O Mar da Unidade: roteiro livre para a leitura do Masnavi de Rûmî

Arte IHU

Por: Faustino Teixeira | Edição: Ricardo Machado | 29 Mai 2020

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

Ao querido
Marco Lucchesi


Tenho me dedicado ao estudo da mística comparada das religiões há algumas décadas, incluindo um carinho muito especial com o pensamento de Rûmî. Sobre ele escrevi alguns artigos. Nunca, porém, aventurei-me em desbravar o mar enigmático de seu Masnavi (Mathnavî), que talvez seja um dos ápices de toda a mística universal, um dos “livros sagrados da humanidade”. Não sem razão vem sendo tratado como o Corão em língua persa, visto nos países do islã como um dos mais profundos comentários do Corão. O objetivo mesmo do livro, na linha da mais profunda perspectiva islâmica, é a busca da unidade e do amor. Para Rûmî, o caminho que leva ao Mistério Maior é o do amor e da hospitalidade. O sufismo, para ele, resume-se na celebração de uma alegria. Encontrar o sufismo, diz Rûmî, “é encontrar alegria no coração” (MP3, 188).

O Masnavi, em seus seis livros, e mais de 1.700 páginas, não é apenas um tratado iniciático, de linguagem esotérica, mas igualmente um livro de poesia, filosofia e comentário da teologia do islã, em perspectiva original e profunda. Há também no livro reflexões psicológicas e pedagógicas, além de um exemplar senso de humor e ironia inimitáveis[1]! Para o leitor desatento, o acesso vem obstaculizado em razão da peculiaridade da narrativa, do estilo enigmático que envolve, da dinâmica redacional. É difícil captar com segurança o pensamento de Rûmî, suas convicções pessoais, em razão das idas e vindas, e mesmo de passos que podem delinear marcos contraditórios no conteúdo apresentado. Em passos concretos, uma ideia vem lançada, e só bem mais adiante vem desenvolvida, dificultando a compreensão límpida. Ocorre ainda, nos diversos livros da obra, a presença de “significações múltiplas e escondidas”, típicas da linguagem esotérica. É como se o guia espiritual (Pîr) reservasse o acesso ao significado aos portadores de um coração preparado e receptivo. Temos então, na obra, ao lado de um nível explicativo, um nível mais profundo, que é o simbólico. Como assinala Meyerovitch, nos diversos contos esotéricos apresentados, as “significações encobertas ultrapassam os limites de um simbolismo decifrável”, pois o que se apresenta é um caminho místico [2].

 

 

As peculiaridades envolvem também as traduções do Masnavi. Há a clássica tradução inglesa de Nicholson, em dois volumes, lançada entre os anos 1924 e 1934, que tem algumas nuances distintas da procedida por Meyerovitch, sem, porém, romper com a proximidade. Mais tarde veio a tradução italiana, publicada em 2006, de autoria de Gabriel Mandel Khân, numa formosa edição [3]. Os tradutores são unânimes em acentuar a dificuldade de traduzir os dísticos de Rûmî, em razão do simbolismo multidimensional e da expressão poética esotérica presentes. Há também a edição resumida brasileira, baseada na tradução inglesa de E.H. Whinfield, com tradução de Mônica Udler e Ana Maria Sarda [4]. É a edição que servirá de base para o texto, bem como a versão francesa de Meyerovitch.

Na visão da tradutora francesa, Eva de Vitray Meyerovitch, os temas centrais do Masnavi giram em torno da unidade da existência, do amor e da tolerância. A seu ver, Rûmî expressa a mais nobre abertura inter-religiosa. O que importa para ele é o amor dedicado a Deus e aos outros. As diversas confissões religiosas são envolvidas pelo abraço do amor, e os “verdadeiros adoradores estão todos no mesmo caminho” [5].

Nesse capítulo, não tenho a pretensão de seguir uma regularidade, sistematicidade e fidelidade a toda prova. O que busquei fazer é apenas indicar os temas que vão aparecendo nos diversos livros, em ordem cronológica, mesmo que isto incida em repetições. A intenção é mesmo ajudar os leitores a adentrarem-se no complexo universo da mística de Rûmî.

O trabalho veio facilitado pelo ousado curso que dei no doutorado em Ciência da Religião, no ano de 2003, para dois alunos do doutorado. Foi um trabalho árduo, semanal, onde, com o recurso das traduções integrais francesa e inglesa, fomos desvendando, num rico debate, os meandros mais enigmáticos e sedutores dos dísticos que delineiam os seis livros do Masnavi. Farei igualmente recurso ao “copião” que orientou as reflexões semanais, e que nunca foi publicado.

 

Imagem do Masnavi, uma das edições originais

 

Livro I

O primeiro livro abre-se com o belo prólogo do lamento da flauta, e partilho alguns trechos:

“Escuta a flauta de bambu, como se queixa,
Lamentando seu desterro:
‘Desde que me separaram de minha raiz,
Minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres.

Meu peito se rompe, lutando para libertar meus suspiros,
E expressar os acessos de saudade de meu lugar.
Aquele que mora longe de sua casa
Está sempre ansiando pelo dia em que há de voltar.
Ouve-se meu lamento por toda a gente,
Em harmonia com os que se alegram e os que choram.
Cada um interpreta minhas notas de acordo com seus sentimentos.

Mas ninguém penetra os segredos do meu coração.
Meus segredos não destoam de minhas notas queixosas,
E no entanto não se manifestam ao ouvido sensual (...).

O lamento da flauta é fogo, e não puro ar.
Que aquele que carece desse fogo seja tido como morto!
É o fogo do amor que inspira a flauta,
É o amor que fermenta o vinho.
A flauta é confidente dos amantes infelizes;
Sim, sua melodia desnuda meus segredos mais íntimos” (...) [6] .

O lamento da flauta desdobra-se numa magnífica ode ao amor. O amor vem visto como uma “doce loucura”, aquela que cura as enfermidades:

“O amor eleva aos céus nossos corpos terrenos,
E faz até os montes dançarem de alegria!
Ó amante, foi o amor que deu vida ao Monte Sinai,
Quando ‘o monte estremeceu e Moisés perdeu os sentidos’.
Se meu amado apenas me tocasse com seus lábios
Também eu, como a flauta, romperia em melodias.
Mas aquele que se aparta dos que falam sua língua
Ainda que tenha cem vozes, é forçosamente mudo.
Depois que a rosa perde a cor e o jardim fenece,
Não se ouve mais a canção do rouxinol.

O Amado é tudo em tudo, o amante, apenas seu véu;
Só o Amado é que vive, o amante é coisa morta.
Quando o amante não sente as esporas do Amor,
Ele é como um pássaro que perdeu as asas (...).
O Amor quer ver seu segredo revelado,
Pois se o espelho não reflete, de que servirá?
Sabes por que teu espelho não reflete?
Porque a ferrugem não foi retirada de sua face.
Fosse ele purificado de toda ferrugem e mácula,
Refletiria o brilho do Sol de Deus” (MP1, 18-19; MF 1, 10-30 )[7].

 

 

São inúmeras histórias narradas no Masnavi, e no entremeio, a reflexão mística e metafísica de Rûmî vai se insinuando de forma rica, prazerosa e original, bem no ritmo da poética persa, que é saborosa. Na primeira história, do príncipe e da criada (I), o tema em pauta é o amor. Como diz Mevlana [8], o amor não se enquadra nas descrições tradicionais: “Por mais que se descreva ou se explique o amor, quando nos apaixonamos envergonhamo-nos de nossas palavras” (MP, 20; MF, 112). O amor sem palavras, diz Rûmî, é habitado por maior claridade (MF, 113). Diz ainda: “Quando a pena se apressou a escrever, ao chegar no tema do Amor, partiu-se em duas” (MP, 20 e MF, 114). Rûmî recorre ao exemplo do Sol, para indicar que ninguém senão Ele pode revelar seus segredos: “Só o Sol revela a luz da vida” (MP, 21); e só o Amor “pode explicar o amor e os amantes” (MP, 21).

Sem precisar entrar em detalhes, a história fala da doença de uma moça pela qual o príncipe foi tomado de amores. Ninguém conseguia identificar a razão de seu sofrimento, até que um santo convocado pelo rei identificou o mal, e o conseguiu através de um processo psicológico bem semelhante à psicanálise. Ele tomou a mão da moça e pediu para ela narrar sua história. Quando ela falou sobre a cidade de Samarkanda, o seu pulso revelou que ali estava a origem do mal, numa difícil história de amor. O diagnóstico veio logo, com o aumento da frequência da pulsação e do empalidecimento do rosto (MF1, 158 e 167-168). E a história continua... [9].

Na história do azeiteiro e do papagaio (II) [10] , Rûmî aborda a complexa questão da tensão entre os sentidos mundanos e os sentidos espirituais, ou o sentido psíquico e o sentido espiritual. Isto está relacionado a um tema recorrente em Rûmî, que é a tensão entre o mundo das formas e o mundo da realidade. Rûmî assinala que “na gota de sangue do coração inscreve-se uma joia que Deus se reservou de dar aos mares e aos céus” (MF1, 1017). Existe um “leite” que é precioso, pois provém da consciência sublime. Não há por que ficar restrito ao mundo das formas, da superficialidade, há que se arriscar ousadamente no oceano do Real, no “sol da alma” (MF1, 1025). Na visão de Rûmî, “os sentidos mundanos são a escada da terra, os sentidos espirituais são a escada do céu” (MP1, 24). A verdadeira saúde só pode ser desvelada “junto ao Amigo”, e isto significa “afogar-se e ser absorvido n’Ele” (MP1, 24).

Ao tratar a história do leão e os animais (V), Rûmî destaca a tensão que existe entre os esforços humanos e a confiança em Deus. Os que se firmam nas ciências dos sentidos (exotéricos) não hospedam o leite do conhecimento sublime. São aqueles que estão presos ao mundo das formas e não captam a joia mais rara (MF1, 1018 e 1021). Aos que se prendem às formas, ao que adoram as formas, o segredo da “gota de pérola” fica escamoteado. O que a eles escapa é o que é o essencial da vida. As formas superficiais, nos diz Rûmî, são como a espuma que esconde o Mar. O “doador do segredo” encontra-se para além, no Mistério mais fundo do Mar (MP1, 39). Para atingir o Oceano é necessário um “mergulhador”, e mergulhadores não precisam de sapatos. Os que se prendem às formas estão com os lábios secos, incapazes de acessar “o vermelho, o verde e o escarlate” (MP1, 40) [11]. Diz Mevlana num dístico: “Quando tua vista é ofuscada por cores, essas cores velam de ti a luz” (MP1, 40 e MF1, 1122). Na história narrada por Rûmî, os animais são exaltados pela lebre para lutar contra a tirania do leão, que vem identificado com a alma carnal (nafs) [12] (MP1, 42). O combate mais essencial, diz Mevlana, é o que se trava interiormente, a verdadeira jihad, que é a guerra contra o inimigo interior, os desejos da superficialidade (MP1, 42; MF1, 1374).

