França escolhe entre o fascismo e o liberalismo

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02 Mai 2017

“Entre a resistência da esquerda e as oscilações dos conservadores, as fissuras na frente republicana, que começou a se formar contra Marine Le Pen, configuraram uma situação comprometida e sem precedentes”, escreve Eduardo Febbro, em artigo publicado por Página/12, 30-04-2017. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

“Nem pátria, nem patrão”. As apenas duas mil pessoas que se manifestaram em Paris durante a semana contra os dois candidatos do segundo turno das eleições presidenciais, o centrista liberal Emmanuel Macron e a candidata da ultradireita Marine Le Pen, são uma gota d’água se comparado com as centenas e centenas de milhares de manifestantes que há 15 anos, quando Jean-Marie Le Pen passou para o segundo turno das eleições presidenciais de 2002, saíram às ruas para mostrar seu repúdio na capital francesa e nas grandes cidades do país. O chamado espírito do 21 de abril de 2002 diluiu-se com o passar dos anos para beneficiar a vital extrema direita.

As consignas “nem pátria, nem patrão”, “nem fascismo, nem liberalismo” constituem uma rejeição de ambas as candidaturas e da disjuntiva que estas acarretam nos setores do eleitorado mais progressista: oprimido entre votar em branco, abster-se ou, para afogar eleitoralmente a ultradireita, votar em um candidato como Emmanuel Macron que será, mais uma vez, o coveiro de muitas das conquistas sociais obtidas na França pela Frente Popular na primeira década do século XX.

A alternativa viciada também atingiu a própria direita que deu provas de sobra de sua instabilidade ideológica. Entre a resistência da esquerda e as oscilações dos conservadores, as fissuras na frente republicana, que começou a se formar contra Marine Le Pen, configuraram uma situação comprometida e sem precedentes. Os níveis de adesão com que a Frente Nacional conta nunca foram tão altos como agora. Consciente do que isso representa, Marine Le Pen saiu em busca de todos os votos, inclusive os da esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon, cuja postura provocou outro terremoto.

Mélenchon, pela segunda vez desde o primeiro turno, que aconteceu em 23 de abril passado, negou-se a declarar seu voto, o que lhe valeu uma chantagem massiva da mídia, da classe política e, além disso, uma ofensiva dos lepenistas sobre o seu consistente eleitorado (19,6%). “Somos um movimento político que não tem nada a ver com a extrema direita, histórica, cultural e filosoficamente, e isso todos sabem”, disse Mélenchon. O líder da França Insubordinada esclareceu que “não é preciso ser muito esperto para adivinhar como vou votar, mas não vou dizer para que cada um de vocês, seja qual for sua posição, seja coerente”.

Em duas oportunidades, em 2002 e em 2012, o líder dos insubordinados franceses declarou seu voto: a primeira vez no ex-presidente Jacques Chirac, quando este enfrentou Jean-Marie Le Pen. “Não devemos hesitar. Coloquem luvas ou usem uma pinça, mas votem. Façam Le Pen cair o máximo possível”, disse Mélenchon nessa época. A segunda vez, em François Hollande contra Nicolas Sarkozy. E não haverá uma terceira vez. Ele prefere a chuva de críticas a levar a esquerda radical a optar por uma corrente liberal, cujas políticas todos já conhecem.

Marine Le Pen aproveitou esse interciso e lançou-se numa operação para seduzir os sete milhões de pessoas que aderiram aos insubordinados. Em um vídeo divulgado pela internet, Marine Le Pen, suave como o veludo, interpelou essa esquerda: “Hoje, devemos levantar um muro contra Emmanuel Macron, cujo projeto é contrário ao que vocês defenderam no primeiro turno da campanha: Macron não representa a mudança, é a continuidade (...) e como ex-banqueiro representa as finanças que Hollande prometeu combater e que finalmente deixou prosperar”. A senhora Le Pen toca as cordas sensíveis da esquerda: prometeu defender os trabalhadores, propõe a retirada da reforma trabalhista de 2016, uma luta “frontal contra a globalização” e as “oligarquias de Macron”.

