Para além da “religião civil” e do “cristianismo burguês”. Artigo de Francesco Cosentino

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09 Janeiro 2021

"A tentação de regressar com saudade a uma época alegadamente melhor e "cristã", com a intenção mal disfarçada de regressar à Igreja que se torna uma potência deste mundo para obter influência social e relevância pública, está sempre atrás da esquina. E, mesmo na Itália, invoca a voz crítica e iluminada de pastores e teólogos", escreve Francesco Cosentino, padre italiano, teólogo e professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por Settimana News, 07-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

No último dia 3 de janeiro, nas páginas da SettimanaNews, pude ler a interessante reflexão do prof. Giuseppe Lorizio e, posteriormente, as preciosas contribuições do prof. Massimo Naro e do bispo de Noto, Mons. Antonio Staglianò, comentando o que Ernesto Galli Della Loggia publicou no Corriere della Sera sobre a atual crise do cristianismo e o suposto silêncio da Igreja e do atual pontífice.

Já tratei do tema muitas vezes em minhas pesquisas acadêmicas, tentando trazer à tona as interpretações oferecidas por grandes estudiosos da secularização como Taylor e por alguns dos grandes nomes da teologia do século XX que, na verdade, não estão absolutamente convencidos de que o recuo social e a perda de relevância política da religião cristã coincidem exatamente com uma verdadeira crise de fé e espiritualidade. Pelo contrário, os melhores estudos sobre o tema sugerem uma leitura crítico-teológica da crise atual, interpretando-a como um "sinal dos tempos" para a redescoberta da fé autêntica: abandonar finalmente uma religiosidade reduzida a uma moldura cultural e ética, para se abrir a um verdadeiro encontro com Cristo e com o seu Evangelho.

Uma premissa teológica

Estimulado a oferecer uma pequena contribuição ao debate, inicialmente gostaria de fazer uma premissa sobre o risco de que os pressupostos da reflexão fiquem aprisionados em uma leitura sociopolítica, ditada por um olhar "externo", que se detém na aparência do fenômeno sem interpretá-lo teologicamente. Desse modo, dá-se um valor absoluto ao resultado das pesquisas sociológicas sobre a perda da presença do cristianismo na sociedade e não se apreende as possibilidades inéditas que, justamente assim, se abrem para o renascimento da fé; de fato, enquanto uma certa forma de ser cristão está no ocaso (il tramonto) (J.M.R. Tillard) e um específico catolicismo convencional entra em declínio (A. Staglianò), abre-se um espaço sem precedentes para que a fé renasça de forma renovada e qualitativamente diferente.

Isso levou o cardeal Martini a dizer que “talvez esta situação seja melhor do que a que existia antes. Porque o Cristianismo tem a possibilidade de mostrar melhor o seu caráter de desafio, de objetividade, de realismo, de exercício da verdadeira liberdade, de religião ligada à vida do corpo e não só da mente. Em um mundo como aquele em que vivemos hoje, o mistério de um Deus não disponível e sempre surpreendente adquire maior beleza; a fé entendida como risco torna-se mais atrativa. O cristianismo parece mais belo, mais próximo das pessoas, mais verdadeiro” (C. M. Martini, Avvenire, 27 de julho de 2008).

A questão - também no que diz respeito à nova evangelização e como ela é entendida e anunciada - poderia ser formulada da seguinte forma: um regime de cristianismo, que vise uma sociedade ao menos aparentemente orientada pelos princípios e valores cristãos e que favoreça a estreita união entre religião e espaços de relevância pública, social e política, corresponde realmente a uma fé viva, consciente e adulta de pessoas que se deixam inquietar e transformar pelo Evangelho, tornando-se semente de renovação no mundo? Ou não teria sido justamente aquele regime, aquilo que, muitas vezes por trás de uma exterioridade explicitamente religiosa, neutralizou e diluiu a profecia libertadora do Evangelho e induziu a um cristianismo reduzido a um apelo ético, a esporádicas práticas religiosas e ritualidades vividas por tradição, por hábito e por convenção social?

O fim do cristianismo como novo começo

A reflexão teológica - e Lorizio justamente citou Michel de Certau e Metz - se deteve na questão por muito tempo. Enquanto as mudanças ocorridas nas últimas décadas levaram ao declínio de uma forma específica de existência cristã no mundo, caracterizada pela sobreposição entre pertencer à Igreja e à sociedade pós-Constantiniana, há quem tenha entoado o lamento e continua a perseguir o sonho nostálgico de uma restauração para o passado, na convicção de que a morte desta religião civil e burguesa seja o fim completo da fé cristã.

