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16 Agosto 2019

"Compete aos defensores dos direitos animais e aos profissionais do direito que apregoam a justiça social e ambiental a ampla difusão do conhecimento sobre os interesses animais e a importância ética de respeitá-los, a desnecessidade e crueldade das práticas exploratórias de seres sencientes, a importância vital da fauna silvestre no exercício de sua função biológica que só é possível mediante a liberdade etc. A história nos mostra que o Direito evolui quando a sociedade evolui e não o contrário", escreve Vanice Cestari, advogada e defensora dos direitos de animais, em artigo publicado por Saber Animal, 05-08-2019.

Eis o artigo.

A vigente Constituição da República reconheceu que a fauna (os animais, sem distinção de espécie) são sujeitos do direito ao meio ambiente sadio, assim como também houve o entendimento – doutrinário e jurisprudencial – de que os seres humanos também possuem o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. “Todos têm direito”. Ainda que este não fosse o entendimento da época, esta percepção foi desenvolvida e vem sendo compreendida ao longo das últimas décadas: o ser humano está inserido em um sistema ecológico que se desenvolve em simbiose, sendo dependente de outros seres vivos (biota) e de fatores abióticos (água, temperatura adequada, solo etc) para a sua própria existência e manutenção da vida. Este entendimento (direito fundamental) aos ecossistemas saudáveis pode ser facilmente estendido para os animais não-humanos.

A Constituição da República, lei maior do Estado, também reconheceu os animais como sujeitos do direito de não serem submetidos à crueldade de modo que podemos facilmente concluir que, desde 1988, se faz implícito o reconhecimento de que os animais são seres sensíveis ou sencientes. Neste ponto é importante notar que caso a intenção do legislador fosse a exclusiva proteção ecológica ou ambiental (e/ou ainda a mera preservação da dignidade humana) a redação do inciso VII não iria tão longe. Veja abaixo o trecho da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225, § 1º e inciso VII:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: (…). Inciso VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

A lei não contém palavras inúteis é uma expressão jurídica que alude a um princípio básico de hermenêutica (interpretação) e aqui a citamos porque a Constituição da República, em sua redação original, dispôs clara e taxativamente sobre proibição de práticas que submetam os animais à crueldade.

Isto significa que a nossa Lei Fundamental reconhece que os animais não são coisas e que possuem direitos (ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a não submissão à crueldade), muito embora o Código Civil de 2002 (de hierarquia menor no sistema jurídico pátrio, ainda reproduz a ideia central patrimonialista do Código de 1916 que disciplinava animais como coisas na mesma categoria das “pedras, conchas e outras substâncias minerais e vegetais”) dispõe atualmente que “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia”.

De coisas semoventes a bens móveis, nada mudou para os animais no campo privado do direito civil por um motivo central: a estrutura social do país dependia e em certa medida ainda depende disso. Uma nova lei que agora declare “natureza jurídica sui generis” aos animais não humanos terá força suficiente para alterar essas mesmas bases estruturais? Certamente não terá para abolir a instrumentalização e o uso mercantil desses animais.

Já o Decreto de nº 24.645 de 1934 recepcionado pela Constituição de 1988 com força de lei nos artigos que com esta é compatível, dispõe sobre a tutela dos animais pelo Estado, sobre a cooperação entre poder público e organizações da sociedade civil protetoras dos animais, exemplifica hipóteses de maus-tratos aos animais, trata da representação dos animais em juízo, ou seja, não há dúvida de que já são reconhecidos como seres sensíveis e não como objetos.

Em uma simples interpretação jurídica na análise de um caso concreto, as leis de proteção animal (existentes até mesmo em alguns municípios) e as leis ambientais, estão no mesmo patamar que o Código Civil (se forem leis federais) e em todo caso hierarquicamente abaixo da Constituição, devendo sempre serem interpretadas à luz da Constituição Federal (e/ou de Constituições Estaduais mais benéficas). A Constituição da República de 1988 nunca tratou os animais como coisas, pelo contrário, inseriu um artigo em clara defesa dos interesses animais não humanos.

Nesse cenário, o problema não é a mera ausência de leis que protejam animais, mas a ausência de leis abolicionistas, já que a crueldade é intrínseca às muitas atividades exploratórias. O problema é a falta de aplicação das leis já existentes e a falta de fiscalização dos órgãos competentes, a pouca jurisprudência que reconheça direitos fundamentais aos animais.

Outro problema gravíssimo é a ausência de políticas públicas para a proteção dos animais conforme é assegurado constitucionalmente pelo artigo 225 (direito dos animais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – portanto, direito à vida – e não submissão à crueldade versus dever do poder público e da coletividade).

