“Não desperdicem esta crise”. Entrevista com Joseph Stiglitz

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05 Mai 2020

Joseph Stiglitz está passando o período de isolamento em seu apartamento no Upper West Side, em Nova York. Pelas janelas, pode ver o rio Hudson e o Riverside Park e, em tempos normais, só precisa de uma curta caminhada para chegar ao escritório, no campus da Universidade de Columbia. “Na primavera, o passeio pelo parque é lindo. Tem narcisos, muitas outras flores e árvores floridas, especialmente macieiras silvestres e cerejeiras. É o meu período preferido, mas hoje em dia existe apenas um silêncio perturbador, pontuado, ocasionalmente, pela sirene de uma ambulância”. Setenta e sete anos de idade, nascido em Gary, Indiana, mãe professora e pai funcionário de seguradora, o Nobel de Economia que trabalhou ao lado de Bill Clinton, antes, e Barack Obama, depois, diz que continua tendo "dias febris", mesmo que quase nunca saia de casa. “Ensino e participo de seminários online. Falo com muitos amigos ao redor do mundo que também estão trancados em casa. Tento terminar um livro sobre a economia das desigualdades e alguns artigos teóricos”.

A entrevista é de Gianrico Carofiglio, publicada por Robinson - La Repubblica, 01-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

Vamos dar um passo atrás, obviamente com uma consciência retrospectiva. Se você tivesse o poder de tomar decisões, o que teria feito e quando o teria feito?

Deveríamos ter agido mais rápido. Nos Estados Unidos, deveríamos ter começado as práticas de distanciamento muito antes, assim como deveríamos garantir a produção de testes, dispositivos de proteção e equipamentos de ventilação. O que o governo Trump fez, ou melhor, não fez, é imperdoável. Ele chegou ao ponto de negar que havia um problema mesmo diante das evidências, incentivando a Fox News a espalhar uma grave desinformação. O presidente deveria ter reunido um conselho de especialistas - cientistas, epidemiologistas, especialistas em saúde pública, economistas - para decidir sobre uma estratégia, em vez de denegrir sistematicamente a ciência.

No entanto, o fracasso de Trump não é surpreendente: há três anos ele tenta cortar os gastos com a pesquisa, reduziu os fundos governamentais da agência para a prevenção de doenças e desmantelou o programa de gestão das pandemias. Os republicanos negaram subsídios por doença e assim muitos trabalhadores de baixa renda, infectados, precisam ir trabalhar para sobreviver. Eles espalham a doença porque não podem se permitir ficar em casa. Somente após uma dura luta os hospitais receberam suprimentos, embora provavelmente em quantidades insuficientes.

O programa federal para ajudar as pequenas empresas é um caos: o dinheiro é destinado a quem já possui relações privilegiadas com os bancos. Essas intervenções deveriam ter parado a perda de empregos. Não deu certo: os desempregados aumentaram para 24 milhões nas últimas semanas.

A esperança de uma rápida conclusão da emergência desapareceu e a pergunta agora é: até que ponto ficará ruim a situação para o resto do ano e para 2021?

E que resposta pode dar? A economia - mas também outras ciências sociais - pretende desenhar cenários para o futuro. Baseia-se em dados do passado - quantitativos e qualitativos - para gerar hipóteses do que acontecerá, mas as previsões muitas vezes se mostram incorretas. Até que ponto as ciências sociais estão aptas a prever e influenciar o futuro?

Podemos fazer conjecturas razoáveis, não muito mais que isso. No entanto, sabemos muito sobre o comportamento dos indivíduos, do sistema produtivo e do sistema econômico em geral. Sobre essas bases, podemos dizer algo sobre o que vai acontecer. Por exemplo, sabemos que, se houver uma recessão prolongada, o setor financeiro terá sérios problemas, porque empresas e famílias não poderão pagar suas dívidas. Sabemos que se os balanços das empresas se desequilibrarem, elas reduzirão os investimentos e o mesmo vale para as famílias que reduzirão seu consumo. Em resumo, mesmo que as origens dessa crise sejam muito diferentes daquelas de 2008, esse desastre produzirá efeitos semelhantes, a menos que intervenhamos de maneira adequada.

Modelos matemáticos, em economia e outras ciências sociais, correm o risco de gerar falsas seguranças. Estamos experimentando isso durante esta crise: mesmo que baseados em modelos aparentemente rigorosos, muitas previsões sobre o andamento da epidemia se mostraram erradas. Qual a sua opinião sobre um assunto, certamente técnico e teórico, mas que se torna sensível quando aplicado à economia e, sobretudo, à saúde?