Diante da plataforma liberal e continuísta de Macron, Marine Le Pen pretende içar-se como a descendente legítima da linhagem antiglobalização e liberal. Em sua retórica, reconhece que “há diferenças” entre a Frente Nacional e os insubordinados, mas insiste em que ambos compartilham um credo fundamental: ser contra a globalização e o “banqueiro” Macron em um momento em que, assegura, “a oligarquia está lutando contra mim e também contra vocês”.

Emmanuel Macron engoliu o partido socialista, decapitou parte da direita e acaba de semear o descrédito entre a esquerda mais genuína que a França tem, vítima de uma chantagem na qual é obrigada a optar entre o que gritam os poucos estudantes que desfilam pelas ruas da capital francesa: ou fascismo ou liberalismo.

Em uma entrevista publicada pelo jornal Libération, o economista Thomas Piketty (autor de O Capital no Século XXI) defende o voto em Macron: “Quanto mais forte for esse voto em Macron, mais claro fica que não é seu programa que estamos validando, mas significa que estamos afastando a extrema direita”. Piketty destaca um dos eixos determinantes da narrativa eleitoral: a absoluta desunião da esquerda, com o pano de fundo do golpe de Estado liberal contra o Partido Socialista. Seus pais eram precisamente Emmanuel Macron, o presidente François Hollande, seu ex-primeiro-ministro Manuel Valls e um balé de desleais – ministros e deputados – que, no primeiro turno, chamaram para votar nas urnas do centro liberal.

A direita de governo, pela primeira vez ausente desde 1958 de um segundo turno, também não tem o horizonte mais limpo. Entre aqueles que nunca votariam em Le Pen, aqueles que desejam recuperar seu eleitorado e aqueles que não perdoam François Fillon de ter mantido sua candidatura apesar de estar envolvido em corrupção, o bloco foi rachando com o passar dos dias. É onde operam as artimanhas de Marine Le Pen e onde semeia as tentações para uns e outros. Ela passou a ser a “candidatura do povo” ao apresentar-se como um muro “contra a oligarquia”, como a nova projetista da União Europeia e a jóquei mundial da cruzada contra a globalização.

Assim como a esquerda, o eleitorado popular da direita, hoje sem candidato, é muito sensível a essas retóricas. “Macron é um banqueiro, vem de um universo onde uma das variáveis não tem nenhuma importância: a vida dos seres humanos”, disse a candidata frentista. Marine Le Pen começou a campanha do segundo turno como se fosse uma filha da mais autêntica cultura antiliberal e uma militante contra o racismo. Há alguns dias afirmou: “Eu não olho para as suas origens, para a sua cor da pele, para a sua orientação sexual. Isso não me interessa. O que me importa é a felicidade de vocês”. Mas é todo o contrário.

Nesta semana, ela foi a rainha da campanha. Suas estratégias deram-lhe a primazia nos meios de comunicação e até conseguiu selar um pacto com o partido soberanista França em Pé (4,6%) de Nicolas Dupont-Aignan, a quem prometeu a chefatura de governo, caso fosse eleita presidenta no próximo dia 07 de maio.

Mas, por trás dos truques e ficções das montagens políticas ficou uma cratera, cujo fundo é um poço de ausências: as novas gerações hiper conectadas não se parecem em nada com aquelas do 21 de abril de 2002 que ocuparam as ruas com nojo e vergonha, porque, pela primeira vez na história moderna e após os estragos da Segunda Guerra Mundial, um homem que representava o antissemitismo, o fascismo mais cru e o colonialismo chegava a disputar um segundo turno. Para as gerações de hoje, a repetição de 2001 não perturba seus códigos políticos ou morais. O liberalismo e o fascismo são figuras que devoraram tudo.

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