 

Flautistas Sufi

 

Na história de Omar e o embaixador (VI), o místico afegão volta a abordar esse trabalho interior de purificação do coração. Para alguns estudiosos, nessa história está também refletido o encontro precioso de Rûmî com Shams de Tabriz. O grande palácio almejado, o santo Pórtico, só vem contemplado pelo buscador quando seu coração vem desobstruído (MF1, 1394-1396). É Omar quem instrui o embaixador na preciosa doutrina da união mística com Deus (MP1, 42). Na visão de Rûmî a liberdade deve ser banhada pela ação de Deus: “A ação de Deus é a causa de nossa ação” (MP1, 45). Em outros momentos, o nosso místico recorre ao livro do Corão para sinalizar essa precedência do Mistério: “Não foste tu que atiraste as flechas quando atiraste: foi Deus quem atirou” [13]. Cabe ao coração o dom receptivo da acolhida desse “reservatório dos mistérios” (MP1, 45).

Em outra história, do mercador e seu papagaio inteligente (VII), Mevlana aponta o significado da verdadeira prece. Fala-se ali num papagaio preso na gaiola do mercador, que em certo momento engana o seu dono e foge voando. O tema vem aproveitado por Rûmî para falar do limite do engaiolamento da religião: “Aquele a quem o santuário da verdadeira prece é revelado, considera vergonhoso voltar à mera religião formal” (MP1, 47 e MF1, 1765). Para nós que estudamos a mística, esse é um dado muito presente nos autênticos buscadores espirituais: o que eles almejam, ardentemente, é o Mar mais amplo do Mistério, para além dos “penduricalhos” rituais. Com isso, muitos conflitos começam a emergir, sempre prejudicando os buscadores. O precioso Mistério é livre de todos os nós e amarras. Os rituais podem servir de suportes teofânicos, para utilizar uma expressão de Ibn Arabi, mas eles não são um fim em si mesmo. São o dedo que aponta para a Lua, e não a Lua. O “Tu” do Amado é livre de “nós” e de “eu” (MP1, 49). Não há como ser absorvido no Amado a não ser quando nos libertamos do “eu”, do “nós” e do “vós” (MP1, 49).

Na história do árabe e sua mulher (IX), emerge a disputa entre a razão e o desejo (avidez). No relato, a mulher, que vivia com seu marido no deserto em grande pobreza, acaba perdendo a paciência e, tomada de desgosto, xinga o marido, exigindo uma mudança na situação. Ele reage e se defende, amparado nas palavras do profeta: “A pobreza é a minha glória” (MP1, 54). Rûmî vislumbra nessa discórdia uma parábola, que simboliza a tensão entre a nafs e a razão. Esta última ultrapassa os apegos ambiciosos e volta-se para o pensamento mais nobre, que é o de Allah. Ele indaga: “Sabes como o discernimento chega à percepção? Quando ela ‘vê pela luz de Allah’” (MP1, 58). Quando ele, o amor de Deus, “acende uma chama no homem interior, ele arde e se torna livre dos efeitos” (MP1, 51). O Mistério Maior não está contido em coisa alguma, nem na terra, nem no céu, “nem mesmo no mais alto céu [14]. Tenhas certeza disso, ó amado! No entanto, estou contido no coração daquele que crê! Se me buscas, procura nesses corações” (MP1, 60) [16]. Rûmî busca relativizar o campo dessa “concha terrena” [15] e suas ambições, sempre embaraçada pela “espuma de espuma”, acentuando o papel da iluminação, do Real que nos envolve: “Nossas almas foram iluminadas por teu espírito, muito, muito antes que a Terra o desviasse para ela”. Há um tesouro enterrado na terra, e cabe ao buscador dispor-se a ver (MP1, 60) [16]. O mestre Mevlana nos adverte com essa história que a maior riqueza é “a visão do Um”. Quem vem tocado por essa sinfonia, torna-se alguém adornado, como a rosa ou lírio, e “a primavera traz alegria”. Num poema clássico de seu Divan de Shams de Tabriz, Rûmî dizia que “para mudar a paisagem, basta mudar o que sentes” [17] . O sufismo traz essa marca da alegria, como nos lembra Rûmî numa passagem do Terceiro Livro do Masnavi (MF3, 3261).

 

Capa da Revista IHU On-Line

 

Em outra história, Rûmî fala do leão que caçou com o lobo e a raposa (XI). Há um momento no relato, que o leão se enfurece com o lobo por falar em “eu” [18] e “tu” e “minha lebre”. Para o rei da floresta, tudo pertencia a ele. Com essa história Rûmî abre espaço para falar de um dos temas mais presentes na sua mística, que é a aniquilação do eu , de forma a favorecer o brilho radical do Mistério. Ao longo da história há o clássico relato:

Certa vez, um homem veio bater à porta de seu amigo.
Seu amigo disse: “Quem és tu, ó homem fiel?”
Ele disse: “Sou eu”.
O outro respondeu: “Não podes entrar,
Não há lugar para o ‘cru’ em meu cozido banquete [19].
Nada senão o fogo da separação e da ausência
Pode cozinhar o cru e livrá-lo da hipocrisia!
Já que teu ‘eu’ ainda não te deixou
Deves ser queimado em chama ardente”.

O pobre homem se foi, e por um ano inteiro
Viajou ardendo de dor pela ausência do amigo.
Seu coração ardeu até que cozinhou;
Então ele voltou e aproximou-se da casa de seu amigo.
Bateu à porta com temor e agitação [20],
De modo que alguma palavra descuidada lhe saísse dos lábios.
Seu amigo gritou: “Quem está à minha porta?”
Ele respondeu: “És tu que estás à porta, ó Amado! [21]
O amigo disse: “Já que sou eu, que eu entre;
Não há lugar para dois ‘eus’ em uma só casa” (MP1, 67-68).

Na história de José e o espelho (XII), Rûmî narra a história de um amigo que presenteia José com um espelho, motivando-o a apreciar nele sua beleza. O amigo sublinhou que é da beleza que o espelho se ocupa. Reiterou, porém, que o verdadeiro espelho do ser é o não-ser, e que é ali, nesse vazio, que o ser pode autenticamente exibir-se. Rûmî serve-se dessa história para indicar que só aqueles que reconhecem seus próprios defeitos, conseguem trilhar “mais depressa o caminho que leva à perfeição”. Não pode avançar em direção ao Todo-Poderoso “aquele que se imagina perfeito” (MP1, 69).

O equívoco de um apego excessivo à consciência é o tema de outra história do Masnavi, o escriba e o profeta (XIII). Há uma resistência de Rûmî ao saber filosófico que recusa a Divina Providência. Trata-se, para ele, de uma “vã negação”. Há uma fragilidade essencial em todo conhecimento desprovido desse dom de Deus: “Sem tua proteção não há senão perplexidade” (MP1, 80). O conhecimento que não provém de Deus, diz Rûmî, é algo fadado a não durar, como as frágeis maquiagens. É um conhecimento que não “participa das percepções dos santos” (MP1, 71) e que está ancorado unicamente nos sentidos, diversamente da “ciência dos místicos”, que os elevam às alturas (MF1, 3446).

Com base na história dos artistas chineses e bizantinos (XIV), Rûmî se dá conta que o melhor pintor não é aquele que faz os desenhos mais nobres, mas aqueles que são dotados da arte de polir [22]. Na disputa entre os dois grupos, venceram os bizantinos, que como os sufis, são capazes de fazer um tal polimento que as cores que se refletem nas paredes proporcionam “uma infindável variedade de tons e matizes”. Para Rûmî, os bizantinos vencem a contenda por serem mestres em “tirar a ferrugem”. É o que fazem os sufis, no seu trabalho interior de polimento do peito, rasgando as malhas do desejo, da ambição, da ganância e do ódio (MF1, 3483-3484), visando atingir a “essência brilhante”. Como opção, Rûmî dá preferência ao conhecimento do coração, ao saber cordial, que está acima dos meros nomes e letras. E elevar acima disto é “libertar-se do eu de um golpe só” (MP1, 73). O coração é órgão proteico e místico, que está sempre em movimento, disponibilizando-se a captar inumeráveis imagens (MF1, 3485).

 

Livro II

Na abertura do Livro II, Rûmî firma a definição do Masnavi como um “purificador dos espíritos” (MF2, 6). Como é sobretudo um livro para iniciados, Mevlana indica a importância da manutenção do silêncio para manter acesa a atenção aos desígnios do Mistério: “Feche a boca a fim de ver claramente” (MF2, 11). Para tanto, os sensos espirituais, que são nutridos pelo Sol, devem estar acionados. Para além do mundo de “água e argila”, o buscador é convocado a sintonizar-se com a mirada do coração, que favorece a pureza e clareza (MF2, 72). O coração possibilita “a abertura das portas (da Realidade) para o místico” (MF2, 165). O Mistério Maior, que se manifesta de distintas formas, embaraça a visão tanto de transcendentalistas como imanentistas (MF2, 57).

O nome da primeira história desse livro II do Masnavi é o asno do sufi (I). Como ocorre com as outras histórias, uma série de questões são apresentadas, entre as quais a que trata do valor das expressões de sentimento religioso. Para Rûmî, esse sentimento deriva do “estado da mente de que procedem”. Dá um exemplo interessante, sinalizando que “as palavras ‘Eu sou a Verdade’ ganham um significado distinto quando são ditas por Al Hallaj e pelo Faraó. No primeiro caso, elas refletem luz; no segundo, elas refletem blasfêmia. As palavras santas, diz Rûmî, “não permanecem nos corações cegos, mas retornam à luz de onde provieram” (MF2, 316). Cada expressão traduz um estado da mente. Se o tolo pronuncia palavras piedosas, elas não o afetam, mesmo que venham escritas. Diz Rûmî: “A sabedoria afasta sua face de ti (...), aparta-se de ti e foge!” (MP2, 90; MF2, 320).

