Insegurança alimentar, um problema multifatorial. Entrevista especial com Cássia Medino Soares

Foto: Clica Brasil

Por: Patricia Fachin | 05 Junho 2019

O nível de insegurança alimentar dos recicladores de duas Unidades de Triagem de Resíduos em Porto Alegre “é maior que a porcentagem de insegurança na região Sul do país e que a porcentagem da média nacional brasileira”, informa a nutricionista Cássia Medino Soares à IHU On-Line. Autora da pesquisa “Perfil de saúde e insegurança alimentar: um olhar sobre trabalhadores das unidades de triagem de resíduos da zona leste de Porto Alegre – RS”, ela afirma que, dos 73% dos trabalhadores classificados com insegurança alimentar, cerca de 16,2% sofriam de insegurança grave.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Cássia relata que a alimentação da maioria dos trabalhadores “é baseada em carboidratos simples, muito consumo de açúcar, café preto, alimentos embutidos, como salsicha, mortadela, presunto, biscoitos recheados, macarrão instantâneo (miojo), com pouco consumo de alimentos integrais, frutas e verduras. Alimentos de baixa qualidade nutricional em geral. Além disso, muitos acabam também consumindo alimentos que encontram no meio da triagem, provenientes do descarte”.

De acordo com ela, a insegurança alimentar é um “problema multifatorial e bastante complexo”, que está relacionado a um conjunto de fatores “decorrentes das mazelas sociais, principalmente as relacionadas à marginalização dessas comunidades, como aumento de violência na periferia, tráfico de drogas, uso de substâncias psicoativas, falta de escolas, crescente desemprego, informalidade, entre outros”.

Cássia também comenta a situação das cozinhas das Unidades de Triagem e assegura que “falta um repasse constante de verba para a alimentação (ou até mesmo alimentos) por parte da administração do município”.

Cassia Medino Soares é graduada em Nutrição pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e mestre em Ciências em Gastroenterologia e Hepatologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atuou na Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável – COSANS.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como foi feita sua pesquisa sobre o índice de vulnerabilidade alimentar entre trabalhadores que trabalham com reciclagem?

Cássia Medino Soares - A pesquisa foi realizada em duas Unidades de Triagem de Resíduos em Porto Alegre. Ela faz parte de um projeto de pesquisa maior (da minha autoria) que avaliou vários aspectos de saúde desses trabalhadores (exames laboratoriais, testagem rápida, avaliação antropométrica, entre outros aspectos). Para a obtenção de todos os dados dessas variáveis, fizemos intervenções multiprofissionais com outros colegas e professores vinculados ao PPG de Gastroenterologia e Hepatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

Um dos aspectos avaliados foi a segurança alimentar, pois a partir da minha vivência nesses locais senti necessidade de obter números mais objetivos do que andei observando acerca da alimentação dessa população. Para a obtenção desses dados foi utilizada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA, que é validada no país e utilizada em estudos epidemiológicos, que classifica a presença de segurança alimentar, insegurança alimentar leve, moderada e grave.

IHU On-Line - Qual é o nível de vulnerabilidade alimentar dos trabalhadores das unidades de triagem de resíduos de Porto Alegre que foram pesquisadas?

Cássia Medino Soares - 73% dos trabalhadores foram classificados com insegurança alimentar. Cerca de 16,2% sofriam de insegurança grave.

IHU On-Line - Qual é o perfil dos trabalhadores pesquisados?

Cássia Medino Soares – A maioria mulheres, com sobrepeso e/ou obesidade, baixa escolaridade (até 4ª série), alta vulnerabilidade social, tabagistas e sedentárias.

IHU On-Line - O que pôde observar acerca da rotina alimentar dos trabalhadores? Que alimentos compõem a dieta alimentar deles, onde e quantas vezes ao dia eles se alimentam?

Cássia Medino Soares – A alimentação é baseada em carboidratos simples, muito consumo de açúcar, café preto, alimentos embutidos (salsicha, mortadela, presunto...), biscoitos recheados, macarrão instantâneo (miojo), com pouco consumo de alimentos integrais, frutas e verduras. Alimentos de baixa qualidade nutricional em geral. Além disso, muitos acabam também consumindo alimentos que encontram no meio da triagem, provenientes do descarte.

IHU On-Line - O que constatou ao fiscalizar as cozinhas que estão sob a responsabilidade da Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável - Cosans do município de Porto Alegre?

Cássia Medino Soares - Falta um repasse constante de verba para a alimentação (ou até mesmo alimentos) por parte da administração do município, a prefeitura. Muitos acabam contando com doações de outras entidades ou pessoas da comunidade para se manterem.

Além disso, também observei falta de estrutura das próprias instalações e edificações, que são bastante precárias, e falta de Equipamento de Proteção Individual - EPI nas instituições que eram locais de trabalho, inclusive nas próprias unidades de triagem. As cozinhas dentro das Unidades de Triagem de resíduos possuíam maior escassez de recursos proporcional à zona em que se inserem.

Percebi uma necessidade de maior incentivo à sustentabilidade, falta de ações de educação alimentar, nutricional e até mesmo de saúde. Faltam políticas públicas e profissionais capacitados para intervenções de cunho educativo nesse sentido. Percebi até um certo envolvimento de algumas ações universitárias dentro desses espaços, com a participação de alunos de alguns cursos de graduação, como engenharia e cursos da saúde, mas uma ausência de articulação e atuação de profissionais da saúde e da educação no geral.

