Scalfari e os diálogos sobre a fé

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06 Novembro 2019

"A relação com a política - e, portanto, com o poder - é a outra frente sobre a qual se mede toda a novidade do pontificado de Francisco. Revolucionário, o define sem hesitações Scalfari. Certamente não porque confunde o que é de Deus e o que é de César, mas porque ele não interpreta essa distinção como fuga do mundo", escreve Roberto Esposito, filósofo italiano, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 05-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Quando em 11 de setembro de 2013 chegou uma carta do Papa Francisco ao jornal Repubblica a surpresa não foi menor que a emoção. Eugenio Scalfari o relata em seu último livro Il Dio unico e la società moderna. Incontri con papa Francesco e il cardinale Carlo Maria Martini (O Deus único e a sociedade moderna. Encontros com o Papa Francisco e o cardeal Carlo Maria Martini, em tradução livre) publicado agora pela Einaudi e à venda nas bancas também com o jornal. Era a resposta, intensa e detalhada, às perguntas feitas a ele no mês anterior por Scalfari em dois editoriais do jornal. A porta tradicionalmente fechada entre a liturgia cristã e a cultura iluminista de repente se abria através de um gesto totalmente inédito. No entanto, não se deve pensar em alguma espécie de mediação entre as duas perspectivas. Nem o pontífice de Roma nem o grande intelectual laico pretendiam renunciar a suas próprias posições. E nem tentar "converter" o interlocutor para o seu ponto de vista. Algo diferente estava em jogo, e talvez ainda mais importante: abrir um confronto sem reticência entre razão e fé. Somente pela diferença pode surgir a centelha do acordo sobre as questões não resolvidas do nosso tempo, começando pela identificação de seu mal supremo: a indiferença em relação à injustiça, à desigualdade e à discriminação. Nesse sentido deve ser entendida a convicção do cardeal Martini - com quem Scalfari manteve ao longo dos anos um intenso diálogo reproduzido na primeira parte do livro - que os não-crentes estejam mais próximos aos verdadeiros cristãos do que os falsos devotos. Nada está mais longe da fé autêntica do culto convencional do que aqueles que a contradizem cotidianamente em seus gestos.

No centro do duplo diálogo - com o cardeal e o futuro papa - a linha de tangência entre cristianismo e história. Em relação às outras religiões, mesmo monoteístas, o cristianismo é a única que implica uma profunda relação com a história através do evento da Encarnação. Ao encarnar-se, Cristo tornou-se homem, assumindo sobre si todas as dores do mundo. É, junto com a Ressurreição, o mistério central do cristianismo. Enquanto a Encarnação introduz a transcendência na história, a Ressurreição mergulha o tempo na dimensão do Eterno: "A Ressurreição do espírito - afirma o cardeal em um dos momentos mais marcantes do diálogo com Scalfari - é a chama que move a roda do mundo”.

Naturalmente é o ponto em que a distância entre cristão e não crente - como em todo o diálogo Scalfari se proclama - é máxima. E, no entanto, é também o ponto destinado a reunir as duas perspectivas em outro plano. A ressurreição não é apenas dos mortos, no mistério insondável da fé. Também pode envolver os vivos, sempre que o amor ao próximo vence o amor por si próprio. Nesse segundo sentido se ressuscita, pode-se ressuscitar, em relação ao inferno do egoísmo, a todo momento, por parte de cada um, até do pior dos pecadores.

Justamente "a abolição do pecado" - através do perdão divino - é para Scalfari o salto para a frente mais desconcertante em relação aos vínculos da tradição realizado pelo Papa Francisco no plano teológico. Antes de tudo, porque restitui ao homem toda a liberdade - mesmo a de rejeitar a Graça que de qualquer maneira o interpela. Mas, acima de tudo, porque modifica radicalmente o rosto que a Igreja por muito tempo atribuiu a Deus, substituindo a misericórdia do perdão ao juízo inapelável entre salvação e danação. Somente um Deus de amor pode ser o Deus único, que não pertence a ninguém porque pertence a todos os fiéis. Toda a ação apostólica do Papa Francisco se move nessa direção, ao longo da trilha traçada por Paulo de Tarso, quando, nos primórdios do cristianismo, se dirigiu ao mesmo tempo a cristãos, judeus e pagãos, crentes e não crentes. O livro insiste nessa linha de tensão entre a luz divina e a luz da razão. Não para confundir num amálgama indistinto racionalidade e fé, mas para relançar as perguntas, necessariamente sem resposta, que uma apresenta à outra. A dúvida, mas também a esperança, passa por ambas, colocando-as em relação justamente através de seu contraste.

Por um lado - o do crente - o mistério da eternidade que redime no fim a violência da história. Pelo outro - daquele que não pode acreditar, mesmo sentido-se atraído pelo chamado da fé - a ideia de que o homem seja uma espécie animal distinta das demais apenas pela presença de uma mente que reflete sobre si mesma e pela consciência de ser prometido à morte. A morte não apenas como resultado inevitável, mas como pressuposto da vida. Sem a presença incumbente da morte, que desafiamos todos os dias, faltaria a energia que nos leva às obras da vida e também ao empenho político.

A relação com a política - e, portanto, com o poder - é a outra frente sobre a qual se mede toda a novidade do pontificado de Francisco. Revolucionário, o define sem hesitações Scalfari. Certamente não porque confunde o que é de Deus e o que é de César, mas porque ele não interpreta essa distinção como fuga do mundo.

Pelo contrário, assume-a como um exercício que tem o aspecto de uma verdadeira batalha. Fora e dentro da Igreja. Fora, em defesa de quem é abandonado, discriminado e rejeitado pelas áreas protegidas do mundo. Dentro da Igreja, contra os poderes que, antepondo os interesses da instituição eclesiástica, a distraem de sua missão pastoral.

À Igreja vertical da Cúria, Francisco contrapõe aquela horizontal, cujo significado está impresso no nome que ele escolheu. É claro que sua "guerra" está apenas começando e está longe de estar vencida. Como já foi dito, os abutres ainda voam alto sobre o Vaticano. Aliás, as opiniões sobre a obra do Papa não coincidem inteiramente. Mas, como lembra Scalfari, uma coisa é inquestionável. Quer fale no austero salão das audiências ou na periferia do mundo, Francisco nunca muda de interlocutor - os náufragos do mar e da terra.

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