 

Ilustração com Rumi e bailarinos Sufi

 

Na segunda história, sobre o mendigo e os prisioneiros (II), Rûmî volta a falar do conflito entre as formas exteriores e a pureza interior. Como ele indica, o amor “não depende da forma exterior ou do rosto” (MP2, 94). Os raios de sol que batem no muro, retoma Rûmî, perdem o seu vigor com uma luz que se revela emprestada. O místico adverte o fiel para deixar de confiar seu coração a meras pedras, mas buscar “a fonte de luz que brilha sempre” (MP2, 95). Essa busca requer paciência e constância.

Outra história interessante, no início do segundo livro, é a do homem sedento que atirou tijolos na água (V). Não podendo beber a água do poço em razão do obstáculo de um muro, o sedento passou a atirar tijolos do alto do muro em direção à água. A água reagiu, gritando: “Que vantagem levas fazendo isso?”. Ele respondeu: “A primeira vantagem é que escuto tua voz; e a segunda, que quanto mais tijolos eu tiro do muro, mais perto chego de ti” (MP2, 102). Como recado deixado pelo místico afegão, a ideia de que enquanto existir o obstáculo do muro do corpo, mais difícil de “alcançar a água da vida” (MP, 102). O caminho que se abre ao buscador não se vincula aos meros sentidos, pois sua luz é opaca e densa e não favorece o horizonte mais alto. Para Rûmî, em todas as ações deve prevalecer a primazia de Deus: “Não fostes tu que atiraste quando atiraste” (MP2, 103).

A história de Moisés e o pastor (VII) é de uma beleza única para entender o pensamento de abertura inter-religiosa de Mevlana. Trata-se da narrativa de um pastor que rezava de forma livre, comovente, a Deus e foi advertido severamente por Moisés, representante da legalidade religiosa. Atormentado e envergonhado pela advertência, o pastor rasga suas roupas e foge para o deserto. É quando então Moisés recebe uma dura advertência de Deus, que o chama de tolo por ter, na prática, incentivado a separação de um fiel simples e verdadeiro. E Deus brada a Moisés que a cada pessoa destinou formas de expressão peculiares e explicita o seu dom misericordioso: “Não considero o exterior e as palavras. Considero o interior e o estado do coração”. Mais que tudo, o que deseja é um “coração ardente” [23], marcado pela “chama do amor” (MP2, 108-109; MF2, 1760) [24]. Deus expressa que sua religião é a do amor, e que não é necessário as pessoas voltarem-se para a Caaba, quando ela já faz parte de seu mundo interior. E numa linda expressão sinalizou que “mergulhadores não precisam de sapatos” (MP2, 109; MF2, 1762 e 1768). Em seguida, Deus derrama no mais profundo coração de Moisés os mistérios que não se pode falar (MF2, 1772). Foi quando então Moisés, arrependido, vai em busca do pastor no deserto e encontrando-o expressa sua concordância com ele: “Não busques nenhuma regra nem método de adoração; diga simplesmente o que teu afligido coração deseja”. E concluiu: “Tua blasfêmia é a verdadeira religião, e a religião é a luz do espírito” (MF2, 1784 e 1785). Ao final, Rûmî sublinha que esta hospitalidade divina decorre de sua profunda Misericórdia (MF2, 1797).

 

Mística e orações orientais compõem a teologia islâmica de de Rûmî

 

Na história que trata do homem que fez de um urso seu bicho de estimação, depois de salvá-lo do ataque de uma serpente (VIII), Rûmî trata de um dos temas mais bonitos de sua mística, que é a profunda Misericórdia de Deus. Ele diz: “Não busques a água; mostra apenas que estás sedento, e a água jorrará a teu redor” (MP2, 112; MF2, 1940) [25] . Ao sedento, basta que se incline para então receber o dom do “vinho da Misericórdia, tornando-se ébrio”. Não há fonte mais potente do que a Misericórdia de Deus (MF2, 1952). Os homens santos, diz Rûmî, são aqueles que ouvem o gemido dos oprimidos e correm apressados em sua direção, seguindo o lume da Misericórdia de Deus (MF2, 1934).

Outra bela história é a que aborda o caminho de Bayazid e o santo (X). Era um famoso sufi, de Khorassan, que viveu no terceiro século de nossa Era Comum. Em conversa com um sábio, relatou a singularidade de sua experiência e o caminho de sua devoção. Era alguém livre das regras instituídas, sentindo-se habitado pela Presença divina: “Dá sete voltas ao meu redor, considera isso melhor que a circum-ambulação da Caaba” (MP2, 115; MF2, 2241). Bayazid reconhece a Caaba como casa de culto a Deus, mas reconhece igualmente a centralidade da Casa da consciência mais íntima, espaço privilegiado para “contemplar a luz de Deus no homem” (MF2, 2249; MP2, 116).

Rûmî exalta a dádiva da doença, da fadiga e da insônia. São momentos privilegiados da visita de Deus, com seu toque de Misericórdia. Ele diz: “Deus com sua generosidade e favor, mandou-me essa dor e essa doença na minha velhice; Ele me deu essa dor nas costas, para que eu não deixe de despertar de meu sono à meia-noite; para que eu não durma a noite inteira como o gado, Deus em Sua misericórdia enviou-me essas dores” (MP2, 116-117; MF2, 2257-2258) [26]. Para Mevlana, o sofrimento é uma dádiva que vem subtraída das misericórdias. A amêndoa só se torna macia quando vem retirada da casca (MP2, 117; MF2, 2261). As primaveras, na verdade, escondem-se no outono: “Os outonos estão carregados de primavera; não fuja deles” (MP2, 117; MF2, 2264). Não há como fugir da dor, nos diz Rûmî, seria como dizer: “Eu sou Deus” (MF2, 2521).

Ainda nos comentários da história X, Rûmî menciona a belíssima Sura A manhã (Wa’l Duhâ) [27], que fala da Presença de Deus que não abandona jamais o fiel, seja no esplendor do meio-dia ou no cair da noite. A Misericórdia de Deus é um dom maravilhoso, e não vacila um momento sequer, estando sempre à disposição do buscador (MF2, 2533). A Misericórdia de Deus envolve crentes e também os outros. Essa é uma reflexão enigmática de Rûmî, que indica igualmente a complexidade como ele trabalha o tema do mal. Tanto a infidelidade como a fidelidade, diz Rûmî, “dão testemunho d’Ele” (MP2, 119; MF2, 2542) [28] . Todas as duas prosternam-se “diante de Sua Majestade” (MF2, 2543). Ele dá o exemplo do bom artista, que com sua arte é capaz de pintar com destreza coisas bonitas e feias: “Se ele não pudesse pintar coisas feias, careceria de habilidade” (MP2, 119). No livro VI, Rûmî aborda uma interrogação feita por um sufi ao cádi [29]. Ele tinha dificuldades de entender como os males e infortúnios poderiam ser atribuídos a Deus. E a resposta veio certeira: “Aquilo que nos parece bem ou mal não tem existência absoluta, mas é simplesmente como a espuma na superfície do vasto oceano”. E esses infortúnios ocorridos com os fiéis, continua, serão “amplamente compensados na vida divina” (MP6, 349). A poesia de Rûmî está sempre louvando a Misericórdia de Deus, que não nos abandona momento algum: “Fazei nosso caminho agradável como um jardim, e sede Vós, ó Santíssimo, nossa meta” (MP2, 119).

 

Bailarino Sufi

 

E novamente o tema recorrente do Amor de Deus. A simples ideia ou menção do Amado já preenche o coração de alegria. A razão de ser da existência é testemunhar esse Amor: “Onde quer que ele acenda Sua tocha destruidora, miríades de almas amantes queimam-se nela. Os amantes que vivem dentro do santuário são mariposas, queimadas na tocha da face do Amado” (MP2, 121; MF2, 2575) [30]. A imagem do Amigo, como um selo, está gravada no segredo dos corações (MF2, 2573).

Na história de Moávia e Iblis (XI), Rûmî narra um episódio na vida de Moávia, que era o primeiro dos Califas Omíadas, e certo dia que foi despertado por um estranho que era Iblis, o demônio. Iblis convocava-o para a oração. Diante da desconfiança de Moávia, Iblis faz uma declaração de amor a Deus:

“Lembra-te que fui criado como anjo de luz, e que não posso abandonar totalmente minha ocupação original (...). Eu ainda conservo meu amor por Deus, que me alimentou em minha juventude (...). Joguei uma partida de xadrez com Deus, por vontade d´Ele, e, embora tenha levado um xeque-mate e me arruinado totalmente, em minha ruína ainda experimento as bênçãos de Deus” (MP2, 122).

Em verdade, ao ter sido acordado por Iblis para não perder a oração matinal, Moávia ficou agradecido, pois sentiria grande remorso não poder estar acordado para fazer a prece ao Bem-Amado. Se não tivesse acordado, Moávia teria dado muitos suspiros de dor, “e cada um desses suspiros, aos olhos de Deus, teria sido equivalente a mais de duzentas preces comuns” (MP2, 123). Os suspiros podem também exalar o sangue do coração. Diz Rûmi, fazendo uma citação: “Dá-me esse suspiro e recebe em troca minhas orações” (MP2, 123; MF2, 2777).

Em linha de sintonia com sua visão de abertura inter-religiosa, Rûmî reconhece o valor de verdade presente em outras doutrinas. Cada uma delas tem sua peculiaridade na descrição do tema oculto. Não estão, necessariamente “perdidas no erro”. Se para o muçulmano a “noite do poder” [31] tem um valor de singular profundidade, as outras noites guardam também o seu valor de verdade. Como diz Rûmî: “Todas as noites não são a Noite do Destino (...); e todas as noites não são, porém, vazias do que ocorre nesta Noite” (MF2, 2936).