A matemática é uma linguagem que nos permite ver relações complexas - ou, às vezes, relações simples, mas extremamente sutis - com uma clareza que de outra forma não teríamos. Bons modelos matemáticos levam em consideração a incerteza. Os problemas não dependem da matemática, mas de quem a usa de maneira errada. Pense no modelo neoliberal - bastante simplista - ou mesmo em outros modelos aparentemente mais sofisticados, como o Dsge (dynamic stochastic general equilibrium), usado por muitos economistas e por alguns bancos centrais. A questão não consiste em sua formulação matemática, mas nas hipóteses absurdas que elas incluem. E no fato de que alguns formuladores de políticas levem esses modelos mais a sério do que merecem. Como eu disse, a matemática nos ajuda a explorar questões que, de outra forma, poderíamos não perceber.

A identificação dessas questões nos ajuda a avaliar o realismo e o grau de validade do modelo. O esquema neoclássico previa, por exemplo, que o comércio entre países desenvolvidos e em desenvolvimento iria reduzir os salários de trabalhadores não especializados nos países desenvolvidos. Foi um aviso que deveríamos ter levado em consideração. Por outro lado, o modelo Dsge afirmava que não poderiam ocorrer bolhas financeiras, mas qualquer um que tivesse lido livros de história sabia que existiam bolhas financeiras, e como. Em suma, o modelo tinha implicações que eram obviamente erradas e isso deveria ter sido um aviso para não o levar a sério.

Há quem diga que a irrupção desse vírus no cenário mundial tenha um sentido, quase uma dimensão da necessidade: forçar a humanidade a desacelerar, reduzir o crescimento, redefinir modelos de desenvolvimento, repensar a chamada globalização. Não gosto dessas interpretações muitas vezes carregadas de certa dose de moralismo paternalista. É verdade, porém, que o que está acontecendo também poderia ser uma oportunidade. A cidade de Amsterdã, por exemplo, anunciou que adotará o chamado "doughnut model" proposto pela economista Kate Raworth para redefinir o conceito de desenvolvimento após o coronavírus. O modelo tenta superar a ideia de que o crescimento seja o indicador mais importante de uma economia saudável e se concentra no atendimento das necessidades das pessoas em termos ecológicos e na prevenção da degradação ambiental. O que você acha disso?

Rahm Emmanuel, chefe de gabinete do presidente Obama, dizia que uma crise nunca deveria ser desperdiçada, mas infelizmente foi exatamente isso que aconteceu. Acredito que essa crise, em muitos aspectos mais profunda e com implicações muito mais intensas, tem muito a nos ensinar: a importância da ciência, o papel estratégico do setor público e a necessidade de ações coletivas; as consequências desastrosas das desigualdades e a negação do acesso à assistência médica como direito humano fundamental; os perigos de uma economia de mercado míope, incapaz de resiliência.

A pandemia é uma crise que o mundo deve enfrentar em conjunto, assim como a crise climática, que não desapareceu e, aliás, poderia ser a causa de outras epidemias. Devemos aprender a compartilhar o planeta e isso requer uma cooperação que Trump fez todo o possível para minar nos últimos anos. A principal tarefa do próximo presidente será restaurar a cooperação global.

A pandemia mostrou de maneira física a vastidão e as conexões da globalização e também sua vulnerabilidade. Existem antídotos contra os perigos de estruturas gigantescas e a interdependência global? É razoável falar de uma dimensão ideal das comunidades para o futuro?

Vivemos todos em comunidades múltiplas. Eu sou nova-iorquino e tenho orgulho disso, tenho orgulho de como nossa cidade respondeu unida à pandemia, assim como fez depois do 11 de setembro. Mas também fazemos parte da comunidade nacional e internacional e, é claro, haverá necessidade de mais cooperação global para enfrentar a pandemia. Mas essa emergência mostrou que, apesar da globalização, o Estado-nação ainda é a unidade fundamental da ação política.

Em seu último livro "People, power, profits", em especial no capítulo dedicado à recuperação da democracia, você se concentra nas sérias patologias da democracia estadunidense. Entre essas, os obstáculos que em muitos Estados se colocam contra o exercício do direito de voto, algo que me impressiona muito.

