“A desigualdade social começa no útero”. Entrevista com Boris Cyrulnik

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17 Setembro 2020

É fundamental acompanhar os “primeiros 1000 dias”, do 4º mês de gravidez ao 2º aniversário da criança: esta é a questão destacada no relatório apresentado no dia 8 de setembro a Adrien Taquet, secretário de Estado encarregado da Criança e das Famílias. A bola está agora com o presidente, que se manifestará sobre o assunto antes do final do mês. Ótima entrevista com o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, que presidiu a comissão de 18 especialistas.

A entrevista é de Stéphanie Combe, publicada por La Vie, 11-09-2020. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Você teria imaginado a criação dessa comissão multidisciplinar há alguns anos?

Não! Quando comecei a trabalhar nesta perspectiva em 1982, todos estavam contra mim. Alegava-se que havia risco de confusão e falta de profundidade; era melhor que cada um fosse especialista em sua área. Os Prêmios Nobel têm sua utilidade e eu não os questiono. Mas reunir nossas experiências como profissionais – neurologistas, psicólogos, parteiras, etc. – permite a coleta de conhecimentos transversais que também têm sua utilidade. Nós, lavradores, que temos os pés no chão, também “elaboramos”, para usar a expressão de Rabelais. Essa atitude passou a ser recomendada pelo CNRS, pela Agência Regional de Saúde e pela Agência Nacional de Segurança Sanitária.

Como surgiu a questão da primeira infância?

Na França, existem fortes entraves culturais à sua acolhida: as mulheres grávidas e as mães jovens ficam deprimidas, os pais não sabem como substituí-las, os empregadores fazem caretas diante da perspectiva da licença maternidade e paternidade. Quando eu era criança, apenas 3% dos jovens chegavam ao bacharelado. Aos 20 anos, todas as minhas namoradas já tinham um ou dois filhos, enquanto os rapazes trabalhavam no campo, na fábrica ou em oficinas de artesanato. Antigamente, um nascimento era algo que se festejava, a família não estava longe, apoiando. A jovem mãe estava cercada de cuidados.

Atualmente, uma jovem dá à luz seu primeiro filho, em média, aos 31 anos. Recordo que a fertilidade atinge o auge por volta dos 25 anos, razão pela qual as gestações são tão medicalizadas e mais angustiantes, marcadas por exames, exames de sangue e ansiosas esperas de resultados. A nova mãe estudou, começou sua carreira e, às vezes, nunca segurou um bebê nos braços! Ela se encontra sozinha, com esse pequeno ser de quem não sabe cuidar e que a deixa angustiada. Ela se refugia nos livros para pais que fornecem informações, mas não dão segurança. A mãe dela está longe, ainda trabalhando, sobrecarregadas como estão os avós de hoje. Essa revolução dos costumes ocorreu em apenas duas gerações.

Esta falta de acolhimento seria, pois, resultado da nossa sociedade individualista, caracterizada pela fragilidade dos seus laços e pela sua baixa taxa de fecundidade?

A jovem mãe sofre com o isolamento e com o fato de que tudo recai sobre os seus ombros. Na Idade Média e até o final do século XIX, havia uma “cama de ‘relevailles’”, situada no centro da sala. Se a parturiente dissesse “estou cansada”, as outras mulheres da casa lhe diziam para se deitar e assumiam os cuidados da criança. Ela nunca ficava sozinha. Nessa cultura, tinha-se o direito de ficar cansado. A explosão do burnout não encontraria a sua explicação no fato de que esse direito natural e legítimo ao descanso nos foi confiscado? Os números são alarmantes: 10% a 15% de depressão materna nos bairros ricos, até 30% em bairros pobres.

E quanto aos homens?

Os homens também estão enfrentando uma revolução cultural sem precedentes, eles que trabalhavam em grupos e agora estão por conta própria, sozinhos atrás de seus computadores. O culto do desempenho que induz a uma corrida permanente já está produzindo seus efeitos deletérios em países onde a competição social é estimulada. Encontrar seu lugar não é fácil. Os rapazes estão abandonando cada vez mais os estudos no Japão, Canadá, Estados Unidos, e isso está acontecendo também na França. No Japão, por exemplo, as avaliações escolares dos adolescentes de 12 anos mostram um atraso de dois anos em relação às moças. Este fenômeno sociocultural é preocupante, tanto mais que seu corolário é uma valorização cultural da violência viril, que existe em países em guerra: os rapazes devem aprender a lutar para serem respeitados e sobreviver.

Entre os riscos que pesam sobre a mulher e a criança, você destaca a violência doméstica. Como você explica esses riscos hoje?

A violência doméstica não para de aumentar, apesar das campanhas públicas de prevenção, e o confinamento suscitou situações dramáticas. Esses maus-tratos começam na maioria dos casos quando a mulher está grávida. São obra de um homem imperialista que quer impor sua lei. Porém, pela maternidade, a mulher lhe escapa: ela não se dedica mais inteiramente a ele. E ele não suporta isso! Esses tiranos domésticos – eles mesmos em grande dificuldade – procuram redescobrir essa relação de exclusividade e, por falta de elaboração suficiente, buscam impô-la pela violência.

Como o estresse materno afeta a criança, mesmo no útero?

Os trabalhos científicos sobre a epigênese mostram que o estresse de uma mãe grávida atravessa a barreira placentária. O bebê engole 4 a 5 litros de líquido amniótico impregnado de cortisona, um hormônio tóxico para o seu cérebro. Alguns bebês nascem com danos cerebrais. Eu insisto: não é culpa da mãe, mas sim do seu infortúnio. Vem de sua história, da precariedade social, da violência conjugal, da guerra, dos acidentes da vida, de uma morte, etc. A desigualdade social começa no útero.

