As três funções da linguagem digital e suas consequências. Artigo de Luciano Floridi

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08 Setembro 2020

Publicamos aqui o prefácio escrito pelo filósofo italiano Luciano Floridi ao livro “Linguaggi nella società e nella tecnica, 1968-2018” [Linguagens na sociedade e na tecnologia, 1968-2018], que reúne as atas da jornada de estudos organizada pela Associação Arquivo Histórico Olivetti, por ocasião do centenário de nascimento do fundador, Camillo Olivetti.

A jornada de estudos – realizada na Fundação Giangiacomo Feltrinelli, em Milão, no dia 15 de outubro de 2018 – retomou e atualizou os temas do congresso internacional sobre “Linguagens na sociedade e técnica” promovido e organizado em 1968 pela Sociedade Olivetti.

Floridi é professor ordinário de filosofia e ética da informação na Universidade de Oxford, no Oxford Internet Institute, onde dirige o Digital Ethics Lab.

O texto foi publicado por seu blog, Onlife, 04-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Em 1988, graças a uma bolsa de estudo da Universidade de Roma “La Sapienza”, fui admitido como aluno visitante na Universidade de Warwick, para estudar com Susan Haack, uma das mais famosas professoras de filosofia da lógica.

Entre as tantas memórias, está a de dias intermináveis, passados entre a cafeteria e os laboratórios do campus, dormindo pouco e trabalhando sem parar, escrevendo a tese e executando programas de lógica em um dos muitíssimos Olivetti M24, sempre disponível, a qualquer hora e em qualquer dia, para todos os estudantes.

Eram muito bonitos, indestrutíveis, confiáveis. Na La Sapienza, como estudante de filosofia, eu nunca os tinha visto. Aqueles computadores falavam DOS. Estavam na rede, embora a Web ainda não existisse (ela nasceria no ano seguinte). O barulho de fundo era o zumbido barítono e o tique-taque rítmico das incansáveis impressoras matriciais, que transbordavam de ondas de papel perfurado A3 verde-claro. Era preciso cuidar apenas para destacar a própria impressão.

Eu escrevia na metade esquerda, e Susan fazia anotações na metade direita. Uma única impressora a laser para todo o campus trabalhava em lotes: você mandava o capítulo e ia buscar a impressão horas depois, tomando muito cuidado porque cada página era paga.

Hoje, para os meus estudantes de Oxford, tudo isso parece arqueologia, com razão. Um mundo que eles só viram na Netflix. Mas, na realidade, a nova linguagem digital já estava presente e estava permeando cada vez mais todos os aspectos da vida cotidiana.

Era sobre essa linguagem tecnológica que a Olivetti havia organizado um congresso de extraordinária clarividência em 1968, intitulado “Linguagens na sociedade e na técnica. Congresso promovido pela Ing. C. Olivetti & C., S. p. A., pelo centenário do nascimento de Camillo Olivetti”, no Museu Nacional de Ciência e Tecnologia de Milão.

Foi a essa linguagem e ao cinquentenário desse evento que foi dedicado um segundo congresso, com o evocativo título “Linguagens na sociedade e na técnica 1968-2018”, realizado em Milão, na Fundação Giangiacomo Feltrinelli em 2018, e do qual este livro recolhe as atas.

E é a essa linguagem que eu gostaria de dedicar uma breve reflexão neste Prefácio, para sublinhar a importância dos dois congressos recém-mencionados.

Costuma-se pensar que a função da linguagem (natural ou artificial) é a comunicativa. A linguagem serve para “falar”, talvez em símbolos, por escrito ou a distância, graças também a várias tecnologias, mas a questão é clara. É difícil dissentir da verdade dessa afirmação biológica, que compara as linguagens humanas às animais. Afinal, é daí que viemos, e as nossas linguagens são uma evolução das linguagens rudimentares usadas pelos nossos distantes ancestrais darwinianos.

No entanto, pode-se objetar razoavelmente à integridade da própria afirmação. A linguagem humana não é apenas um grunhido muito evoluído ou um chilreio ainda mais refinado. Se nos concentrarmos apenas na função comunicativa, acabamos perdendo de vista as outras duas funções igualmente fundamentais que ela desempenha. Porque a linguagem não serve apenas para falar sobre o mundo, mas também para construí-lo e conceituá-lo, em um sentido muito concreto e realista, literalmente. Vejamos do que se trata.

Interpretar a linguagem, neste caso a digital, apenas em termos de comunicação acaba por nos fazer ler a história da informática como um mero capítulo, embora fundamental, na história dos mass media. Não é assim, porque, na realidade, trata-se de um novo livro. A revolução digital não é Gutenberg 2.0, mas sim Turing 1.0.

É verdade que hoje a Web, as redes sociais, a Internet das Coisas, qualquer software mais ou menos “inteligente”, os aplicativos e os celulares que usamos cotidianamente só funcionam graças à transmissão de dados. E é verdade que o mundo da comunicação foi revolucionado pela linguagem digital.