IHU On-Line - Quais são as causas da vulnerabilidade alimentar entre os trabalhadores estudados?

Cássia Medino Soares - É um problema multifatorial e bastante complexo. Na pesquisa consegui constatar que existia uma associação significativa entre baixa escolaridade e a presença de segurança alimentar. Acredito que os principais fatores de risco são de natureza socioeconômica e política. Conversando com esses trabalhadores, percebo que o contexto, isto é, a comunidade em que eles residem, também contribui bastante para esse resultado no sentido de que não possuem o suporte mínimo necessário para prevenir esse tipo de problema. A maioria dos recicladores não tem acesso aos dispositivos de saúde — muitas das unidades de saúde que atendem a região sequer tem médicos. Sem contar os outros tipos de problemas sociais nessas regiões, como o tráfico de drogas, a falta de oportunidade de emprego, falta de escolas, creches, entre outros.

IHU On-Line - Sua pesquisa utilizou como base a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA. Pode nos explicar em que consiste essa escala e como ela mede a insegurança alimentar?

Cássia Medino Soares – Trata-se de uma escala psicométrica, validada para o contexto brasileiro, que avalia de maneira direta uma das dimensões da segurança alimentar e nutricional em uma população, por meio da percepção e experiência com a fome. No Brasil é utilizada inclusive pelo IBGE para o levantamento da prevalência de Segurança Alimentar nos domicílios brasileiros. Ela consiste em 15 questões sobre a percepção acerca da situação alimentar familiar por que a pessoa passou nos últimos três meses e as frequências de quantas vezes as situações ocorreram ou não (totalizando 30 questões).

O escore no final avalia a presença de segurança alimentar a partir do acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. Então, classifica-se a insegurança alimentar do seguinte modo:

IHU On-Line - Uma das conclusões da sua pesquisa é que a porcentagem de insegurança alimentar nas unidades de reciclagem é maior que a porcentagem da cidade de Porto Alegre em si. Como foi feita essa comparação?

Cássia Medino Soares - Na verdade a porcentagem encontrada de insegurança nos recicladores das unidades é maior que a porcentagem de insegurança na região Sul do país e que a porcentagem da média nacional brasileira. Esses dados podem ser encontrados no último levantamento da Pesquisa Suplementar de Segurança Alimentar que foi realizada em 2013.

IHU On-Line - A que outras vulnerabilidades os trabalhadores estão expostos?

Cássia Medino Soares – A várias vulnerabilidades decorrentes de mazelas sociais, principalmente as relacionadas à marginalização dessas comunidades, como aumento de violência na periferia, tráfico de drogas, uso de substâncias psicoativas, falta de escolas, crescente desemprego, informalidade, entre outros. Além disso, a falta de suporte social e a falta de acesso aos dispositivos de saúde também predispõem a diversos problemas de saúde como os de ordem psiquiátrica, como estresse, depressão e ansiedade, além de diversas outras patologias sistêmicas, como doenças crônicas, cardiovasculares, diabetes, entre outras. Ainda, foi observado que a falta de recursos para o uso de EPI também aumenta o risco para patologias associadas ao trabalho, como LER/DORT, contaminação por objetos perfurocortantes, DSTs etc.

IHU On-Line - O que é possível fazer para reverter o índice de vulnerabilidade alimentar desses trabalhadores?

Cássia Medino Soares - Elaborar e colocar em prática políticas públicas efetivas com base a garantir o acesso regular e permanente a alimentos saudáveis em quantidade e qualidade, aplicando a segurança alimentar a todos. Também é preciso fomentar o incentivo a pequenos agricultores, inserindo hortas dentro das cozinhas, capacitando os indivíduos ao uso integral dos alimentos, garantindo que as associações tenham acesso às refeições embasadas no Programa de Alimentação do Trabalhador - PAT. Além disso, a criação e implementação de políticas públicas que promovam o desenvolvimento social dessas comunidades, reforçando o sistema educacional e estimulando a criação de empregos nessas regiões, são importantes.

IHU On-Line - O poder público foi informado sobre o nível de vulnerabilidade alimentar dos trabalhadores? Se sim, qual foi a reação?

Cássia Medino Soares - Toda pesquisa submetida a um comitê de ética em pesquisa é cadastrada e monitorada pelo governo federal. Posteriormente ao término da pesquisa os órgãos competentes são notificados quanto aos resultados e, por exigência da Universidade Federal, o relatório da dissertação também deve ser disponibilizado para o público em geral. Os resultados já foram divulgados por alguns veículos de comunicação de relevância midiática em Porto Alegre e no estado do Rio Grande do Sul, assim como os dados já foram apresentados em eventos e congressos de âmbito nacional e internacional.

Apesar de não ter apresentado o relatório formalmente à prefeitura de Porto Alegre, acredito que o poder público já tenha, sim, posse dessas informações e resultados. Se não recebemos nenhum tipo de reação ou manifestação até o presente momento, compreendo que essa é a resposta pela qual a administração pública optou para o enfrentamento do fenômeno.

 

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