Em outra história (XV), Rûmî retoma a questão da Misericórdia de Deus. Fala do peso negativo da ferrugem que se acumula no coração, impedindo a visão. E esta ferrugem, nas camadas que vai produzindo, “torna imundo” o aspecto vigente “nas partes internas”. Há que manter sempre aceso o processo de polimento (MP2, 131; MF2, 3370), evitando que o caldeirão fique negro e bloqueado para qualquer limpeza adequada. Rûmî reconhece o valor das práticas devocionais: a obediência, o jejum, a oração, as esmolas e as devoções. São práticas cobertas de valor. Elas, porém, precisam ser realizadas com alegria: “A alegria é necessária para que as devoções deem fruto, as polpas são necessárias para que as sementes tornem-se árvores” (MP2, 132). 

 

Bailarinos Sufi

 

Numa das mais bonitas histórias do Masnavi, sobre a árvore da vida (XVII), Rûmî narra a história de um sábio que contou que lá no Hindustão havia uma árvore da vida, e aquele que comesse de seus frutos viveria para sempre. Ouvindo a história, o rei mandou então um de seus cortesãos para saber dessa árvore. O homem então parte para aquele país, perguntando sobre a árvore por onde passava. Não foi correspondido em seu desejo: muitos zombaram dele ou trataram-no como um ignorante. Voltou desgostoso ao seu país, e lá buscou, como último recurso, a opinião de um sábio, que foi o primeiro a falar da árvore da vida. E o sábio lhe respondeu:

“Ó amigo, esta é a árvore do conhecimento, ó conhecedor! Muito alta, muito bela, muito extensa, a própria água da vida do oceano circunfluente. Tu correste atrás da forma, ó mal informado! E por isso careces do fruto da árvore da substância (...) Embora ela seja uma, ela tem mil manifestações. Os nomes que lhe convém são incontáveis (...). Ela tem milhares de nomes, mas é Uma, – corresponde a todas as suas descrições, mas é indescritível (...). Passa por cima dos nomes e olha para as qualidades, para que essas te possam levar à essência! O desacordo entre os homens é provocado pelos nomes; a paz advém quando penetram na realidade” (MP2 137-138; MF2, 3659-3680) [32].

Na história seguinte, dos patinhos que foram criados por uma galinha (XVIII), Rûmî fala da ave doméstica que ocupou o lugar da mãe, “a pata daquele oceano”. A Ama foi terrena e sua asa firmou-se em terra firme. Permaneceu, porém, a nostalgia do mar, como aquele que anima todos os que estão no desterro, que é tema também importante em Rûmî. Na moral da história, está a convocação da superação da terra firme, para o mergulho no “oceano do ser Real”. Isto vale para todos nós... Mesmo que as amas busquem nos fixar na terra, afugentando-nos da água, é ela que fornece o nosso horizonte de chegada. Não temas, diz Rûmî, “precipita-te no oceano!” (MP2, 138-139).

 

Livro III

O início do terceiro livro inicia-se com a história dos viajantes que comeram o filhote do elefante (I). Rûmî serve-se do tema para falar da tensão entre as ações negativas e as crenças. As más ações, diz Rûmî, conformam um “mau cheiro junto às narinas de Deus” (MP3, 144). As preces que brotam de pessoas que marcam sua trajetória por más ações são, em verdade, “invalidades por esses fedores”. Pode também ocorrer o contrário, pessoas que não conseguem pronunciar as orações da forma tradicional, como o fiel Bilal [33]. Aos olhos de Deus, porém, o hayy de Bilal tinha o valor muito mais nobre que centenas de ha e o kha, do repertório tradicional (MF3, 176-177). Como mostra Rûmî, “invocar a Deus é puro, e quando a pureza se aproxima, a impureza se levanta e vai embora” (MP3, 146).

Outro tema desenvolvido ainda no cenário da primeira história é bem sugestivo da percepção mística de Rûmî. Trata-se da narrativa de uma pessoa que certa noite gritou o nome de Allah até que seus lábios se tornassem doces. Veio, porém, interrompido por Satã que levantou em seu coração uma suspeita: “Cala-te, ó homem austero! Por quanto tempo continuarás tagarelando, ó homem de muitas palavras”. Ele colocou em questão o cerne da crença do fiel, ao sugerir que nenhuma resposta viria da parte do trono de Deus. O fiel foi tomado por grande tristeza, e de coração partido adormeceu. No sonho teve, porém, uma clara visão de Khadir [34], que indagou sobre as razões que motivaram o fiel a interromper sua oração. Em sua resposta, o fiel pontuou que o “eis-me aqui” (labbayka) de Deus não se seguiu à sua invocação. O mestre espiritual respondeu-lhe então: “Aquele teu chamado ‘Allah’ era o meu ‘eis-me aqui’”. E concluiu: “Teu medo e teu amor abrigam minha misericórdia, cada ‘Ó Senhor!’ teu contém muitos ‘eis-me aqui’” (MP3, 146-147; MF3, 189-197).

Uma história mais conhecida é a que trata do elefante no quarto escuro (V). A narrativa fala de alguns hindus que buscavam exibir um elefante num quarto escuro. Diante da obscuridade, os presentes “procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma ideia de como era. Um apalpou sua tromba e declarou que o animal parecia um cano de água; outro apalpou sua orelha, e disse que devia ser um leque enorme; outro sua perna, e pensou que fosse uma coluna”. Conforme se apalpava uma parte ou outra, as descrições eram diferentes (MP3, 155-156; MF3, 1259-1267).

Rûmî serve-se dessa história para abordar os empecilhos que barram ao olhar sensível, do sentido exterior, o acesso ao Mistério Maior. Rûmî sublinha: “O mar é uma coisa, a espuma, outra; esquece a espuma e contempla o mar com teus olhos”. A ondulação da espuma acaba impedindo a clareza do olhar, para discernir o poderoso mar (MP3, 156; MF3, 1270). Não há como captar o Mistério profundo com o habitual recurso das palavras. O silêncio se faz necessário: “Guarda silêncio para que possas ouvi-Lo falar Palavras impronunciáveis para a língua na fala. Guarda silêncio [35], para que possas ouvir desse Sol coisas que livros e discursos não podem expressar” (MP3, 157; MF3, 1270).

 


Tela persa ilustrando o amor e a hospitalidade

 

Rûmî tem um jeito particular de abordar sua mística, partindo sempre de histórias concretas, como a do amante que leu sonetos para a sua amada (VI). A narrativa fala de um amante que ao estar presente diante de sua amada, em vez de abraçá-la, toma um papel para escrever sonetos para ela. Rûmî quer indicar com isso o risco que está presente no buscador espiritual de embriagar-se com as efusões e êxtases, esquecendo-se do objeto central da própria devoção. Para ele, “o místico não deve deter-se em meras emoções religiosas subjetivas, mas buscar a união absoluta com Deus” (MP3, 161). O sufi verdadeiro, adverte Rûmî, não pode ser amante de seus próprios êxtases, esquecendo do Amado. Complementa: “Não fiques contemplando teus próprios retratos, belos ou feios, contempla teu amor e o objeto de teu desejo” (MP3, 162).

O protagonismo de Deus é tema singular da mística de Rûmî, e aparece diversas vezes ao longo das histórias narradas, como na que trata do dervixe que quebrou seu voto (IX). Nada pode ser realizado sem a vontade de Deus. Tudo depende dela. Na história, o dervixe acaba rompendo o voto de não colher nenhuma fruta nas árvores, mas só aquelas caídas no chão. Na visão de Rûmî, o deslize ocorreu pela omissão de dizer “se Deus quiser”. A todos votos devem ser agregadas essas poderosas palavras: “Se Deus quiser”. Deus é o mistério sempre envolvente, que a cada momento transmite “uma nova influência no coração”, que a cada instante deixa “nova marca no coração” (MP3, 165). O coração, diz Rûmî, é como “uma pena no deserto”, como a “água fervente numa chaleira”, vibrante com o movimento. A cada momento ou instante “um novo propósito ocorre ao coração”. É o órgão por excelência da experiência mística.

Uma história mais delicada vem apresentada em seguida por Rûmî, ao tratar do velho (sheikh) que não lamentou a morte de seus filhos. Não é uma narrativa fácil de ser captada ou acolhida, pois requer uma capacidade única de despojamento e abnegação. O velho que aparece na história era conhecido por sua santidade. Ele não chorou diante da morte de seus filhos, pois na dinâmica de seu olhar eles ainda estavam ali, vivos, fortes e saudáveis. Era alguém dotado de uma tal capacidade mística que vislumbrava vida para além da morte, com os olhos do coração. Dizia: “Embora eles tenham partido por uma virada da fortuna, ainda estão comigo, brincando ao meu redor” (MP3, 168). Se outros podiam vê-los em sonhos, o velho sábio percebia-os claramente, mesmo acordado. Um dom ofertado a poucos. A narrativa expressa algo que está presente no percurso da mística islâmica entre alguns dos primeiros ascetas do sufismo [36].

 

Imagem de bailarino composto com alfabeto árabe

 

História saborosa é a de Bahlol e o dervixe (XI), que aborda um santo cego, que, de forma inusitada, conseguiu ler o livro do Corão. É uma história que fala de um exemplo de resignação face à vontade de Deus. Narra-se que Bahlol foi visitar um dervixe considerado santo, que lhe perguntou como ia a vida. E a resposta foi a habitual: “Vou como um homem que dirige a vida como quer” (MP3, 169-170). Após insistência de Bahlol, o santo explicitou a razão de sua pergunta. Ele disse:

“Todos os homens sabem, pelo menos,
que o mundo obedece ao comando de Deus.
Nem uma folha cai de uma árvore
Sem o decreto e ordem desse Senhor dos senhores;
Nem um bocado desce da boca da garganta
Até que Deus diga a ele: ‘Desce’” (MP3, 170).

O sábio queria dizer que não há ação humana que não tenha a marca e a direção de Deus. E continua a tecer suas considerações sobre a vida do ser humano sob essa misericordiosa Presença. O homem, diz o sábio:

“vive para Deus, não para os bens materiais;
Ele morre por Deus, não com medo e dor.
Sua fé tem como base seu desejo de fazer a vontade de Deus,
Não a esperança de ganhar o Paraíso com seus belos bosques e fontes.
Se evita a infidelidade, é também por amor de Deus,
E não por medo de cair no fogo” (MP3, 170) [37].

O santo cego mostra a importância de o fiel estar iluminado pela “lâmpada do amor de Deus”. O amor, comenta, “é o Fogo do Inferno de seus atributos, e queimou os atributos de si, cabelo por cabelo” (MF3, 1921-1922).