Mas devemos lembrar que hoje vivemos imersos nessas realidades digitais, que representam não só um canal de comunicação, mas sobretudo um novo ambiente, uma infosfera na qual passamos cada vez mais tempo. Ninguém nunca viveu “no” telégrafo (a menos que se esteja falando de um pássaro e do seu ninho), “na” televisão ou “no” telefone (em sentido não metafórico, algumas das minhas colegas do colégio eram acusadas pelos seus pais por viverem empoleiradas no gancho).

Pelo contrário, a nossa experiência é cada vez mais onlife, isto é, online e offline, analógica e digital. Passamos os dias na internet (a pandemia tornou isso necessário e óbvio) e, mesmo quando saímos de casa, o digital nos acompanha, até porque nos geolocaliza através do nosso celular.

Quando Zuckerberg sugere tratar o Facebook como algo a meio caminho entre um serviço telefônico e um jornal, ou ele não entende, como alguns intelectuais encalhados na filosofia dos meios de comunicação da massa, ou (mais provavelmente) se faz de esperto, porque o Facebook, na realidade, é um habitat que tem muito mais a ver com a praça e o parque público, e deveria ser regulado muito mais de acordo com esses espaços do que com aqueles serviços (pensemos no direito à liberdade de expressão, exercível de modo diferente quando estão ao telefone ou quando estão nos jardins do bairro). Porque a linguagem digital não serve apenas para falar do mundo, mas hoje sobretudo para o construir.

Para entender como isso é possível, basta lembrar Galileu e a sua famosa afirmação em “Il Saggiatore”: “A filosofia natural está escrita neste grandíssimo livro que está continuamente aberto diante dos nossos olhos, eu falo do universo; mas não é possível entendê-lo se antes não se aprende a entender a língua e a conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática” [La filosofia naturale è scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi agli occhi, io dico l’universo, ma non si può intendere se prima non s’impara a intender la lingua e conoscer i caratteri nei quali è scritto. Egli è scritto in lingua matematica].

Para Galileu, o universo era um livro, escrito na linguagem da matemática, e a tarefa era a de lê-lo ou de decifrá-lo. Mas, para nós, depois de Turing e do sucesso da informática, a linguagem digital serve também, e muitas vezes sobretudo, para escrever novos capítulos desse livro da natureza. A linguagem digital não apenas descreve, mas inscreve o mundo. Cada linha de código, cada página da Web, cada novo serviço que amplia a infosfera é também uma nova linha que estende o livro-universo de Galileu.

Isso não deveria ser muito surpreendente. A linguagem humana também é feita para construir a realidade. Muitas vezes, usamos a linguagem para fazer, não apenas para dizer coisas, como sublinhava Austin. Pensemos na linguagem da jurisprudência, na dos jogos de tabuleiro (cujas regras não são apenas vinculantes, mas constitutivas da própria atividade de jogo) ou na simples função de uma promessa ou de um batismo. A diferença macroscópica é que hoje a linguagem digital está escrevendo e reescrevendo páginas inteiras do livro da natureza.

Também por isso, ou seja, também pelo fato de a linguagem digital ser constitutiva de novas realidades inteiras nas quais ou com as quais vivemos, é importante entender que a linguagem digital é também o meio com o qual conceitualizamos o mundo, nós mesmos, as nossas experiências e relações.

Não pretendo me referir apenas ao fato, crucial, de que hoje o saber humano avança graças à informática. É evidente que não existe um âmbito científico em que a linguagem digital (das bases de dados ao processamento estatístico) não seja uma condição necessária para o progresso da pesquisa.

Na realidade, pretendo sublinhar um aspecto mais cultural e cognitivo. A linguagem digital formata (aqui acabei de aplicar o que estou dizendo) o nosso modo de pensar, para o bem ou para o mal, e é importante estarmos cientes disso, para depois não nos sujeitarmos mais a ela e podermos melhorar essa função, adaptá-la às nossas necessidades, prioridades e desejos, enfim, para sermos nós quem controlamos a nossa linguagem (digital, mas não só) e não vice-versa.

Hoje vemos a realidade por meio de esquemas conceituais que atribuem significados específicos e sentidos globais à nossa compreensão do mundo e às nossas experiências por meio da linguagem digital. Basta pensar na Inteligência Artificial (IA) e na neurociência.

A IA, na falta de uma linguagem adequada própria, apropriou-se da linguagem antropomórfica para falar sobre a capacidade de um software de resolver um problema com sucesso em vista de um fim sem a necessidade de ser inteligente, e usa termos como “aprender”, “reconhecer”, “entender”, “ver”, “traduzir” para descrever as atividades de um computador, de uma rede ou de um robô.

É um pouco como a vitória linguística do analógico sobre o digital. E a neurociência, na falta de uma linguagem própria e também por causa da sua total dependência da informática (sem a informática, não poderia haver a neurociência atual), apropriou-se da linguagem digital para falar do cérebro como se fosse um computador que processa e registra dados, chegando a comparar a mente ao software e o cérebro ou “wetware” ao hardware, e assim por diante.

