10 Julho 2020
"A vida eterna no amor pregado pelo cristianismo não começa após a morte. Ela estava lá antes de nascermos, está lá agora e estará “depois”: ela representa uma dimensão e uma qualidade de existência que ultrapassa o conceito de tempo", escreve Fred van Iersel, em artigo publicado por La Croix International, 09-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Fred van Iersel leciona religião e ética no contexto das forças armadas na Universidade de Tilburg, na Holanda. É também professor de encíclicas sociais no Instituto Internacional Canon Triest, em Gent, na Bélgica.
Este artigo foi originalmente publicado no jornal holandês Nederlands Dagblad.
O que a experiência e o gerenciamento da crise do coronavírus revelam sobre a população em geral e como nos relacionamos com a morte? A nossa cultura, nossa maneira holandesa de lidar com a morte, colocou nosso governo sob pressão desproporcional?
Precisamos perceber que o governo realmente não pode garantir a vida de ninguém.
Pela mesma razão filosófica, a filósofa americana Judith Butler chega a negar o direito à vida como um direito universal, o qual a Holanda reconheceu na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Na verdade, diz Butler, ninguém pode garantir esse direito, porque somos todos mortais.
Naturalmente, isso não exclui, de forma alguma, o compromisso do governo de fazer todo o possível para impedir a morte dos mais vulneráveis.
Mas essa visão de Butler sobre o direito à vida destaca os limites desse compromisso. Esses limites tocam a cultura holandesa. Atualmente, a prosperidade e o bem-estar tornaram-se tão atrativos que gostaríamos de mantê-los para sempre.
Em sua maior parte, a Holanda é um país secular. Nas últimas décadas, a fé na vida após a morte tem diminuído drasticamente; e, ao mesmo tempo, o desejo de uma vida longa, feliz e saudável cresceu a tal ponto que as pessoas não apenas acreditam que podem desejar uma vida longa, mas também que têm o direito a uma vida longa, feliz e saudável. E quem deve garantir esse direito? O governo!
Segue-se, portanto, que muitos holandeses buscam pelo significado da vida antes da morte e, assim, muitos consideram a saúde o valor mais alto. Ela é o pré-requisito direto para adiar a morte e se engajar em atividades significativas, que consistem no autoaperfeiçoamento e na autoexpressão.
De acordo com o psicólogo americano Roy Baumeister, podemos entender o significado da vida como o resultado do reforço mútuo entre autorrealização e autoestima. Esse reforço mútuo parece tornar as pessoas significativamente mais felizes.
A saúde oferece a possibilidade de exercer a autorrealização (o controle sobre a própria vida) que a maioria dos seres humanos precisa para ter autoestima.
Para uns, esse controle independente chega a ser uma condição essencial para permanecer vivo, como se revelou, por exemplo, nas discussões holandesas sobre a eutanásia.
Ainda somos capazes, em nossa cultura, de aceitar a morte como algo que faz parte da vida? Em muitas culturas antigas e nos estágios iniciais da cultura europeia, as pessoas eram mais capazes de aceitar a morte do que nós. Será que talvez não tenhamos lutado com sucesso apenas contra a morte, mas também a removemos, tanto coletivamente quanto individualmente?
Ao longo dos tempos, as pessoas viveram com uma visão completamente contrária da vida: foi o significado da vida [a fé em algo] que tornou útil e significativa [digna de se fazer] a satisfação das necessidades físicas e mentais.
Mas, hoje, a pirâmide de Maslow foi refeita; o significado da vida relaciona-se com os níveis mais altos da pirâmide de Maslow: a autorrealização e autotranscendência, ambas as quais só podemos alcançar depois que satisfazermos as necessidades físicas e mentais.
Mas há uma desvantagem: a de que, com essa visão de significação e motivação pessoal, a resiliência moral da humanidade e a cultura estão sendo atacadas.
É isso exatamente o que estamos descobrindo com a crise do coronavírus.
O significado não é mais a cereja do bolo, mas uma condição necessária para a resolução do problema. É por isso que a resiliência está agora em toda parte, no topo das pautas da cultura política. Essa força de reação é um elemento-chave da significância.
Aquele que faz parte de uma cultura que abraça a pirâmide de Maslow não é resiliente.
Podemos resumir cinicamente a aplicação da teoria motivacional de Maslow à nossa cultura da seguinte forma: a prosperidade fortalece a secularização, depois a secularização fortalece a remoção da morte e conduz as pessoas a colocarem o “eu” e a autorrealização em primeiro lugar.
Mas quando as pessoas finalmente obtiverem sucesso na autorrealização e na autotranscendência, tanto Deus quanto literalmente o próximo necessitado terão desaparecido da visão comum como fonte de significado. Pensemos nos doentes que vivem nas favelas espalhadas pelo mundo ou nos habitantes dos campos de refugiados.
Nos países ocidentais ricos, temos muito a perder. Contudo, o Ocidente parece já ter perdido em grande parte o mais importante de tudo: a confiança na origem e no objetivo da humanidade: o amor universal e eterno de Deus.
A vida eterna no amor pregado pelo cristianismo não começa após a morte. Ela estava lá antes de nascermos, está lá agora e estará “depois”: ela representa uma dimensão e uma qualidade de existência que ultrapassa o conceito de tempo.
A eternidade não é, portanto, a construção abstrata de “um quarto tempo” após nosso passado, presente e futuro aparente.
Na ideia cristã de vida eterna, a vida terrena tem valor, mas precisa realizar-se através da qualidade chamada vida eterna. Deus como Criador dá dignidade aos seres humanos e como Redentor (ao se tornar humano) nos fortalece e aperfeiçoa o amor após a morte.
A fé cristã entendida dessa maneira fortalece a autoestima, na medida em que é boa; e diminui a importância da autodeterminação total. O cristianismo não crê que a morte tenha a última palavra sobre a existência humana: o amor de Deus ultrapassa esse limite.
A morte é real, mas não é mais onipotente e, portanto, menos intimidadora.
Além disso, não é de forma alguma certo que todos os idosos vulneráveis que vivem na Holanda compartilham a opinião de que a assistência à saúde e a economia devem estar voltados precisamente para a sobrevivência terrena deles.
São exatamente os idosos quem muitas vezes sabe que inexiste vida sem a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, morreremos e que, em sentido absoluto, não é possível evitar todos os riscos de morte.
Como estes que não acreditam que a morte é o fim de tudo estão passando a atual crise do coronavírus? Eles existem! Mas por que não os vemos e quase nunca os ouvimos em programas de entrevistas?
Não é chegada a hora de refletirmos sobre a palavra culturalmente desconfortável de Jesus de Nazaré: quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la (Marcos 8,35)?
Mas o significado vai além. Atinge os fundamentos da nossa cultura. Os políticos não podem se dar ao luxo de dar a impressão de não defenderem os fracos. De certa forma, nós holandeses podemos nos considerar sortudos por isto: melhor um escudo para os fracos do que um governo indiferente.
No entanto, os cidadãos devem se pronunciar mais abertamente sobre aquele outro problema crucial em nossa cultura ocidental: a futilidade ulterior da necessidade de um controle completo, que apenas intensifica o nosso medo da morte, com receio de que o limite entre a luta contra a morte prematura desnecessária e a tentativa eliminar a morte ficará cada vez mais desfocado.