O problema fundamental nos EUA é a existência de um grupo de minorias que pretendem impor suas opiniões à maioria: os antiabortistas que negam às mulheres seus direitos de escolha, o lobby de armas que nega o direito de viver em condições de segurança e, acima de tudo, pessoas ricas que não apenas desejam manter suas riquezas, mas querem enriquecer ainda mais às custas de todos os outros. Querem conservar uma sociedade desigual, com salários muito abaixo do limiar de sobrevivência, sem acesso aos cuidados para os pobres, sem negociação coletiva e com o direito das grandes empresas de aproveitar do poder de mercado, de abusar do meio ambiente, de explorar os mais vulneráveis. Essa é uma distopia e mantê-la viva em um sistema democrático é difícil. Isso só pode ser feito com a supressão do direito ao voto e a distorção da democracia realizados através da manipulação dos colégios eleitorais e outros imbróglios semelhantes. A única maneira de se opor a tudo isso é conscientizar os cidadãos do que está acontecendo e mobilizá-los em defesa da democracia para restaurar a regra: poder para a maioria temperado pelos direitos das minorias. No sistema atual, uma minoria controla o governo e privou a maioria de suas prerrogativas legítimas.

Da América para a Europa. Alguns líderes populistas no passado citaram algumas de suas declarações em chave anti-euro. Qual é a sua opinião sobre o futuro da moeda única e das instituições europeias?

A Europa está realizando um teste difícil. As nações europeias terão solidariedade e coesão suficientes para se ajudarem? Eles serão capazes de ativar os eurobonds para combater os efeitos da epidemia e reerguer as economias devastadas? Se não assim, o euroceticismo só poderá aumentar. O euro é uma construção deixada pela metade. Existem duas alternativas: mais euros ou até menos euros. O que é insustentável é ficar no meio do caminho. Pessoalmente, espero que a Europa tome as medidas necessárias para uma zona do euro mais forte.

Este dia 1º de maio é diferente, cai enquanto muitas atividades econômicas ainda estão paradas e há uma grande preocupação com o emprego. Você acha que algumas das mudanças na maneira como trabalhamos, como aquele remoto ou flexível a que o coronavírus nos obrigou, se tornarão permanentes? E você acredita que esta crise destacou a necessidade de uma renda universal?

Muitos comportamentos permanecerão. Haverá mais videoconferências, menos viagens, horários de trabalho mais flexíveis. Mas não acho que se chegará a formas universais de renda. O trabalho ainda é importante para a sensação de bem-estar da maioria das pessoas. E há muito trabalho a ser feito: construir uma nova economia verde, por exemplo.

Minha opinião é que aqueles que tratam de disciplinas sociais poderiam realmente enfrentar a complexidade, como o desafio de construir uma economia verde como você mencionou agora, também e especialmente dedicando-se a leituras que aparentemente nada têm nada a ver com sua disciplina. A leitura de uma boa narrativa nos coloca em contato com a ideia de complexidade, nos diz que há uma inevitável pluralidade de pontos de vista sobre o mundo; isso nos ajuda a escapar da rigidez interpretativa que deriva da intrusão da técnica. Além disso, quase nunca é puramente técnica e sempre inclui uma dimensão ideológica. Além dos textos de sua área, o que você gosta de ler?

A economia é uma ciência que estuda como indivíduos e sociedades distribuem recursos escassos e deve ser estudada em conexão com todas as outras ciências sociais. Para mim, o mais importante é o estudo da história. A história nunca se repete exatamente da mesma forma, mas refletir sobre os eventos do passado sugere intuições sobre o presente. Por exemplo, existem muitas afinidades entre o despontar dos fascismos e o que está acontecendo hoje.

O que você está lendo neste momento?

No momento estou lendo três livros. Nascido do crime de Trevor Noah, autor sul-africano. Um livro de memórias cheio de humor e força sobre uma infância no tempo do apartheid. Deaths of Despair and the Future of Capitalism de Anne Case e Angus Deaton, um ensaio que fala sobre as terríveis desigualdades do meu país e ajuda a entender como um demagogo conseguiu se tornar presidente dos Estados Unidos. Por fim, com o nosso grupo de leitura, decidimos reler Amor nos tempos de cólera. A escolha, por razões óbvias, nos pareceu apropriada.

Você nos fala sobre um lado positivo - se houver - desse tempo suspenso?

Tenho oportunidade de me dedicar um pouco mais à cozinha.

 

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