A história seguinte, que trata das visões do santo Daqúqi (XII), é igualmente de uma beleza ímpar. O personagem era alguém que fazia de suas viagens uma experiência de encontro com o esplendor do Amigo em forma humana, do Oceano numa gota d´água. E em certa noite, foi tomado pela admiração de uma visão de sete grandes luzes, que depois se uniram numa única luz. E a visão se desdobrou na transformação dessa única luz em sete homens, que depois se transformaram em sete árvores. Movido por paciência [38], observou que as árvores inclinaram-se em oração, o que o fez lembrar de uma passagem do livro do Corão: “Plantas e árvores prostram-se em oração” [39]. E as árvores voltaram a se transformar em sete homens, sendo Daqúqi indicado para dirigir suas preces (MP3, 172).

Daqúqi era alguém doce, como um singular amante de Deus e portador do dom dos milagres. Sua aparência era de alguém como “a lua do céu descida à terra”, como “uma luz para aqueles que andavam na escuridão. Raramente permanecia em um lugar, e raramente ficava dois dias numa aldeia. Ele dizia: ‘Se me demoro dois dias em uma casa, o apego a essa casa torna-se uma paixão para mim. Guardo-me de ser tentado a amar um lar’” (MP3, 172-173).

Orações e mística islâmica

 

Era um homem misericordioso que buscava romper com as dualidades. Era “íntegro como a água” e pleno de compaixão. Reconhecia que Deus era quem agia em seu coração em busca de uma vida desprovida de apegos e desejos próprios. Era alguém, na verdade, “perdido em Deus” e guiado simplesmente pelo estupor de Sua vontade. Reconhecia bem que o verdadeiro amante é alguém que “viaja com o coração”. Sua vida era pautada por outro tipo de jornada, a do espírito e do embriagado de amor. E Rûmî resume bem a moral presente na história: “Nas adorações e bênçãos dos homens retos acham-se reunidos os louvores de todos os profetas” (MP3, 173-174; MF3, 1974-1990). Na raiz das orações, encontra-se a presença de Deus, pois o fiel vem aniquilado (fanâ). Tanto a invocação como a resposta procedem do Misericordioso (MF3, 2220). A visão proporcionada pelo misericordioso Daqúqi era ampliada, dotada do fogo do amor, cuja fervura escapa a qualquer possibilidade de alcance da linguagem comum. Com isso, favorecia uma perspectiva religiosa dialogal: “Todos os vasos são esvaziados em um único recipiente. Porque aquele que é louvado é, na verdade, só Um; Nesse aspecto, todas as religiões são uma só religião” [40]. Os homens, com suas particularidades, prestam louvores ao Um. Mas devem estar atentos para não confundirem a luz da lua com o seu reflexo no poço. Alguns crentes acabam por louvar as imagens refletidas, muitas vezes ambíguas, em vez de debruçarem-se dignamente para a lua em si, com sua beleza ímpar (MP3, 175; MF3, 2127-2131).

Outra história fala de uma mulher que perdeu todos os seus filhos (XVI). Nenhum dos filhos conseguiu sobreviver à idade de três ou quatro meses. Movida por grande desespero, clamou a Deus, como , e teve então uma bela visão dos jardins do Paraíso, e numa das moradas ali presentes, estava uma com seu nome inscrito. E ali pôde visualizar a presença de seus filhos. Tomada pela visão exclamou: “Ó Senhor! Eles foram perdidos para mim, mas estão a salvo contigo” (MP3, 190-191). O homem perfeito, diz Rûmî, é aquele capaz de vencer as adversidades com a “visão do invisível” (MF3, 3415). Trata-se de uma visão que desvela o Misericordioso e brilha concretamente nas práticas cotidianas (MP3, 191) [41].

Na história do ministro (vakil) do príncipe de Bokhara (XVII), narra-se o episódio de arrependimento do vakil por uma infração cometida. Ele atira-se aos pés do príncipe e perde os sentidos. Comovido com o gesto, o príncipe foi tomado de semelhante afeição, e “descendo do trono ergueu-o graciosamente do chão e perdoou sua ofensa” (MP3, 194). Rûmî serve-se dessa história para indicar aos seus seguidores que não há acesso à vida eterna senão mediante a total renúncia da vida:

“Quando Deus aparece a seu ardente amante, o amante é n’Ele absorvido, e não lhe resta nem um fio de cabelo. Os verdadeiros amantes são como sombras –quando o sol brilha em glória, as sombras desaparecem. O verdadeiro amante de Deus é aquele a quem Deus diz: ‘Eu sou teu e tu és Meu’” (MP3, 194) [42].

Na história que trata da Mesquita Fatal (XVIII), Rûmî volta a falar na força da Misericórdia, que precede a ira e conforma a subsistência do ser, o “capital da existência” (MP3, 206; MF3, 4167). Discorre em seguida sobre as palavras do livro do Corão, que são simples mas nem sempre acessíveis. Há que ultrapassar o sentido exterior superficial para alcançar o seu segredo. É o que buscam fazer os sufis:

Sabe que as palavras do Alcorão são simples,
Mas dentro do sentido exterior há um sentido interior secreto.
Por baixo desse sentido secreto, há um terceiro,
Onde até a mais alta inteligência se perde.
O quarto significado nunca foi visto por ninguém
Exceto Deus, o Incomparável e Auto-Suficiente (...).
Portanto, ó filho, não limites tua visão ao sentido exterior,
Como os demônios viram em Adão apenas barro.
O sentido exterior do Alcorão é como o corpo de Adão,
Pois sua aparência é visível, mas sua alma está oculta”
(MP3, 208; MF3, 1244-1247) [43].

 

Livro IV

O livro quarto abre-se com a história do amante e sua amada (I). No relato, o amante estivera separado por sete anos de sua amada, mas por perseverança volta a encontrar-se com ela. Aqui Rûmî trata de um tema precioso na vida mística islâmica, que é a paciência, a constância e a perseverança (MP4, 213-214). Na sequência, Rûmî trata um tema difícil, que é o mistério do Mal. Reconhece que “no mundo não há nada que seja absolutamente mal”, e que ele é “apenas relativo” (MP4, 215). E o Deus Misericordioso é o sempre-já-aí: “Se desejas que Deus te seja agradável, Olha então para Ele com os olhos daqueles que O amam” (MP4, 215).

Um tema que aparece na história II, em torno da construção do ‘templo mais remoto’ em Jerusalém, é o referente à percepção do humano como microcosmo ou macrocosmo. Se em geral o humano vem percebido pelos filósofos como um microcosmo, os místicos descortinam no humano uma perspectiva bem mais ampla, que reflete o macrocosmo. O místico capta no coração sua dimensão de movimento: “O coração viaja para a Caaba a todo momento” (MP4, 220). A dinâmica de aproximação do Mistério, que requer paciência, já ocorre no meio de nós, e Rûmî convoca os amantes a “calarem as palavras vãs” e seguir sem medo (MP4, 221). O Bem-Amado tem sempre a primazia. Ninguém busca o Mistério sem ter sido antes convocado por Ele. E esse amor ecoa no coração e suscita algo: “O barulho do aplauso não provém de uma única mão, sem que a outra intervenha para interagir” (MF4, 4397). Os eflúvios que vêm do céu possibilitam que até vozes dissonantes tornem-se melodiosas (MP4, 223).

As melodias celestiais não estão distantes de nós, mas sua proximidade pode ficar ocultada por ferrugens que foram tomando conta do coração: “Embora a terra e a água tenham lançado seu véu sobre nós, guardamos pálidas reminiscências dessas canções celestiais”. A dificuldade de ouvir tais canções relaciona-se com esse embaçamento dos “véus terrenos”. Para auxiliar os buscadores, a presença da música (samâ), que é “o alimento dos amorosos de Deus” e a chave de acesso à “imagem da paz” (MF4, 742). Ainda no cenário desta história, o espetáculo da sede dos amantes, que são convidados a captar a linguagem dos pássaros e seu trinado de eternidade. Embalados por essa linguagem podem vislumbrar uma brisa que é doce e suave e dedicarem-se à construção de uma Caaba que é “o templo vivo do coração” (MP4, 225 e 228).

Mística Sufi em conexão com a Natureza

 

Em outra história (IV), acompanhamos certa passagem na vida do santo Bayazid, quando pronunciou aos seus discípulos palavras consideradas ímpias. Ele dizia: “Não há outro Deus além de Mim; adorai-me!”. Abu Yazid (Bayazid) Bistami é outro santo sufi do primeiro período do sufismo persa. Ele morreu em 874 D.C., tendo sido o primeiro místico sufi a descrever a experiência mística, recorrendo à viagem celeste do Profeta (mi´raj). Foi um dos mais clássicos místicos ébrios, que em estado de êxtase pronunciou palavras que escandalizaram o seu tempo. É quando o místico desapega-se de tal forma de si, que só permanece o outro, daí suas locuções teopáticas, como “louve a mim!”. Como diz Rûmî, estamos diante de uma “taça transbordante”, que sai de si mesma e faz a alvorada brilhar com força (MP43, 237). Sob o domínio do espírito, Bayazid “perde” a razão. “Quando a águia da alienação de si alçou voo, Bayazid começou a pronunciar coisas similares; a torrente da loucura arrastou sua razão, e ele falou mais impiamente que antes. “Dentro de Minhas vestes não há nada senão Deus” (MP4, 238; MF4, 2125). Reconhecendo o valor dessa experiência mística, em linha semelhante ao que ocorreu com Al-Hallaj, Rûmî assinala: “Aquele que está fora de si está aniquilado e a salvo; sim, ele está eternamente em segurança. Sua forma desvaneceu-se, ele é um mero espelho” [44]. Deixa de ser “isso” ou “aquilo”, pois está agora “vazio de forma” (MP4, 239; MF4, 2139-2140) [45]. Na visão de Rûmî, quando “o discurso chega a este ponto, os lábios se fecham; quando a pena chega a este ponto, parte-se ao meio. Fecha então teus lábios, embora a eloquência seja possível. Guarda silêncio, Deus sabe o que é melhor” (MP4, 239; MF4, 2145) [46]. O que ocorre é de tal profundidade, que Rûmî aconselha aos leitores guardarem a experiência como um tesouro, sem divulgá-la em vão (MF4, 2148). Aos fiéis regulares, que só navegam nas exterioridades, uma tal visão escapa e, mais, choca profundamente. Os juízes, que baseiam suas opiniões nessas exterioridades, tomam decisões muitas vezes contra os “hereges”. São eles, porém, como diz Rûmî, que “derramaram secretamente o sangue de muitos verdadeiros crentes” (MP4, 241; MF4, 2177).