No pano de fundo está a convicção errônea - na qual Severino Dianich insistia - de que uma Igreja capaz de influenciar de forma cristã o mundo social, jurídico, institucional e de costumes do mundo em que vive, seria capaz de gerar automaticamente uma maior e mais convicta adesão das pessoas à fé.

Na realidade, no máximo, seria justamente o contrário: a época mais afortunada em toda a história do Evangelho - diz Dianich - foi a dos Apóstolos, que anunciaram o Evangelho em um contexto totalmente hostil e não se preocuparam em evangelizar uma cultura genérica ou modificar a ordem social e as instituições políticas, mas, isso sim, depositar a semente da Palavra no coração das pessoas, na convicção de que ela germinaria e geraria pessoas de fé para mudar também a sociedade. (cf. S. Dianich, "Le attese della Chiesa. Rileggendo l’Instrumentum Laboris", Il Regno- Attualità, 2012/14, 436-437).

Lida nas entrelinhas, esta análise sugere outro aspecto que não deve ser subestimado, se realmente não se deseja silenciar a crise do Cristianismo: uma certa fragilidade do anúncio do Evangelho, o imobilismo da ação pastoral no cômodo critério de “sempre se fez assim” e a perda de entusiasmo missionário da comunidade cristã deveram-se, pelo menos em parte, à ilusória certeza de estar, afinal, num mundo “cristão” e “religioso”. Por isso, como afirma Giovanni Ferretti, de país hospitaleiro que era, o cristianismo passou a uma prisão da qual o próprio Deus nos pede um "êxodo", para chegar a uma fé despida de referências culturais e de apoios sociais tranquilizadores, e ao mesmo tempo mais autêntica e centrada no Evangelho.

O serviço teológico para ir além da nostalgia

Naturalmente, a relação entre a e o contexto histórico-cultural é imprescindível, e não tanto por razões de ordem prático-organizacionais, mas em virtude da encarnação do Filho de Deus. No entanto, é igualmente necessário salvaguardar o desnível existente entre o Evangelho e a história, isto é, o fato de que nenhuma época, nenhuma sociedade e nenhuma instituição humana é conforme o Evangelho em um sentido absoluto. O cristianismo permanece "outro" ou, para citar Dominique Collin, “não existe ainda" no que diz respeito às nossas experiências humanas, mesmo religiosas e eclesiais. Se não salvaguardarmos esta diferença, a fé se reduz à cultura, a radicalidade do Evangelho se reduz a ética e a carga crítico-profética do cristianismo é neutralizada em proveito de uma religião civil que se torna apenas uma moldura de apoio à ordem social e política, talvez para obter privilégios e aumentar a própria influência e prestígio.

Essa perspectiva não é fruto de uma visão ou de uma escolha do Papa Francisco, mas tem suas raízes em uma ampla produção teológica que inclui, entre outros, também Rahner com seu "Cristianismo da diáspora", mas também o próprio Ratzinger citado por Della Loggia. O teólogo alemão, no final dos anos 1960, corajosamente afirmava que a crise teria feito perder muito a Igreja, a teria despojado de prédios e de privilégios sociais, a teria reduzido numericamente e, graças a essas perdas, ela poderia se redescobrir como uma Igreja livre e essencial, centrada em Jesus Cristo. No final desse processo de crise, Ratzinger observava, restaria "não a Igreja do culto político, que já fracassou com Gobel, mas a Igreja da fé" (J. Ratzinger, Fede e futuro, Queriniana, Brescia 2005, 117).

Como Papa, Bento XVI voltou de forma brilhante ao tema em um discurso proferido na Alemanha em 2011, no qual afirma que justamente a secularização vem em auxílio da reforma da Igreja porque a liberta das formas do mundanismo: “Livre de fardos e privilégios materiais e políticos, a Igreja pode dedicar-se melhor e de forma verdadeiramente cristã ao mundo inteiro, pode estar verdadeiramente aberta ao mundo”. Assim - concluía Bento XVI - se abandona toda tática humana e se vive a fé na sobriedade, “tirando dela o que só aparentemente é fé, mas na verdade é convenção e hábito”.

A tentação de regressar com saudade a uma época alegadamente melhor e "cristã", com a intenção mal disfarçada de regressar à Igreja que se torna uma potência deste mundo para obter influência social e relevância pública, está sempre atrás da esquina. E, mesmo na Itália, invoca a voz crítica e iluminada de pastores e teólogos.

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