61.

[13] Ivi, 61.

[14] Ivi, p. 62.

[15] Ivi, p. 82.

[16] Ivi, p. 84.

[17] Ivi, p. 102.

[18] Ivi, p. 105.

[19] Ivi, p. 105.

[20] Ivi, p. 110.

[21] KEEFE DJ. Tracking a Footnote, Fellowship of Catholic Scholars Quarterly, vol.9, n.4, p 5-6, setembro 1986. Disponível aqui.

[22] G. Tommasini, Raccolta completa delle opere mediche, vol. VII, Tipografia dell’Olmo e Tiocchi, Bologna 1863, Appemdice pp. 20-23.

[23] Cf. S. Tafuri, Storia dell’Obbligo Vaccinale (PDF), em uniba.it.

[24] Y.M. Bercé – J.C. Otteni, Pratique de la vaccination antivariolique dans le Provinces de l’Etat pontifical au XIXe siecle. Remarques sur le supposé interdit vaccinal de Léon XII, in “Revue d’histoire ecclésiastique”, vol. 103, n. 2, 2008, p. 448-466.

[25] Luigi Sacco (Varese, 9 março 1769 – Milano, 26 dezembro 1836) foi um médico italiano, pioneiro da vacinação antivariólica.

[26] A. P. Gaeta, Carteggio inedito di Luigi Sacco con le Segreterie di Stato di Pio VII e di Leone XII (1816-1824), in “Castalia”, vol. 2, 1946, p. 215.

[27] M. L. Righini Bonelli, Rivista di storia delle scienze mediche e naturali, vol. 35-37, 1946, p. 78.

[28] Cfr. M. L. Lo Giacco, Il rifiuto delle vaccinazioni obbligatorie per motivi di coscienza. Spunti di comparazione, disponível aqui.

[29] Cfr. G. Tripodi, Il rifiuto delle vaccinazioni: mito e realtà nei movimenti antivaccinali, in “Rivista Gaslini”, 2005, n. 3, p. 74.

[30] Cfr. P.L. Lopalco, Vaccinazioni. Frodi, fedi ed evidenze scientifiche, disponível aqui, 22 outubro 2012, p. 13.

[31] Cfr. disponível aqui.

[32] Cfr. disponível aqui. Corrente metafísica e os movimentos cristãos de cura/a christian science.

[33] A questão da preparação das vacinas e da compatibilidade das substâncias nelas contidas com os princípios religiosos, de modo especial católicos, ligados à presença de células de cultura originariamente retiradas de fetos abortados voluntariamente, exigiria um contributo de reflexão à parte.

[34] Cf. disponível aqui e salute/ccosa dicono la chiesa cattolica lislam il giudaismo e i testimoni di geova/.

[35] Cfr. J.D. G Rabenstein, What the World’s religions teach, applied to vaccines and immune globulines, in Vaccine, 31 (2013), n. 16, p. 2011 2013.

[36] O jainismo é uma religião do subcontinente indiano considerada heterodoxa pelo hinduísmo, com a qual, no entanto, compartilha alguns aspectos, como a não violência, que também afeta as regras alimentares.

[37] Na Nigéria, Afeganistão e Paquistão, houve casos de ataques armados contra clínicas que praticavam a vacinação. Em Quetta, um terrorista realizou um ataque a um centro de vacinação contra a poliomielite em janeiro de 2016, matando 15 pessoas. Em setembro de 2015, um centro de vacinação em Peshawar foi atingido e pelo menos seis pessoas foram mortas.

[38] Os Amish, além de não vaciná-los, não permitem que seus filhos frequentem escolas públicas, por acreditarem que a lei que estabelece a escolaridade obrigatória é contrária à sua fé: cf., sobre isso, a sentença do Corte Suprema U.S.A. Wisconsin v. Yoder , 406 U.S. 205 (1972).

 

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