O tema de Moisés e o Faraó aparece em outra história (VI) e trata de uma longa discussão travada entre os dois. Enquanto o Faraó zomba de Moisés, que converteu sua vara numa serpente; por sua vez, Moisés retruca dizendo que o seu feito ocorreu pelo poder de Deus. O Faraó carecia de uma percepção das coisas divinas, faltando-lhe o sentido das coisas divinas. O homem de intuição espiritual, diz Rûmî, é portador de uma visão “purificada de desejo”. Ele é “todo olhos, e não vê mais duplo, mas vê apenas o Uno, único Ser real” (MP4, 245).

 

Livro V

O livro se abre com a história do profeta e seu hóspede infiel (I). O hóspede era um homem forte e rude, o gigante Og, que ninguém queria receber. Ele foi acolhido, mesmo sendo um “infiel”, mas depois do alimento espiritual, passou a confessar a fé islâmica. A história serve para Rûmî abordar o tema da tensão entre os atos exteriores e o estado interior do coração. O místico afegão não desconsidera os atos rituais, e reconhece que eles podem traduzir o testemunho interior do fiel. Insiste, porém, em destacar que os acidentes não são essenciais, mas apenas ponte para a manifestação da essência secreta: “A qualidade essencial perdura, e os acidentes passam” (MP5, 271). O que Mevlana quer reafirmar com vigor é a importância da sintonia entre palavras e atos. A língua dos atos é a mais essencial, diz Rûmî, enquanto a língua das palavras é frágil. Na verdade, temos nesse mundo três companheiros de rota: os amigos, as riquezas (os bens) e a excelência das ações. Após a morte, nem tudo é levado junto. As riquezas não ultrapassam os muros do palácio; os amigos nos acompanham só até o túmulo. A riqueza de nossas ações, essas sim, serão essenciais no Dia do Julgamento. As ações são, de fato, as únicas fiéis, daí a importância de se “refugiar” nelas, pois elas nos acompanharão até as profundezas da morte (MF5, 1044-1050). Quando o fiel é tomado pelo perfume de Deus, não há caminho de volta: “Agora que me levaste a cheirar seu perfume, não me prives desse vinho almiscarado, ó Senhor da fé” (MP5, 272).

Seguem-se outras curtas histórias, até chegar na narrativa da inutilidade da mera imitação cega dos exercícios religiosos (VI). Rûmî tece fortes críticas aos teólogos legalistas, reconhecidos por ele como incapazes de contemplar a luz do espírito:

“Quando o Eterno aparece, o transitório é anulado;
O que sabe, então, o transitório do Eterno?
Quando Ele entra em contato com o temporal, deixa-o aturdido;
Depois que este se transforma em nada, Ele lança sua luz sobre ele” (MF5, 287).

Uma história muito bonita do Livro V é a que aborda a relação entre o célebre rei Mahmud e seu favorito servidor Ayáz (VIII). O servo era invejado pelos outros cortesãos, que tentaram de todo jeito quebrar o voto de confiança depositado nele pelo rei. Tramaram então algo para retirá-lo de seu posto. O servidor Ayáz tinha o hábito de se retirar todos os dias para uma câmara secreta e ali trancar-se por momentos. Por inveja, os outros cortesãos denunciaram ao rei que o que acontecia nessas saídas secretas era algo pecaminoso, envolvendo moedas roubadas do tesouro ou vinho e bebidas proibidas. Para a surpresa e decepção de todos, o que Ayás ali guardava eram seus velhos sapatos e sua roupa rasgada, ou seja, os trajes que ele utilizava antes das honras concedidas pelo rei. E a razão de seu recolhimento na câmara secreta era simples e louvável. Seguindo o dito do Corão, ele não queria se esquecer jamais de sua origem humilde, evitando a cobiça e o orgulho. Como diz o Corão, na Sura LXXXVI,5, “Que o homem reflita no material que foi criado” (MP5, 293-294). O verdadeiro sufi é aquele que está tomado pela presença de Deus. Nada resta de sua existência senão o nome (MP5, 295).

 

 

O tema de Mahmud e Ayás é retomado mais adiante, com a pergunta do rei ao fiel servidor sobre as razões das frequentes visitas às roupas e sapatos velhos. Indagava sobre os motivos das visitas às coisas mortas, “como uma mãe visitando seu filho morto, se não fosse porque a fé e o amor faziam delas (...) coisas vivas para ele” (MP5, 311). E busca entender o ato, com explicações singelas:

“O olho vê o que ele compete ver, não pode ver nada além daquilo que tem competência para ver (...). As formas terrenas que nos cercam aqui são, por assim dizer, vasos cheios de vinho espiritual, só visíveis para aqueles que aprenderam a discernir as coisas profundas do Espírito” (MP5, 311).

Com base na história, Rûmî sublinha que “o vinho é daquele mundo, os recipientes, deste; os recipientes podem ser vistos, mas o vinho está oculto” (MP5, 312). O Mistério está oculto de nós, embora os céus estão repletos de uma luz “que é mais brilhante que o sol e a lua” (MP5, 312). Diz Rûmî: “Tu és como a alegria, e nós somos o riso; o riso é a consequência da alegria” (MP5, 313). Mevlana retoma a ideia da história de Moisés e o Pastor [47], indicando que ninguém como o pastor igualou-se em amor e devoção, ainda que suas expressões fossem “frágeis”: “Seu amor armou sua tenda nos céus” (MP5, 313). O silêncio, assinala Rûmî, “pode indicar emoções profundas demais para serem expressas, enquanto expressões eloquentes podem indicar que apenas os ouvidos, e não o coração, foram tocados”.

 

Livro VI

Rûmî assinala no prólogo deste livro que o desejo de escrever esta última parte ardia em seu coração. O Masnavi tinha se tornado um estandarte e um exemplo para o mundo. Oferece então ao homem espiritual este gesto derradeiro. Assinala que “o amor não tem nada a ver com os cinco sentidos ou os seis lados; sua única meta é ser atraído pelo Amado” (MP6, 329). Indica que aquele fiel que não cumpriu a circunvalação [48] pode agora cumpri-la em torno do Masnavi (MF6, 4). Rûmî assevera ainda que o Masnavi contém algo de misterioso, que não pode ser comunicado a não ser “àqueles que sabem” [49]. É um livro que permanece obscuro aos céticos (MF6, 8; MP6, 329). Aos sedentos, porém, está aberto ao pleno desfrute (MP6, 330). E complementa: “Quando o Masnavi é purgado das letras e palavras, Ele as abandona todas, e aparece como o mar da Unidade” (MP6, 330).

Na história do emir turco bêbado e o menestrel (III), Rûmî trata temas importantes como o da aniquilação e a grandeza da embriaguez espiritual. O seguimento da vida espiritual pressupõe “abandonar a própria vontade, conhecimento e o próprio ser no rio inigualável da ‘aniquilação’ e, desse estado, elevar-se para um estado superior de existência eterna em Deus” [50]. Antes da baqâ (subsistência) é necessário dissipar o que produz apego: “morrer antes de morrer”, como indica o livro do Corão, lembrado por Rûmî (MF6, 739 [51]). Nesse estado superior de “subsistência”, o olhar sobre o mundo ganha radical transformação. Abre-se, assim, o caminho para a percepção, por entre as cores da diversidade, a presença radical e sedutora do Uno. O olhar, assim modificado, enxerga para além das formas, visando o conteúdo, como um sábio (MP6, 341; MF6, 652). O olho corporal não vê senão o corpo, o olho espiritual vê “a alma e os dons múltiplos (MF6, 654). É o momento em que se alcança a dimensão profunda do que está dito no Corão 50,16: “Tu estás mais perto de mim que minha veia jugular” (MP6, 342; MF6, 668). É quando emerge o “Hu” (Ele) do Mistério na sua maior grandeza e proximidade. Entretanto, o homem espiritual guarda esse segredo no coração, pois “tem ciúmes de expor seus mistérios ao olhar dos profanos e, por excesso de cautela, vela-os com sinais e indícios” (MP6, 342).

O Masnavi é, assim, como outros tantos livros místicos, pleno de alusões que escapam ao olhar superficial. Como diz Rûmî, é

“uma loja de pobreza e auto-abnegação, um tesouro que contém somente as doutrinas da Unidade, e se suas histórias sugerem qualquer outra coisa, isso se deve aos maus impulsos de Iblis, que levou também o próprio Profeta a erradamente atribuir poder indevido aos ídolos de Lat e Uzza e Manat, em um versículo que foi depois cancelado” (MP6, 348) [52].

O sufi é aquele que tem consciência de que o corpo é somente sombra ou espuma, mas uma “espuma que nasce e vive no Oceano (Deus)” (MP6, 350). E em belo poema, Rûmî sublinha:

“Como pode a mera espuma mover-se senão pelas ondas?
Como pode a poeira subir ao alto se não for erguida pelo vento?
Quando vês uma nuvem de poeira, vê o vento também!
Quando vês a espuma, vê o oceano que a carrega!
Ah! Olha até que possas ver tua própria e verdadeira causa final,
O resto de ti é só gordura e carne, urdidura e trama.
Tua gordura não acende nem luz nem chama em um lampião;
Tua carne modelada não é boa para assar.
Queima, então, todo esse teu corpo com discernimento;
Desperta para a visão, para a visão, para a visão!”  [53](MP6, 350).

Em outra história, do faquir e o tesouro escondido (VI), Rûmî fala do fechamento de filósofos, sábios e homens cultos diante da generosidade de Deus. São obstinados na sua visão particular, e “procuram muito longe aquilo que, na realidade, está perto deles” (MP6, 354) [54]. Essa reflexão do místico afegão reforça aquela ideia, tantas vezes repetida no Masnavi, que pontua a prevalência de Deus. Não há que se concentrar nos próprios esforços, ocultando a “ajuda” de Deus. E Mevlana recorre ao Corão: Foste instruído a pôr uma flecha em teu arco, mas não a puxar o arco com toda a tua força, como andaste fazendo. Atira o mais delicadamente que puderes, para que a flecha possa cair perto de ti, pois o tesouro escondido está de fato ‘mais perto de ti que tua veia jugular’ (Corão 50,6; MP6, 355). O que sugere Rûmî é um trabalho eficiente de “decapitação do egocentrismo”, e para tanto serve o recurso do Masnavi, que é a “butique da Unidade” (MF6, 1528).

