Essencialismo, inimigo da liberdade de origem. Artigo de Giso Amendola

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

26 Julho 2019

Invoca-se frequentemente entre as várias desorientações, esquecimentos e faltas de que hoje carregaremos o luto, uma "crise" da identidade. Para as direitas, a reconquista da identidade, ou a defesa da identidade ameaçada, é a pedra fundamental de toda estratégia, tanto que "identitário" é o adjetivo mais usado pelas direitas de governo: mas também à esquerda, a análise, ou mais frequentemente, a queixa, é conduzida em termos de uma identidade "forte", sempre dada como perdida e sempre a ser reencontrada.

O comentário é de Giso Amendola, pesquisador e escritor italiano, integrante do projeto EuroNomade, em artigo publicado por il manifesto, 25-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

Ao mesmo tempo, nos próprios discursos que denunciam a perda da identidade (no singular), as identidades (no plural) são apontadas como o inimigo a ser batido, a causa de uma fragmentação deplorável: especialmente quando aparecem sob o signo das chamadas políticas da identidade, ou, em outras palavras, de reivindicações relacionadas a gênero, raça, cultura. Neste ruído que busca a identidade como último recurso e teme a identidade como a mais inquietadora ameaça, cai bem a tradução italiana, de Flavio Santi, de La menzogna dell'identità. Come riconoscere le false verità che ci dividono in tribù (A mentira da identidade. Como reconhecer as falsas verdades que nos dividem em tribos, em tradução livre), de Kwame Anthony Appiah (Feltrinelli, p. 280, euro 19).

Appiah aqui coloca em jogo a sua biografia, usando-a como instrumento contra a simplificação envolvida nos discursos identitários. Pai negro de Gana, cristão metodista, mãe branca, inglesa, anglicana, que viveu até a morte do pai em Kumasi, em Gana, agora professor de filosofia na Universidade de Nova York, Appiah conta que é perseguido pela pergunta sobre as origens: uma pergunta que liga intrinsecamente onde você nasceu com quem você é. Mas as dimensões biográficas se entrelaçam constantemente: nacionalidade, gênero, raça, religião, residência metropolitana ou interiorana, moldam nossa existência em direções e formas nunca representáveis de maneira estável e definitiva. Partindo de si mesmo, o filósofo constrói assim um percurso de abertura e desmantelamento dos mecanismos identitários: a identidade é um rótulo que influi tanto a maneira como nos concebemos, quanto na maneira pela qual somos vistos e considerados pelos outros. Lembrar que é uma construção social serve para nos curar da armadilha que dispara quando esquecemos que esse rótulo é apenas o resultado contingente de processos sociais plurais e conflitantes.

É o essencialismo, para Appiah, o perigo mortal na lógica identitária: assim, através da análise de conceitos como nação, raça, cultura, classe, o livro se transforma em um exercício de escuta da mobilidade e da pluralidade irredutível das construções identitárias, uma terapia contra o fundamentalismo identitários e os vários tipos de armadilhas reducionistas.

Significativamente, e com razão, Appiah coloca em uma posição diferente a questão do gênero: na realidade, o discurso de gênero não é uma construção de identidade entre as outras, mas produziu o próprio modo de olhar para a identidade como um rótulo, colocando assim a crítica ao essencialismo em movimento. A própria imagem de identidade como construção social, fronteira móvel e contestada entre inclusão e exclusão, escreve Appiah, "resulta em uma generalização dos modos de pensar o gênero elaborados pelas pioneiras estudiosas do feminismo".

Appiah consegue apreender muito bem como o olhar de gênero seja capaz de subverter qualquer distribuição fixa das identidades, dando origem a deslocamentos, trânsitos e recombinações que rompem com qualquer "síndrome de Medusa" (para usar uma bela expressão de Appiah) que pretenda congelar essencialisticamente as identidades. O olhar (antiessencialista) de gênero abre-se à perspectiva interseccional, que Appiah assume com grande força: a interseccionalidade nomeia a capacidade de olhar para a interação e o conflito entre as diferentes dimensões de identidade, de raça, de gênero e de classe, indo além da simples soma desses diversos aspectos, e analisando mais a produção de recombinações inéditas, tanto progressistas e liberatórias, como estigmatizantes e opressivas.

