“Na Amazônia, a força de nossa Igreja vem dos leigos e leigas comprometidos”. Entrevista com o Padre Fontenele, bispo eleito de Humaitá

Foto: Luis Miguel Modino

24 Agosto 2020

No dia 12 de agosto foi anunciada a nomeação do padre Antônio Fontinele de Melo como novo bispo de HumaitáAM. Nascido no Ceará, o novo bispo é padre da arquidiocese de Porto Velho, aonde sua família migrou no início da década de 1990. Formado na Igreja da Amazônia, a partir do dia 17 de outubro será o novo pastor da diocese vizinha àquela onde desde 1999 é padre.

 

Após conhecer sua nova missão, ele vê a necessidade de "caminhar na Amazônia com os povos que vivem na Amazônia, procurando a plena vida, dentro da diversidade cultural, religiosa". Nessa conjuntura a Igreja é chamada, segundo o novo bispo, a "promover a vida, defender a vida, cuidar das pessoas que vivem na Amazônia, todos os povos, raças e culturas, e cuidar também da Criação", mesmo sabendo que isso, "é caminhar na contramão de um projeto que busca a riqueza, o poder, agredindo a vida e a natureza", cada vez mais presente na região.

 

Ele considera que na Igreja da Amazônia, "a força de nossa Igreja vem dos leigos e leigas comprometidos, de assumir a missão profética na realidade amazônica", até o ponto de afirmar que "a valorização da presença dos leigos nas nossas comunidades é que vai nos ajudar a tornar a Igreja uma presença realmente ativa, participativa e também transformadora, libertadora nessa realidade". O novo bispo diz chegar em Humaitá "a estar junto com o povo, a animar e acompanhar, incentivar e testemunhar, ouvir e aprender com eles, e juntos buscarmos superar os desafios que vamos encontrando".

 

Em um momento em que tudo está condicionado pela pandemia, o padre Fontinele vê necessário, "dentro daquilo que é possível, a gente tem que ir encontrando saídas, caminhos de proximidade, diálogo, de encontro, de presença com as pessoas". O novo bispo tem assumido como lema episcopal Lucas 22, 27, "eu estou no meio de vós como aquele que serve", e quer fazer realidade uma Igreja sinodal, e seguindo o pedido do Papa Francisco, "ouvir as pessoas, dialogar com as pessoas, e fazer um caminho de comunhão, de participação, de colaboração, aonde todas as vozes são ouvidas, aonde todos os membros têm voz e vez, e pode participar, pode contribuir". Para isso ele pede a benção e oração de todos.

 

A entrevista é de Luis Miguel Modino.

 

Eis a entrevista.

 

O senhor acaba de ser nomeado bispo de Humaitá pelo Papa Francisco. Depois de uma semana de ser conhecida a nomeação, como o senhor está se sentindo diante dessa nova missão que a Igreja lhe confia?

 

Desafiado a assumir a responsabilidade de servir a essa Igreja de Humaitá, que está nessa região amazônica, uma região marcada pela diversidade, pelas questões sociais e também pelo cuidado com a evangelização, com a vida e com a criação. Para mim é um momento novo, uma reviravolta na minha vida, porque agora a responsabilidade é maior, não é só uma paróquia ou coordenar algumas pastorais, mas é estar ao serviço de uma forma mais ampla à nossa Igreja, e no caso aqui, chamado pelo Papa Francisco, a assumir como pastor da Igreja de Humaitá, essa diocese que fica próximo da nossa arquidiocese de Porto Velho.

Foto: Luis Miguel Modino

Já conheço um pouco a realidade, sou filho da arquidiocese de Porto Velho, fui formado aqui, no nosso seminário São João XXIII, todo meu ministério e serviço pastoral o exerci aqui na arquidiocese de Porto Velho, como também no nosso regional Noroeste, onde tive algumas responsabilidades, coordenando a animação dos presbíteros do regional, como também das comunidades eclesiais de base, onde fui assessor por um período aqui no nosso regional. E outros trabalhos que também assumi aqui na arquidiocese, nas paróquias, na coordenação de pastoral, na economia, em diversas áreas da nossa Igreja.

 

Agora o desafio é maior, atravessar o Madeira e a 200 quilômetros está a diocese de Humaitá. Nessa realidade marcada pela presença indígena, também dos ribeirinhos e dos migrantes que vão chegando, sou chamado a dar minha contribuição na evangelização, na defesa da vida e na construção de um mundo melhor.

 

O senhor assume seu ministério episcopal em um momento em que a Igreja da Amazônia está querendo trazer de volta ao território tudo o que tem sido refletido ao longo do processo do Sínodo para a Amazônia, que faz um chamado a procurar novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Como o senhor pensa que podem se concretizar na Igreja de Humaitá esses novos caminhos?