O tesouro de Deus está bem perto de nós. É o que busca repetir Rûmî, como um mantra, ao final de seu Masnavi. E o exemplo do arqueiro é sempre retomado: “Fixa uma flecha na corda, mas não a faças voar longe. Quando ela cair, cava nesse lugar e procura. Abandona a força e busca o tesouro com humildade” (MP6, 359). Há que lançar longe, aí sim, a flecha da especulação, e reconhecer com um outro olhar o tesouro que se encontra bem perto. Diga ao filósofo, comenta Rûmî, que ele está “de costas para esse tesouro; diga a ele que quanto mais ele corre de um lado para o outro, mais se afasta do desejo de seu coração” (MP6, 359). O empenho seguro é aquele que se dá nos “Nossos caminhos” e não no empenho “para longe de Nós”. Na visão de Rûmî, o paraíso é o lugar dos simples, ou seja, daqueles “que escaparam dos ardis da filosofia”. É só despindo-se do “intelecto presunçoso” que o buscador vem hospedado pela graça, que então vem derramada do alto (MP6, 360). A palavra final é decisiva: “Abandona a inteligência e associa-te à simplicidade de espírito!” (MP6, 360).

Já quase ao final de seu Masnavi, Rûmî narra a história do rei e seus três filhos (IX). Os filhos eram a luz dos olhos do rei, onde “a palmeira de seu coração bebia a água da felicidade” (MP6, 371). Um dia, o rei convocou os filhos a fazerem uma viagem pelo seu reino, com uma única advertência, de não se aproximarem de um determinado forte. Contrariando o pai, os filhos foram, em primeiro lugar, ao forte, e ali enfrentaram muitas calamidades. Aquele forte “estava repleto de pinturas, imagens e formas, e entre elas, havia um retrato de uma bela donzela, a filha do rei da China, que causou profunda impressão nos três príncipes” (MP6, 372). Eles então decidiram viajar para aquele país para pedir a mão da jovem em casamento.

 

Estátua de Rûmî en Buca, Esmirna, Turquía

 

A história serve para Rûmî trabalhar a questão da superficialidade das formas. Diz ele: “Não te embriagues com essas taças de formas, para que não te convertas em um criador e adorador de ídolos (...). Há vinho nas taças, mas ele não procede delas. Olha com a boca aberta para Aquele que dá o vinho; quando Seu vinho chega, não é a taça pequena demais para contê-la?” (MP6, 372). Embora as pedras, tábuas e tijolos sejam fundamentais para o pensamento do arquiteto, não são elas que abrem o acesso ao “santuário do pensamento”. Na verdade, “o Agente Absoluto é sem forma, a forma é apenas uma ferramenta em Suas mãos”. Por vezes, é através do “Não-ser” que Aquele que não tem forma manifesta as suas formas, munido de sua Misericórdia (MP6, 373).

Assim como o homem “cru” não consegue captar a linguagem dos pássaros, ficando restrito ao domínio exterior da linguagem, somente os “verdadeiros pássaros espirituais” têm acesso ao segredo de Salomão. Esse segredo veio inspirado por Deus. Os vulgos são simples “pássaros do ar”, e estão muito distantes do ninho da Simorg [55]. Este ninho está para além do monte Qaf, onde os pensamentos de uma visão fugaz não conseguem alcançar (MP6, 377). Aos estranhos está vedado o nome puro de Deus, porque lhes falta o que é essencial, que é o amor. Diz Rûmî: “Quando a alma está intimamente unida a Deus, Mencionar um é o mesmo que mencionar o outro” (MP6, 378) [56]. Deus está sempre “próximo dos que o invocam fielmente” (MP6, 379).

Já ao fim do livro, Rûmî canta as alegrias da união com o Amado, que não podem ser expressas em palavras. E o místico afegão deixa o horizonte em aberto, quando assinala que “a história pode ser contada até esse ponto, mas o que se segue está oculto e não pode ser expresso em palavras” (MP6, 383). Por mais que o ser humano se esforce para expressar da melhor forma possível, o Mistério permanece aceso. As palavras permanecem inúteis e o “Mistério não fica mais claro” (MP6, 383).

Não é tarefa nada fácil aventurar-se nas páginas do Masnavi para buscar os pontos mais fundamentais do pensamento do grande Rûmî. O que foi feito aqui é apenas um breve ensaio, frágil, que revela a percepção singular de um admirador da mística sufi. Não tenho dúvida de que um outro olhar desvendaria facetas singulares embrenhadas nas diversas histórias desse precioso livro. Essa era uma tarefa que eu estava me propondo desde 2003, quando dei um curso sobre o livro. Os esquemas ficaram guardados, esperando a melhor ocasião para favorecer um esboço de reflexão. É assim que vejo essa minha tentativa de traçar um roteiro livre do Masnavi. O que posso garantir como certeza, é que o texto vai abrir o apetite de muitos leitores, de estudiosos da religião e da mística, para adentrar-se com carinho e cuidado neste oceano, que é o pensamento esotérico de Rûmî. Trata-se de um pensamento que não se desnuda para qualquer um, ou em qualquer momento. Há que ter o coração aquecido para penetrar nos meandros sempre alusivos de sua reflexão.

 

Notas

[1] Eva de Vitray MEYEROVITCH. Introduction. In: Djalâl-od-dîn RÛMÎ. Mathnawî. La quête de l’Absolu. Paris: Éditions du Rocher, 1990, p. 24.

[2] Eva de Vitray MEYEROVITCH. Introduction, p. 22-23.

[3] Ja|al âlDîn RÛMÎ. Mathnawî. Il poema del misticismo universale. Milano: Tascabili Bompiani, 2006.

[4] Jalaluddin RUMI. Masnavi. São Paulo: Edições Dervish (Attar), 1992.

[5] Eva de Vitray MEYEROVITCH. Introduction, p. 19.

[6] Jalaluddin RUMI. Masnavi, p. 17-18. Djalâl-od-dîn RÛMÎ. Mathnawî. La quête de l´Absolu, p. 53-54 – Dísticos 1 a 30. No texto, as citações serão sempre sigladas, para favorecer o fluxo da redação. A edição brasileira será siglada MP, que significa Masnavi Português, seguida do número do livro e da página. Como são seis livros, a sigla virá acrescentada do número do livro (de 1 a 6). A edição francesa, cujos dísticos vêm numerados, será siglada MF, que significa Masnavi Francês, seguida do número do livro e do dístico. Ela também virá acrescentada do livro envolvido (de 1 a 6).

[7] A referência aqui são os dísticos e não as páginas. E assim será todo o tempo.

[8] Mevlana, ou “Nosso Mestre”, foi o modo como seus sucessores o nomeavam.

[9] O objetivo aqui é apenas acenar para alguns aspectos que estão contidos em algumas histórias e não todas, o que seria impossível. E mesmo assim, sem discorrer muito, pois as histórias são imensas. O que propomos aqui é simplesmente um aperitivo, um convite para a leitura da obra completa.

[10] As histórias – o seu número – serão sempre mencionadas entre parênteses, em Romanos.

[11] Em outro dístico, Rûmi fala da importância do buscador deixar-se acompanhar por outros peregrinos, sejam eles hindus, turcos ou árabes. Adverte não ser necessário apegar-se ao aspecto ou cor, mas considerar o desejo e a intenção (MF, 2893).

[12] Não é tarefa simples definir nafs (self). “O Corão descreve três estágios diferentes de nafs no homem. O estágio mais baixo e corrupto é o de an-nafs al-ammârah (o nafs mau) (XII,53) em cujo estágio o homem está completamente sob o controle das forças malignas dentro e fora de si”: Syed Ali Ashraf. O significado interior dos ritos islâmicos: prece, peregrinação, jejum e jihâd. In: Roberto S. BARTHOLO Jr. & Arminda Eugenia CAMPOS (Orgs). Islã – o credo é a conduta. Rio de Janeiro: ISER/Imago, 1990, p. 101.

[13] Le Coran. Paris: Albin Michel, 1995, sura VIII,17 (Essai de traduction par Jacques Berque); MF, 3789.

[14] Trata-se aqui do empíreo (MF, 2654).

[15] Para expressar o limite do humano, Rûmî recorre a outras expressões: “casa de terra” ou “casa de argila”. O outro mística Persa, Attar, fala em “casa de cinzas”.

[16] Na história X, que fala do homem que foi tatuado, Rûmî sinaliza a importância do guia (Pîr) para a ajudar o buscador em seu caminho, e vencer os riscos que estarão adiante (MF1, 2942). Na visão de Rûmî, a mão do Pîr é como a mão de Deus (MF1, 2971). Nada, então, mais importante ao buscador do que buscar refúgio na “sombra do Sábio” (MF1, 2966).

[17] Trata-se do poema, O mundo além das palavras: Jalal ud-Din Rumi. Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar, 1996, p. 54.

[18] Um tema também presente na mística cristã, como em Marguerite Porete, que sublinha que todos os rios perdem o nome quando chegam no Mar: Id. O espelho das almas simples e aniquiladas... Petrópolis: Vozes, 2008, p. 145.

[19] Na versão francesa: “não há lugar para aquele que não passou pelo fogo da experiência” (MF1, 3057).

[20] Na tradução francesa fala-se em “temor e respeito”: MF1, 3061.

[21] Na tradução francesa: “Ó sedutor dos corações” (MF1, 3062).

[22] O tema do polimento do coração é recorrente em Rûmî, e às vezes ele repete a expressão para dar mais ênfase à sua importância: “Polir, polir, polir”, como no MF4, 2469.

[23] Na viva expressão francesa: “C´est la brûlure que je désire, la brûlure” (MF2, 1762).

[24] Numa das passagens de seu clássico livro, o místico cristão, Raimundo Lúlio (séc XIII-XIV), assinala: “Por isto necessário é que seja verdade tudo o que será, e foi, e é, se meu Amado lá se encontra; e falso é o que é verdadeiro se meu Amado lá está ausente; sem que haja nisso contradição”: Raimundo LÚLIO. O livro do amigo e do amado. São Paulo: Loyola, 1989, p. 118 (n. 311).

[25] Como também em passagem no Terceiro Livro: “Não busque a água, mas torna-se sedento, a fim de que água possa jorrar de alto a baixo”: MF3, 3213. E ainda outra, no mesmo livro: “Quando à terra falta calor, o céu manda calor; quando lhe falta umidade e orvalho, o céus os envia” (MP3, 199).

[26] Num poema marcante do Divan de Shams de Tabriz, Rûmî louva a insônia. Sublinha o poder do sono na noite imprevisível, mas pede ao Amor que leve o sono para longe, apesar dele insistir em voltar. O sono procura combate, mas o “exército” do Misericordioso é mais potente e leva embora o sono frágil. E diz: “Se estás profundamente enamorado, segue sem vacilar esta vigília”: Marco LUCCHESI. A sombra do Amado. Poemas de Rûmî. Rio de Janeiro: Fisus, 2000, p. 71.

[27] Trata-se da Sura XCIII.

[28] No Fihi-Ma-Fihi, Rûmî assinala que “os habitantes do Inferno são mais felizes lá que aqui, pois, no Inferno, adquirem a consciência de Deus; e não há conhecimento algum que seja melhor que o de Deus”: Id. Fihi-Ma-Fihi. O livro do interior. São Paulo: Attar, 1993, p. 302.

[29] O cái era um juiz.

[30] Aqui a bela imagem tomada do místico sufi Al Hallâj, que fala da falena que vem queimada na chama. E ele clama: “(Ce papillon) Comme moi!”: Stéphane RUSPOLI. Le livre “Tâwasîn” de Hallaj. Beyrout: Albouraq, 2007, p. 123.

[31] Quando o livro do Corão foi revelado.

[32] Houve uma pequena mudança na citação utilizada, ao final, quando preferi introduzir o dístico da versão francesa (MF2, 3680), que é de uma beleza ímpar.

[33] Bilal era um muezin que convocava os fiéis para a oração com um erro de pronúncia: hayy la´l-falah.

[34] Trata-se de um misterioso personagem presente nas lendas, literatura e especulação mística dos povos muçulmanos, como um mestre espiritual, venerado também como um profeta.

[35] Muitos dos poemas de Rûmî concluem-se com a expressão “silêncio”. Apenas três exemplos: “Silêncio! O melhor é perguntar a Deus, somente Ele te pode responder”; “Todavia, aprende com a flor: silencia tua língua”; “Silêncio! Eis que chega o Rei para completar o poema”: Jalal ud-Din Rumi. Poemas místicos, p. 113 e 159.

[36] Um exemplo é Fudayl, que morreu no início do século IX. Era alguém bem representativo do misticismo ortodoxo do primeiro período do sufismo. Era obcecado pela união com Deus, e tudo transformava-se num obstáculo. Diziam que ele sorriu uma única vez na vida, quando seu filho morreu. Isto foi para ele um sinal da graça divina: Annemarie SCHIMMEL. Le soufisme ou les dimensions mystiques de l’islam. Paris: Cerf, 1996, p. 56-57.

[37] E vem aqui a recordação de uma mística sufi da primeira etapa, Rabi’a al-Adawiwa, que morreu no ano de 801 D.C. Numa de suas célebres histórias, levava em uma das mãos uma tocha de fogo e na outra um pote d´água. Perguntada pela razão disso, respondeu: “Eu quero jogar o fogo no paraíso e derramar a água no inferno”. E fazia isso para que a adoração do fiel não fosse motivada nem pelo anseio do paraíso ou pelo temor do inferno, mas, sim, motivada exclusivamente pela gratuidade do amor de Deus: Annemarie SCHIMMEL. Le soufisme ou les dimensions mystiques de l´islam, p. 60. Na mística cristã, temos a célebre passagem do catalão Raimundo Lúlio (séc. XIII-XIV): “O amigo encontrou o Amado e viu-O muito nobre e poderoso, digno de toda honra, e disse-Lhe que muito se admirava de que tão poucos O amassem, O conhecessem e O honrassem conforme merecia sua dignidade”. O Amado respondeu-lhe que de fato “ficou decepcionado com o homem que criara precisamente para que O amasse, conhecesse e honrasse. Lamentou-se de que entre mil homens apenas cem O temiam ou amavam. Que dos cem, noventa O temiam pelo castigo e dez O amavam esperando, assim, receber glória. E que ninguém O amava por Sua bondade e nobreza”: Raimundo LÚLIO. O livro do amigo e do amado. São Paulo: Loyola, 1989, p. 100 (n. 217).

[38] Há uma centralidade da paciência na mística de Rûmî. É a paciência que alimenta a lua durante a noite ou a rosa diante do espinho que protege o seu aroma. É a paciência que faz dos profetas os eleitos de Deus (MF6, 1408 e 1410). A “paciência é coroada pela fé: aquele que é desprovido de paciência, não tem fé” (MF2, 600); “Praticar a paciência é a alma de tuas glorificações: seja paciente, pois esta é a verdadeira glorificação” (MF2, 3145).

[39] Livro do Corão, Sura LV, 6.

[40] Isso nos faz lembrar o Diwan de al-Hallaj (857-922), que numa de suas passagens sublinha que as religiões são “os muitos ramos de uma única Fonte”. E questiona o fato do fiel professar uma única religião. Isto para ele era sinal de distanciamento da Fonte segura: Al-HALLAJ. Diwan. Genova: Marietti, 1986.
7, p. 84 (n. 62).

[41] Há uma passagem, ainda no livro III, onde Rûmî diz: “A fumaça desse amor e a dor desse coração ardente ascendeu até seu amo e excitou sua compaixão” (MP3, 201).

[42] Em seu Rubâi´yât, Rûmî sinaliza: “O Amado é como o sangue nas veias e na pele, escorre em mim. De mim não resta mais que um nome, todo o resto é Ele”; RÛMÎ. Canzone d´amore per Dio (Rubâi´Yât). Torino: Piero Gribaudi Editore, 1991, p. 83.

[43] Em outra de suas obras, Rûmî escreve algo semelhante: “O Corão é como uma recém casada: tentas retirar seu véu e ela não te mostra seu rosto”: RUMI. Fihi-Ma-Fihi. São Paulo: Attar, 1993, p. 302.

[44] Mais adiante, Rûmî vai indagar: “Como tanta espiritualidade como a que se podia ver em Bayazid pudesse estar contida em um corpo terreno” (MP5, 314).

[45] Assim como defendeu Bayazid, Rûmî entendeu plenamente a expressão ousada de Al Hallaj, martirizado em 922 D.C.: “Ana’l Haqq” (Eu sou a Verdade). Para ele tratava-se de um gesto de grande modéstia e não de arrogância. Queria dizer: “Eu não existo, Ele é tudo; excetuando Deus, nada tem existência. Eu sou vazio, nada sou”: RUMI. Fihi-ma-fihi. O livro do interior. São Paulo: Edições Dervish, 1993, p. 73. Também Attar reconhece o gesto de Hallaj como expressão de humildade: “Il suo ‘io’ era nell’Essenza annulato. Lì non era piu l’‘io’, era soltando Iddio”: Farîd al-din ATTÂR. La rosa e l´usignuolo. Roma: Carocci, 2003, p. 42.

[46] Trata-se de um estado de estupefação, também muito presente na reflexão de Rûmî. Ele sempre está a convocar seus discípulos para esse estado de espírito: “Estejam somente no estupor e maravilhamento, nada a mais para favorecer a ajuda de Deus que chega por todos os lados. Quando te tornas estupefato, enlouquecido e aniquilado, dizes sem palavras: ‘Guia-nos’” (MF4, 3751-3752).

[47] História 7 do Livro II.

[48] O ato de circundar a Caaba sete vezes, inserido no rito islâmico da peregrinação (hajj).

[49] Aos “conhecedores do segredo”.

[50] Na tradição mística sufi a fanâ (aniquilação) não tem um fim em si mesma, mas desdobra-se na baqâ (subsistência). Trata-se de um estado mais elevado, que os budistas identificam como “cair corpo e mente”. A partir desse estado, “o normal mundo cotidiano fenomênico da multiplicidade torna a aparecer com a própria riqueza infinita das cores”: Toshihiko IZUTSU. Unicità dell´esistenza. Genova: Marietti, 1991, p. 13 e 43.

[51] Rûmî fala em transmutação.

[52] São os famosos versos satânicos, de que fala o escritor Salman Rushdie. Esses versos abordam o episódio em que Muhammad reconhece diante dos notáveis de sua tribo a força sagrada de Lat, Uzza e Manat, que eram divindades do panteão árabe pré-islâmico. Entendidos como palavras inspiradas por satanás, os versos acabaram não sendo incorporados na versão canônica do Corão. A única menção que o Livro faz das mesmas está na Sura 53,23.

[53] Na tradução francesa: “Dissous ton corps tout entier dans la vision: deviens regard, deviens regard, deviens regard” (MF6, 1463). E manter sempre viva a presença de Deus no coração: “La mémoration de Dieu met la pénsee en mouvement; fais du dhikr un soleil pour la pensée gelée”: MF6, 1476.

[54] Algo semelhante ao que diz a poupa no discurso de abertura da conferência dos pássaros, do místico persa Attar: “Está perto de nós, mas nós estamos longe dele”: Farid Ud-din ATTAR. A conferência dos pássaros. São Paulo: Cultrix, p. 22.

[55] Ao contrário do que muitos ocidentais pensam, Simorg, rei dos pássaros e símbolo de Deus, é um personagem feminino: Farîd od-dîn ´Attar. Le cantique des oiseaux. Paris: Diane de Selliers, 2012, p. 20.

[56] Rûmî está aqui fazendo menção à história de amor entre Yussuf e Zuleika, contada e recontada diversas vezes nos países muçulmanos. O desejo de Zuleika por Yussuf pode ser traduzido como a busca da alma por Deus. Como diz Rûmî, “tudo o que Issa (Jesus) realizou em nome de Jeová, Zuleika conseguiu através do nome Yussuf”. Quando existe amor, aí sim, podemos pronunciar o nome vivo e puro de Deus.

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