Além disso, ressalta o estudioso, a interseccionalidade funciona como mecanismo de permanente contestação dos privilégios: ninguém pode pretender falar por todos, ninguém pode jamais considerar a posição que ocupa, na intersecção das diferentes condições de gênero, raça e classe, tão exemplar a ponto de constituir uma autorização para a generalização e uma garantia de particular autoridade. Nesse sentido, a interseccionalidade coloca e transforma as identidades e, ao mesmo tempo, as desestabiliza e as contesta.

A interseccionalidade nos empurra para o coração dos conflitos abertos pelos movimentos de luta que atravessam as identidades (e as políticas da identidade). Não era sem tempo, estaríamos prontos a dizer: porque uma terapia antiessencialista é certamente saudável, mas a insistência de Appiah sobre as dimensões plurais, múltiplas e móveis da identidade corre o risco de ser frágil se confiarmos demais, como o livro tende a fazer, para uma espécie de hermenêutica de abertura infinita, para uma sólida desmistificação das mitologias fundamentalistas.

A escuta da riqueza das diversidades do mundo é crucial, mas não nos protege do abrupto ressurgimento da violência identitária, nem, principalmente, dos mecanismos apropriativos que o capitalismo contemporâneo sabe empregar, tendo aprendido a extrair valor precisamente da diversidade e da multiplicidade de sujeitos e das formas de vida.

Não é que Appiah negligencie tais dimensões: o final do livro apresenta muitos exemplos de conflito entre a lógica da apropriação capitalista e a lógica oposta das "apropriações culturais" recíprocas e das transações através de identidades, tradições e culturas. Mas, para não ceder às lógicas da propriedade, desconstruir a armadilha identitária evidentemente não é suficiente. É necessário tentar reabrir uma discussão de classe, com toda a força, mas também com todos os riscos que o apelo à classe pode acarretar para que quem pretende acabar com as mentiras da identidade. A classe, de fato, também pode apresentar aspectos identitários, mas ao mesmo tempo é um motor de transformação em relação às identidades.

Appiah lembra explicitamente a lição do historiador inglês Edward P. Thompson contra qualquer reducionismo economicista, a visão da classe trabalhadora “em seu constituir-se "como produção de uma subjetividade proletária irredutível a qualquer homogeneidade identitária. Essa classe como dispositivo político de composição de subjetividades heterogêneas é um traço indispensável para construir resistências nos confrontos, simultaneamente, tanto de dispositivos identitários como daqueles proprietários. A começar com aquela "carapaça de mérito" (assim coloca Appiah em belas páginas contra a meritocracia) que volta a bloquear, dentro de novas hierarquias, a mobilidade social conquistada por uma sociedade que rompeu os mapas identitários tradicionais.

Acompanhando essa lição, que pode tentar reabrir o embate de classes dentro da produção de subjetividade, e no próprio coração das lutas trans- e pós-identitárias, ao invés de alternativa a elas, deve ser exercido um antiessencialismo radical, na plena consciência da historicidade sempre questionável de todas as normas que pretendem fixar limites e hierarquias de gênero, de raça e de classe. Nenhum arrependimento, portanto, pelas chamadas identidades fortes, que sejam nostalgias de alguma diferença essencialisticamente orientada ou por uma classe "industrial" de homogeneidade mais mítica que real ou ainda por aquele, invocado até em demasia, "povo soberano". Mas, ao mesmo tempo, é necessário deixar para trás toda e qualquer versão sociológica ou cultural da interseccionalidade, para torná-la um motor de composição de conjuntos singulares, de um comum atravessado e marcado em toda a sua superfície pelas diferenças. Direções indicadas hoje pelos movimentos que praticam cotidianamente o rompimento de identidades e fronteiras: atravessamentos migratórios, navios "piratas" da solidariedade, movimentos transfeministas globais.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Essencialismo, inimigo da liberdade de origem. Artigo de Giso Amendola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU