O supermuçulmano mata por narcisismo, não por fé

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03 Mai 2017

"Em um contexto midiático dominado pela ameaça do terrorismo, o debate público corteja, de tempo em tempo, uma pergunta: o radicalismo islâmico representa a degeneração de certa maneira de entender a religião ou é um fenômeno que nada tem a ver com o Islã, entendido como um todo teológico?", questionam Luigi Zoja e Omar Bellicini, em artigo publicado por Fatto Quotidiano, 01-05-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

É uma pergunta à qual Fethi Benslama, psicanalista e professor de psicologia clínica na Universidade Paris-Diderot e membro da Academia Tunisiana das ciências, letras e artes, tentou responder, usando sua experiência como terapeuta no distrito de Saint-Denis, teatro dos ataques sofridos pela capital francesa, em 2015. Sua pesquisa deu origem a um livro (Un furioso desiderio di sacrificio. Il supermusulmano. Raffaello Cortina Editore, 140 p. ‘Um furioso desejo de sacrifício. O supermuçulmano’, em tradução livre) que desde o título sinaliza a originalidade da abordagem: ou seja, que a dicotomia entre o fundamentalismo "de natureza estritamente religiosa" e o radicalismo "alheio à dinâmica da fé" perde todo sentido quando comparado com o perfil psicológico do terrorista/mártir contemporâneo.

Para Benslama, na verdade, é mais útil introduzir uma terceira categoria: a de "supermuçulmano", definido como um indivíduo “levado a superar o muçulmano que ele é de fato, por intermédio da representação de um muçulmano que precisa ser mais ainda". Em outras palavras, a dimensão política da propaganda político-religiosa intercepta uma fragilidade psicológica a ela estranha, mas funcional para seus interesses. Tertium datur, poder-se-ia dizer. Claro, é fundamental investigar os motivos para essa fragilidade. Benslama identifica-os, por um lado, na frustração que afligiu as sociedades islâmicas, como resultado de eventos históricos adversos, como o conflito com o Iraque, e pelo outro lado, as dificuldades de integração dos jovens de cultura muçulmana no Ocidente. O terrorista potencial é muitas vezes um sujeito de identidade precária, que procura suprir a falta de solidez engajando-se a uma "superidentidade" que lhe é fornecida pelos modelos de propaganda do Islã político. Estes são aspectos que nós também analisamos em Nella mente di um terrorista (Na mente de um terrorista, em tradução livre, a ser publicado pela Einaudi).

Benslama, no entanto, concentra-se em um aspecto específico - mas distintivo – das estratégias islâmicas: o recurso a homens-bomba ou militantes que, no mínimo, aceitam com surpreendente leveza o risco de um resultado fatal de sua ação.

O psicoterapeuta tunisiano introduz o conceito de "apropriação" para explicar como o desejo de uma forte identidade comporte, por vezes, a escolha do sacrifício extremo: "O sujeito quer se reinventar, se pertencer. Essa apropriação coincide com a modificação dos limites mais importantes da existência humana. [...] O ato muitas vezes esconde o desejo de transformação, de mudar de pele mesmo que acarrete a sua perda". Especialmente, quando está envolvida uma personalidade narcisista. Mais ainda, quando o narcisismo é frustrado por fatores externos, como a marginalização social. A imagem é eficaz. Seria possível avançar no assunto partindo, justamente, da definição de "supermuçulmano".

A percepção mais original de Benslama, na verdade, é terminológica. A definição declara um parentesco com a ideia de Nietzsche de "super-homem", e é fácil intuir seu denominador comum: a busca de sentido gerada pela chamada "morte de Deus". Pode parecer paradoxal, em se tratando de um sacrifício em nome da fé, mas a contradição é apenas aparente: o sacrifício de si mesmo precisamente denuncia a busca de um fim, ou melhor, de um acesso pessoal ao sentido da existência. É um esquema similar àquele que movia os "kamikazes" por excelência: os aviadores japoneses da Segunda Guerra Mundial. Em uma sociedade como a japonesa, caracterizada pela preponderância do coletivo sobre o individual, a coragem militar abria as portas de um Olimpo exclusivo, que satisfazia as necessidades de autoafirmação reprimidas. É um território escatológico - e psicológico - que se assemelha ao paraíso de "primeira classe" destinado aos mártires do Islã.

O suicídio dedicado a um objetivo ideológico, portanto, é apenas superficialmente contraditório com o espírito de autopreservação. Trata-se, ao contrário, de um desejo de "superconservação" que substitui o nível básico: o desejo de "permanecer" transfere-se do plano da fisiologia ao da memória, alimentado por próprio grupo de pertencimento.

É um processo ligado a pulsões narcisistas. É justamente aqui que incide outra feliz observação do autor: a natureza das relações políticas pode limitar ou potencializar essas forças impulsionadoras.

Um sistema autoritário, em que o cidadão/súdito é confrontado com uma cúpula "institucionalmente narcisista" é destinado a introjetar o modelo.

A democracia - e Benslama cita o caso bastante subestimado da Tunísia - pode favorecer, no lado oposto, normas de comportamento virtuoso. Um ponto para se pensar, nesse nosso tempo de populismo desenfreado e chamamentos cada vez mais incisivos ao governo de um homem só, que tudo vê e tudo provê.

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