E continua no berço...

As capacidades de um bebê se desenvolvem espontaneamente ao seu máximo na idade de 3 ou 4 meses, se ele estiver em um ambiente afetivo seguro. A aquisição da linguagem será mais rápida. Françoise Dolto recomendava falar com os bebês. Sua hipótese agora é confirmada pela neurociência. Assim, Ghislaine Dehaene mostrou que o simples fato de falar esculpe o planum localizado no lobo temporal esquerdo, que se tornará a zona da linguagem. Ao contrário, o que acontece quando o bebê se desenvolve em um ambiente vulnerável onde não é solicitado, onde ressoam os choros, onde a ansiedade é generalizada? Aos 3 anos, quase 70% das crianças têm um apego seguro e um estoque de 1.000 palavras. Mas, inversamente, quase 1 em cada 3 desenvolveram um apego inseguro e seu estoque de palavras é de apenas 200. Adivinhe quem terá sucesso...

Em última análise, a questão não se limita ao bem-estar do recém-nascido: através dele, afeta o conjunto da sociedade e ajudaria a combater as desigualdades sociais?

Exatamente, é por isso que devemos colocar o bebê no centro do debate público. Um nascimento se prepara bem antes da concepção... A OMS considera que os 1000 dias começam na data da entrevista do 4º mês de gravidez. À medida que os trabalhos da nossa comissão avançavam, parecia-nos que, na realidade, este período começa antes da concepção, quando os futuros pais se encontram! Muitas coisas dependem de como eles saberão articular suas personalidades. Quando pai e mãe se conjugam harmoniosamente, segundo a bela expressão da psicóloga e terapeuta familiar Elisabeth Fivaz, eles criam um ambiente sensorial afetivo tranquilizador, que permitirá que a criança seja tutelada até falar.

Você também está defendendo uma pequena revolução na licença maternidade, proposta calorosamente acolhida pela União Nacional das Famílias. Em um comunicado de 11 de setembro, ela espera que esta recomendação passe a fazer parte das leis de Seguridade Social 2021 e 2022...

Os pais precisam de tempo. É urgente reformar nosso sistema francês de licença maternidade. A licença maternidade de 16 semanas (para os primeiros dois filhos) até 26 semanas (a partir do terceiro filho) é muito curta. Também queremos uma medida mais forte: que a licença paternidade seja estendida para 9 semanas. Todos os nossos trabalhos convergem – Blaise Pierrehumbert, doutor em psicologia e especialista em apego, Isabelle Roskam, professora de psicologia do desenvolvimento na Universidade de Louvaina e diretora de estudos em desenvolvimento infantil e parentalidade: a intervenção afetiva precoce do pai é fundamental. Ele desempenha um papel nas interações com a criança, mas também com sua esposa, ao estar perto e oferecer-lhe segurança. A sociedade deve dar a ele a oportunidade de estar mais presente. Propomos também a constituição de uma licença paternidade de 9 meses, que pode ser partilhada entre os dois progenitores, com um nível de compensação suficientemente atrativo, correspondente a pelo menos 75% dos rendimentos percebidos.

Esse “Curso 1000 dias” que você quer ver instituído não corre o risco de ser percebido pelos pais como uma obrigação adicional?

O objetivo é, ao contrário, desenvolver o sentimento de confiança e de competência dos pais. Uma em cada 5 mulheres que estão esperando o primeiro filho não se beneficia da preparação para o nascimento, de acordo com a Pesquisa Nacional Perinatal de 2016. Como informá-la sobre a importância de uma alimentação equilibrada, do ritmo de vida, dos perigos do álcool? Este curso incluiria, portanto, sessões de informação pré-natal, sessões de preparação para o parto e a parentalidade. Parece-nos importante que os pais se beneficiem de uma equipe profissional identificada até o pós-parto, com um acompanhamento domiciliar personalizado reforçado em caso de fragilidades (deficiência, transtornos mentais, etc.).

Defendemos também a criação das “Casas dos 1000 dias”, um espaço não medicalizado onde os jovens pais pudessem se encontrar, trocar experiências, fazer amizades... Esse tipo de estrutura já existe no Brasil ou nos países nórdicos. A integração de um grupo de pais favorece a troca de experiências entre os pares e a ajuda mútua, tranquiliza e também possibilita a identificação precoce de atrasos neuro-comportamentais, por exemplo: “Ei! ele ainda não se senta”, “ela ainda não fala...”. Na França, devemos nos reconectar com uma cultura de proximidade.

No entanto, conhecemos as limitações orçamentárias que as maternidades e o PMI [proteção materno-infantil] sofrem. Temos os meios para a sua ambição?

O ministro da Saúde e da Solidariedade Olivier Véran e o secretário de Estado encarregado da Criança e das Famílias Adrien Taquet parecem receptivos a esta causa, que gostaríamos que fosse nacional, e mostram uma verdadeira vontade política. Nossa comissão convidou Tove Mogstad Slinde, conselheiro sênior do Ministério da Educação e da Pesquisa da Noruega. Os países do Norte da Europa nos precederam nesta reforma. A acolhida da criança depende de seu desenvolvimento socioemocional, psicomotor e cognitivo. Investir na primeira infância é, portanto, um bom negócio financeiro. Porque uma criança insegura fica enfadada com a escola, mal socializada e sem perspectivas profissionais. Há uma boa chance, infelizmente, de ela afundar na delinquência. Portanto, será necessário ajudá-la durante toda a vida e custará caro à sociedade. De um ponto de vista estritamente orçamentário, a prevenção, mais do que a reparação, representa uma economia social. Quanto ao custo humano, seu benefício é, obviamente, incomensurável.

 

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