Compete aos defensores dos direitos animais e aos profissionais do direito que apregoam a justiça social e ambiental a ampla difusão do conhecimento sobre os interesses animais e a importância ética de respeitá-los, a desnecessidade e crueldade das práticas exploratórias de seres sencientes, a importância vital da fauna silvestre no exercício de sua função biológica que só é possível mediante a liberdade etc. A história nos mostra que o Direito evolui quando a sociedade evolui e não o contrário.

Já a lei é o resultado de uma correlação de forças diversas que reflete os anseios sociais de sua época (especialmente os das classes dominantes) e não tem o condão de mudar a realidade, os animais não humanos permanecerão explorados e violentados sem leis abolicionistas.

O Projeto de Lei nº 27/2018, se aprovado conforme a sua atual redação, não confere nenhum direito instantâneo a animais de quaisquer espécies. Se e quando vier à aprovação, com respeito às opiniões divergentes, será apenas uma lei simbólica sem eficácia prática. Na mais “otimista” hipótese, provavelmente servirá de amparo a legislação utilitarista bem-estarista que objetifica animais. Se assim não fosse, alguns direitos mínimos deveriam ser expressamente reconhecidos aos animais sem mais delongas. Ao invés disso, reconhece que animais não são pessoas (conforme a redação do projeto de lei, são “sujeitos de direitos despersonificados” – isto é, são titulares de direitos sem personalidade jurídica, não sendo alçados a inseparável proteção legal como acontece com todo ser humano quando nasce com vida e até mesmo com as “pessoas” jurídicas) sem sabermos o que isso significará em termos práticos.

Ao longo de quase 50 anos, ambientalistas gradativamente foram conquistando espaço público para a pauta ambiental na proteção e defesa do meio ambiente global e hoje é bastante presente o entendimento de que o meio ambiente sadio é também um direito humano fundamental conforme mencionei anteriormente, muito embora a sua concretude esbarra nos planos políticos de países extrativistas, dentre outros desafios. Um exemplo de que a luta por direitos é permanente e incessante.

Acreditar que a aprovação de uma lei federal não abolicionista (Projeto de Lei nº 27/2018 por exemplo) vai melhorar a situação dos animais não-humanos neste momento que estamos vivendo no país é, no mínimo, ingenuidade. Além do mais, a sua redação é tão vaga e imprecisa que não parece exagero dizer que vai ao encontro (converge) até mesmo das ideias (?!) do atual governo federal. Afirma-se os direitos dos animais. Quais direitos? Quais animais? Animais sentem e são passíveis de sofrimento. Dentre outras divagações e obviedades. Caso queira, leia aqui.

Para ilustrar meu raciocínio, faço aqui algumas provocações:

- Zoológicos serão fechados para visitação e transformados em centros de reabilitação?

- Haverá proibição de construção de novos aquários e fechamento dos já existentes?

- Animais domésticos e/ou silvestres não serão mais comercializados?

- Parques temáticos serão proibidos de funcionamento, de adquirir novos animais?

- Centros de pesquisa, universidades e laboratórios serão proibidos de usar e testar seus experimentos e/ou produtos em animais?

- O uso de cobaias ficará no passado sombrio da humanidade?

- A ciência vai, finalmente, se aliar à ética?

- Veículos de tração animal serão finalmente abolidos do sistema de trânsito? (Aliás, melhor seria uma lei revogando artigos que dispõem sobre tração animal no Código de Trânsito Brasileiro!).

- A indústria alimentícia vai liberar os animais não-humanos e suas secreções fisiológicas da cadeia produtiva? E a indústria de peles? De cosméticos? De produtos de limpeza? E a farmacêutica? Quais direitos, afinal, terão efetivamente os animais?

- Governos farão campanhas educacionais em massa para informar a sociedade civil sobre a instrumentalização desnecessária dos animais não humanos, para além de cães e gatos?

Se pensarmos em toda a cadeia exploratória, mais perguntas surgirão. Há resposta para, pelo menos, alguma delas? Na “melhor” das hipóteses, o Projeto de Lei de nº 27/2018 certamente servirá como base para regulamentação de práticas utilitaristas ou bem-estaristas.

“Sujeitos de direitos despersonificados” parece uma bela e impactante expressão, mas quais direitos objetivos, afinal, serão portadores os animais não-humanos? Certamente há quem pedirá paciência e dirá que nova(s) lei(s) virão posteriormente para estabelecer os tais direitos “secretos”, possivelmente a mesma pessoa que ainda acredita que o governo Bolsonaro será um bom aliado para a defesa dos interesses animais…

A crueldade e os maus-tratos, já sabemos, são práticas vedadas por leis há décadas, portanto não basta culpar o responsável pela redação do Código Civil de 2002 (que já não definia animal como coisa, diga-se). Não é devido a redação do Código Civil que muitas pessoas não respeitam os animais não humanos. Aliás, na atual redação do Projeto de Lei nº 27/2018 (antigo Projeto de Lei nº 6.799/2013), o Código Civil não será alterado, mas outra lei federal, a de nº 9.605/98 (lei de crimes ambientais), para dispor que não se aplica a definição de bens móveis aos “sujeitos de direitos despersonificados”.