 

Esses novos caminhos são um apelo à Igreja da Amazônia, caminhar na Amazônia com os povos que vivem na Amazônia, procurando a plena vida, dentro da diversidade cultural, religiosa, a questão social, ecológica. Em um mundo em que se busca o ter, o poder, o lucro, a qualquer custo, promover a vida, defender a vida, cuidar das pessoas que vivem na Amazônia, todos os povos, raças e culturas, e cuidar também da Criação, é caminhar na contramão de um projeto que busca a riqueza, o poder, agredindo a vida e a natureza. É buscar muitas vezes o lucro, a riqueza, a custa de um bem natural que está aí, que é uma riqueza que não deve ser destruída, mas preservada para o bem da vida da Criação e dos povos que vivem nessa Amazônia.

 

Como cuidar da natureza e como preservar a vida e a dignidade das pessoas que vivem aqui, é um desafio para a Igreja, e também é uma missão profética para cobrar do poder constituído para que possa de fato investir na vida e na preservação da Criação dessa região. A região sul do Amazonas é uma região de fronteira, onde vai se chegando também o desmatamento, a migração, e há um choque também cultural, com os ribeirinhos, com os indígenas, que já vivem nessa região. Então, como a gente trabalhar a evangelização sem perder o foco da preservação, do cuidado com a vida, com a criação, e acolhendo os que estão chegando para levar a se integrar a essa realidade, sem depredar, mas vivendo com dignidade e preservando aquilo que é a riqueza maior dessa região, que é a vida, a biodiversidade e toda essa riqueza cultural dos povos que já vivem mais tempo nessa região, e dos indígenas, que sempre estiveram presentes e até há pouco tempo, antes da ocupação da Amazônia, eram uma multidão.

Mapa da localização de Humaitá - AM (Foto: Reprodução/Google Maps)

Dentro dessa realidade, eu vou chegando também, embora já conheça um pouco, tenho que ir ouvindo, aprendendo, vendo, para ir caminhando como um irmão entre os irmãos e irmãs, nessa realidade amazônica, de forma que a gente possa de fato cuidar da vida, defender a vida diante daquilo que podemos fazer junto às pessoas que ali vivem, nesta realidade.

 

O Sínodo para a Amazônia faz um chamado a ser Igreja de presença nas comunidades amazônicas. Como concretizar isso em uma realidade onde tem poucos padres, religiosas, agente de pastoral, e ser uma Igreja de presença? Qual o papel que os leigos podem ter nessa Igreja?

 

Essa presença, essa Igreja em saída, que vá até o povo e caminha junto com o povo, em uma região onde a presença de presbíteros, de religiosos e religiosas, somos tão poucos, em Humaitá tem dois ou três padres diocesanos, parece, além daqueles que já estão na caminhada, dos padres diocesanos, dos religiosos e religiosas, a presença dos leigos é o que faz a diferença. A minha experiência aqui, na arquidiocese de Porto Velho, nas comunidades, também na assessoria do Regional das comunidades eclesiais de base, a gente vê que a força de nossa Igreja vem dos leigos e leigas comprometidos, de assumir a missão profética na realidade amazônica.

 

A valorização da presença dos leigos nas nossas comunidades é que vai nos ajudar a tornar a Igreja uma presença realmente ativa, participativa e também transformadora, libertadora nessa realidade. Na missão eu sou chamado a estar junto com o povo, a animar e acompanhar, incentivar e testemunhar, ouvir e aprender com eles, e juntos buscarmos superar os desafios que vamos encontrando. Ao mesmo tempo, um desafio cada vez mais a todas as lideranças da Igreja a assumir sua vocação e missão, ao serviço da vida, e no nosso caso, com todo o cuidado com a biodiversidade e a Criação, com nossa Casa Comum. Nós que vivemos nesta realidade sabemos o quanto é importante para nós e para todos os que aqui convivem.

Mapa da ecorregião amazônica definida pelo WWF. A linha amarela abrange cerca de bacia de drenagem da Amazônia. As fronteiras nacionais estão mostradas em preto (Foto: Reprodução/NASA)

Quando eu fiz as Santas Missões Populares aqui na arquidiocese, em uma das paróquias tinha uma palestra que falava da questão do cuidado com a preservação da Criação. Algumas pessoas relatavam que quando chegaram na região, aqui tinha muita água, os igarapés, os rios, muito cheio, eles acharam que nunca iria lhes faltar água, nunca iriam sentir a seca na região. Eles foram desmatando, desmatando, e agora chegou o momento em que já estava faltando, aqueles rios e igarapés muito cheios, já estavam secando.