Mais em geral, essa conceituação nos faz ver o mundo e a nós mesmos com olhos bem diferentes do que se falássemos do cérebro como se fosse um relógio mecânico ou, como fazia Leibniz, da mente como se fosse um moinho, que produz percepção e consciência processando dados, como o moinho produz farinha a partir do trigo.

Uma vez esclarecido que a linguagem digital está mudando a nossa cultura não só em termos de comunicação, mas também – e eu diria de modo muito mais profundo e significativo – em termos de construção e conceituação da realidade (reontologização e reepistemologização, para usar palavras filosóficas um pouco fortes), pelo menos quatro consequências principais tornam-se evidentes. Eu as apresento em uma ordem não cronológica ou lógica, mas de (aquela que me parece) crescente importância.

Primeira consequência: de um ponto de vista cognoscitivo (epistemológico), a linguagem digital deslocou ainda mais a nossa atenção dos saberes que, pelo menos em uma concepção simplista, descrevem o seu referente – da astronomia antiga à química e à biologia modernas, até a física contemporânea – aos saberes que não apenas descrevem, mas também constroem o seu referente, pensemos na economia, na sociologia, nas ciências políticas, na jurisprudência, na arquitetura e na engenharia e, obviamente, na informática (note-se como a medicina sempre esteve a meio caminho entre a descrição da doença e a manutenção ou restauração da saúde).

Esse deslizamento de focalização dos saberes predominantemente miméticos aos saberes principalmente poéticos é epocal, está mudando a nossa cultura científica e a nossa filosofia da ciência. Acredito que a linguagem digital, nas suas três funções, foi e continua sendo uma das principais causas dessa reorientação.

Segunda consequência: entender as três funções da linguagem digital também significa compreender que a nossa sociedade da e economia da informação são neomanufatureiras. Projetam-se, desenham-se, constroem-se, produzem-se, comercializam-se e usufruem-se manufaturados, só que agora os manufaturados são digitais, ou têm componentes digitais, e estão cada vez mais ligados ao valor agregado de serviços e experiências, e não apenas à produção de objetos físicos.

Por isso, subestimar o digital como mero “virtual” e não apreciá-lo como uma realidade igualmente autêntica e importante quanto a analógica significa pensar ainda que o computador é apenas o bisneto do telégrafo. Em uma sociedade neomanufatureira, inovação significa principalmente design com e do digital, mais do que invenção ou descoberta.

Terceira consequência: dada a importância crucial da linguagem digital, é claro que hoje o mundo da educação e da formação deveria se focalizar na aprendizagem das línguas “faladas” pela informação. Não só a própria língua materna, inglês, a programação, a estatística, a matemática e a lógica, mas também as línguas faladas pelas várias ciências, da história, da geografia, da música, da economia, da arte, da filosofia, das civilizações que formaram a própria cultura e assim por diante.

Saber verdadeiramente falar essas línguas não significa ter os fatos “ao alcance da mente”; para isso basta ter um celular ao alcance das mãos, mas ser capaz de “ler e escrever” essas disciplinas, de contribuir para melhorá-las e enriquecê-las, e saber aplicá-las de modo eficaz.

O teste é simples: cada verbete da Wikipédia que eu não sei “ler e escrever” (entender, corrigir, ampliar de modo competente) é um limite do meu conhecimento e do meu saber, e, portanto, da minha compreensão do mundo e do meu crescimento individual. Hoje, o mundo precisa de poliglotas, não de eruditos (que acumulam fatos e noções) ou tudólogos (que falam excessivamente sobre qualquer coisa), até porque o “nocionismo” envelhece rapidamente, enquanto a competência linguística melhora ao longo do tempo, com o uso.

E por fim: a linguagem digital nos lembra que hoje quem controla o “logos digital”, isto é, as funções comunicativas, construtivas e conceituais da linguagem digital, também tem responsabilidades enormes, em termos de como nos relacionamos entre nós, como desenhamos e gerimos as realidades que nos rodeiam e a nós mesmos, e como interpretamos e damos sentido ao mundo, à vida e às nossas existências. Por isso, o uso da linguagem digital requer uma ética do digital à altura do seu poder transformador.

Chegamos ao término deste breve Prefácio. Em 1989, eu estava novamente em Warwick, para o mestrado e, depois, para o doutorado. Ainda me lembro do dia em que finalmente consegui transferir arquivos via FTP (um comando TCP/IP) para um Olivetti M111 portátil, uma joia produzida naquele ano, presente maravilhoso e clarividente dos meus pais pela formatura.

Foi o meu momento paulino, no caminho da informática. A revolução digital me pareceu reluzente, irresistível, irrefreável e filosoficamente crucial, epocal. A importância da linguagem digital foi uma revelação que determinou o restante da minha vida intelectual. Eu havia me convertido, 20 anos depois do congresso celebrado nestas atas.

O fato de vislumbrado tudo isso em 1968 deve ter sido extraordinário. O fato de ter contribuído para realizar isso, como uma empresa protagonista internacionalmente, deve ter sido entusiasmante. Celebrar esses sucessos com estas atas é o merecido reconhecimento da genialidade e da clarividência Olivetti.

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