Outra pergunta pertinente: com a aprovação do Projeto de Lei nº 27/2018, como fica a Política Nacional do Meio Ambiente (lei federal nº 6.938 de 1981) especificamente em seu artigo 3º, inciso V que trata a fauna como recurso ambiental? Pela sistemática jurídica, lei posterior revoga lei anterior. Se animais deixarem a categoria jurídica de bens com a aprovação do Projeto de Lei nº 27/2018, o IBAMA está proibido de conceder licença, renovação ou registro para uso da fauna e de suas partes, produtos e derivados para os mais diversos fins (criadouros científicos, criadouros comerciais, zoológicos, circos, indústria de peles, importação e exportação de animais vivos e abatidos etc). Que maravilha, o sonho de qualquer animalista abolicionista. Alguém imagina pra já estas possibilidades? Ricardo Salles e Jair Bolsonaro acharão genial, não é mesmo? Afinal, a natureza jurídica sui generis aliada a despersonificação dos animais não-humanos pode dar margem para situações jurídicas bastante inusitadas e esdrúxulas, aliás, a cara desse desgoverno. Se sancionado o projeto, talvez seja lembrada como mais uma “lei que não pegou”.

A Lei Áurea que aboliu a escravatura no Brasil em 13 de maio 1888 foi promulgada em dois artigos, o primeiro declarando extinta a escravidão, o segundo revogando as disposições em contrário. Direto ao ponto. Objetiva. É fato que ela foi precedida por duas leis anteriores, a Lei do Ventre Livre em 1871 e a Lei dos Sexagenários em 1885, ambas abolicionistas. Alguém imagina os defensores do abolicionismo se conformando com leis vagas, genéricas e não abolicionistas? Os movimentos de luta abolicionista antiescravista conquistaram a abolição da escravidão depois de profundas mudanças nas estruturas sociais, políticas e econômicas numa correlação de forças externa e interna, não foi uma bondosa e simples canetada do poder imperial que libertou os escravos negros, aliás, o governo os libertou formalmente mas virou as costas desde então para a inclusão e justiça social dos povos negros até os dias atuais.

A legislação de alguns países vem refletindo, paulatinamente, a questão da senciência e da não crueldade com os animais não humanos e não descarto certa relevância simbólica de alguns atos legislativos, porém acredito que como civilização humana neste século XXI podemos mais. Nenhum homem público contribuirá com uma “sociedade mais consciente e solidária” escrevendo isso num papel pra fazer bonito, que desperdício legislativo, francamente. A solidariedade já é um objetivo fundamental da República, não carece ser reproduzido em escritos, tampouco em novas leis, precisa ser aplicado.

A defesa dos interesses ou direitos dos animais já vem de longa data e essa discussão precisa avançar em toda a sociedade, inclusive obter apoio de ambientalistas e ecologistas, de estudantes, de pesquisadores, de educadores, de profissionais do direito, de biólogos, de outros movimentos sociais, de setores progressistas. Isso não acontece com a sanção de uma nova lei abstrata que sequer concede direitos, tampouco liberdade.

Algumas universidades estrangeiras já oferecem cada vez mais em suas disciplinas curriculares o Direito Animal. Desde o início do século XIX surgiram as primeiras organizações protetoras dos animais e leis condenando a crueldade praticada contra eles (a exemplo da Inglaterra, Alemanha, França) no entanto ainda carecemos de leis abolicionistas a nível nacional e internacional, talvez porque nem sempre o real interesse seja, de fato, o bem estar animal propriamente dito.

Ir além desse corpo legislativo e pôr em ação medidas abolicionistas, por exemplo, seria mais eficaz para evitarmos o sofrimento dos animais devido a violência que dirigimos contra eles, porém manter a exploração animal é também interesse de muitos Estados e setores sociais.

A Índia, em decisão judicial histórica, proibiu o confinamento de pássaros em gaiolas e não precisou de uma lei que declarasse que pássaros tem asas para voar, dentre outras decisões abolicionistas garantidas pela Suprema Corte Indiana.

Questionar não significa necessariamente torcer contra uma situação. A neutralidade em certos momentos parece ser a melhor opção, mesmo porque numa sociedade violenta e, sobretudo nos tempos atuais, a afirmação de preceitos éticos tem lá a sua importância pedagógica. Acredito que o verdadeiro abolicionista é um ser rebelde por natureza que tem o dever primeiro de indagar a ordem vigente e tudo aquilo que não possui princípios libertários. Às vezes é preciso mexer nas coisas para que se aparente um falso progresso e então simplesmente permaneçam como estão.

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