 

É um sinal de que aqueles que chegaram e foram incentivados a devastar, destruir, aos poucos foram percebendo que essa ação traz prejuízo para aqueles que lá estão. Esse valorizar a vida, essa presença de uma Igreja leiga, uma Igreja que sai, uma Igreja missionária, uma Igreja que vai fazendo um relato do presente e do passado, das consequências da nossa presença com relação à Criação e as pessoas que vivem nessa região, é importante, de fato, para que a gente possa ter um posicionamento, de forma mais concreta em prol da vida e da preservação. De forma que, segundo eles colocavam, eles viviam na farmácia de Deus, da natureza, nós temos também as plantas medicinais, que os ajudam na curas das enfermidades, é um jardim, onde colhe a fruta, tem toda a diversidade, alimentou e alimenta ainda muita gente nessa região.

 

Então, como conviver com a floresta, como ter uma vida digna nessa região e como amar a Deus, servir aos irmãos e cuidar da preservação. Esse é um desafio para quem está na Amazônia, conviver e viver na realidade e caminhar junto com as pessoas que aqui convivem. Humaitá, pelo que eu conheço, são ribeirinhos, as duas maiores cidades, Humaitá e Manicoré ficam na beira do Madeira, e Apuí, que é formado mais por migrantes, que fica na Transamazônica. Dentro dessa realidade, que eu sou chamado a caminhar com o povo, procurar colocar o Evangelho da vida e ser essa Igreja presente, junto com o povo, caminhando com o povo, e à luz da Palavra de Deus encontrar caminhos para uma vida mais digna para todos.

 

O senhor assume seu ministério em um tempo muito marcado pela pandemia da COVID-19. O senhor tem falado que a Igreja da Amazônia tem muitos desafios, mas quais são os desafios a mais que essa pandemia coloca no futuro da Igreja da Amazônia?

 

A Igreja da Amazônia é uma Igreja pobre, que caminha com os pobres. Então, diante do caos econômico, diante da realidade das comunidades, aonde a maioria hoje está evangelizando pelas redes sociais, só que no nosso caso, na Amazônia, em Humaitá, nem todas as comunidades ribeirinhas têm acesso a esses meios. Nós estamos vivendo um tempo em que a gente tem que se readaptar e ver como chegar até as pessoas, como levar a Boa Nova da vida, como sentir o que as pessoas estão vivendo, o que está passando, quais são as dificuldades. O desafio se torna maior para nós neste momento.

 

Inclusive, a ordenação e o início do episcopado, a gente está esperando a ver como vamos fazer, se é com um pequeno grupo, se é com um grupo maior. O contato com as comunidades está um pouco parado, mas dentro da realidade, nós não podemos também agora achar que não podemos fazer nada. Dentro daquilo que é possível, a gente tem que ir encontrando saídas, caminhos de proximidade, diálogo, de encontro, de presença com as pessoas. Em uma realidade de Amazônia, de um povo sofrido, pobre, mas a gente vai caminhar junto com o povo, onde o povo vai, nós temos que ir também, caminhando como eles caminham no dia a dia, e participando daquilo que eles vão nos convidando a se integrar na realidade deles. O importante é estar sempre de prontidão para caminhar com os que lá estão, indo ao encontro da melhor forma possível.

 

Até o momento eu não fui em Humaitá, eu pretendo, como diz o povo, quando ir, de mala e cuia, ir de vez, para não ficar indo e voltando. Por enquanto, eu tenho alguns compromissos na arquidiocese, na paróquia, no seminário, com aulas, mas uns três dias antes da ordenação, que está marcada para o dia 17 de outubro, às 17 horas, em Humaitá, que eu vou, e lá vou me integrar à comunidade. Pretendo ir na humildade, na simplicidade, para ouvir, caminhar junto com eles, e assim procurarmos, de fato, uma Igreja em saída, uma Igreja presente, uma Igreja do povo e com o povo, aonde cada um de nós possamos assumir a vida e a missão como um serviço, ao povo, a Deus, no cuidado dos mais vulneráveis, dos mais necessitados, que é a maioria na nossa região.

 

Em uma entrevista, um bispo me disse que para ser padre, a gente se forma durante vários anos no seminário, enquanto ser bispo é algo que chega de um dia para outro. Como o senhor gostaria que fosse seu episcopado, o que gostaria que definisse seu ministério episcopal?

 

Eu gostaria que o que pautasse o meu serviço ao povo de Deus na Amazônia, em Humaitá, é Lucas 22, 27, "eu estou no meio de vós como aquele que serve". Eu vou lá como aquele que se coloca ao serviço do Reino de Deus, ao serviço da vida, da evangelização. Existe uma frase de Dom Pedro Casaldáliga, recentemente falecido, que eu gosto muito, que me ajuda a olhar para mim e para minha missão junto com o povo, que é “Ser o que se é. Falar o que se crê. Crer no que se prega. Viver o que se proclama, até as últimas consequências”.

 

Para a missão de servir, somos sempre aprendizes. É vivendo com o povo e a serviço do povo, que vamos encontrando caminhos para ser de fato um pastor que conhece, ama e dá a vida. Realmente não existe uma preparação específica para ser bispo, chega de repente, porém é preciso acreditar na graça de Deus, confiar, sair e servir.

 

Com relação ao ministério episcopal gostaria que fosse marcado pela proximidade com o povo, pela compaixão e a misericórdia, pela sinodalidade, cuidando da vida, da Casa Comum e assumindo a missão como uma Igreja em saída, dos pobres e com os pobres, em comunhão com o Papa Francisco, a CNBB, o Regional Noroeste, e de modo especial a Igreja que está na Amazônia, assumindo as orientações pastorais do Sínodo da Amazônia. Vou para a Diocese de Humaitá, sul do Amazonas, como um irmão entre os irmãos e irmãs a serviço do Reino nas pegadas de Jesus.

 

O Papa Francisco faz um chamado a caminhar na sinodalidade, que ele considera o jeito de ser Igreja do século XXI. Como aplicar isso, que foi amplamente discutido durante o Sínodo para a Amazônia e deve ser discutido no próximo sínodo, e trazê-lo para a realidade amazônica?

 

Esse é um apelo da realidade, da Igreja, é um chamado a todos nós a caminhar realmente nesse jeito de ser Igreja, de ouvir as pessoas, dialogar com as pessoas, e fazer um caminho de comunhão, de participação, de colaboração, aonde todas as vozes são ouvidas, aonde todos os membros têm voz e vez, e podem participar, podem contribuir. Assim a evangelização vem não de um grupo, ou de algumas pessoas ou do bispo, mas de toda uma Igreja que senta junto, que conversa, que partilha, que dá sua contribuição. Eu, que tenho um pouco também das comunidades eclesiais de base, elas têm um pouco nosso jeito de ser, de viver, de partilhar, de evangelizar, de enfrentar os problemas que surgem na Igreja e na sociedade.

 

É algo que nos ajuda de fato a ser uma Igreja de comunhão, de participação e de missão, onde todos os seus membros têm voz e vez, e podem evangelizar, trabalhar, servir, da melhor forma possível, a partir da Palavra de Deus e da própria orientação da Igreja, no caso nosso aqui, do Sínodo da Amazônia, que aponta caminhos também, diante de tantos gritos que nós temos na Amazônia, da diversidade amazônica, dos sonhos, como o Papa Francisco colocou, o sonho social, cultural, ecológico e desse sonho eclesial, onde a Igreja é uma voz no meio de tantas vozes, mas que nós devemos dar o nosso testemunho. Devemos ser coerentes na profecia, no anúncio, no testemunho, na defesa da vida, na prática da doação.

 

Esse novo jeito, que é o melhor jeito de ser e viver na Igreja, é um chamado a fazer acontecer também na nossa realidade, principalmente nós que estamos aqui na Amazônia. Com certeza, em Humaitá, não vamos caminhar na contramão, mas junto com os irmãos, a partir daquilo que nos é apontado para exercer a nossa missão nesta nossa região. Onde juntos possamos de fato viver essa vida de irmãos, dando as mãos e trabalhando no Reino de Deus, em prol de um mundo melhor, de uma vida melhor, na Igreja e na sociedade.

 

O que o senhor pede diante da nova missão?

 

Eu peço a benção de todos os que nos acompanham nesse primeiro momento, e a oração, a fim de que eu possa exercer esse ministério, ao serviço do povo de Deus, com mansidão, com misericórdia, com compaixão, com humildade, simplicidade e com generosidade, em prol da missão que eu fui chamado a exercer nessa região, de modo particular na diocese de Humaitá. Eu vou lá com alegria, com disponibilidade, e como você perguntou no primeiro momento, não é que eu fiquei assustado, porque graças a Deus eu não tenho medo de ir, mas eu fiz uma retrospectiva naquele dia que Dom Roque me falou, me chamou, da minha vida, de onde eu saí, por onde eu passei e onde eu cheguei.

Foto: Luis Miguel Modino

Tem todo um processo, sou cearense, vim para cá como migrante, como a maioria das pessoas que estão aqui, em Rondônia. Aqui cheguei, me formei nessa Igreja da Amazônia, agora sou chamado a dar mais essa contribuição. Então, eu peço a oração, e também a ajuda de todos, que possam me apontar caminhos para que eu possa exercer essa missão de uma forma que possa produzir frutos para a Igreja e para a Amazônia.

 

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