Viver o Advento. Artigo de Goffredo Boselli

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03 Dezembro 2016

“Vigiar neste Advento será para nós permanecer fiéis na noite, vigiando para não transformar a pequena chama da nossa fé em um sol brilhante que cega a todos. Que a noite seja sempre a medida da nossa fé, porque, se cedermos à tentação de querer ver e saber tudo, não viveremos mais no espaço de fé, mas das certezas, e não seremos mais fiéis.”

A reflexão é de Goffredo Boselli, monge italiano e especialista em liturgia, em artigo publicado no sítio do Mosteiro de Bose, 29-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

“Vigiai!” é a palavra do Senhor que faz ocorrer o Advento, fá-lo ser, fá-lo começar mais uma vez, criando ao mesmo tempo a vinda e a espera. Há palavras, como essa, que, quando ressoam, têm a capacidade de dar vida a um mundo, desenhar horizontes, reevocar imagens e sentimentos, mas também medos e esperanças.

“Vigiai” ressoa no exato momento em que, ao nosso redor, a natureza, exausta pelos frutos, adormece no sono do inverno [no hemisfério Norte], e os dias veem diminuir a luz e crescer a noite. Não por acaso é nestes dias que a Igreja começa a liturgia do Advento, os dias mais escuros do ano e, portanto, dias da longa vigília. Estes são os dias nos quais a luz é desejada e invocada mais do que nunca, até o Natal, que, tradicionalmente, é o dia em que o Sol e a sua luz voltam a vencer as trevas.

A nossa vida humana e espiritual, com os seus tempos e as suas estações, com o seu ritmo cotidiano tão repetitivo e uniforme, na realidade, forma uma coisa só com o ritmo da natureza. Ritmo humano e ritmo cósmico, ritmo do espírito e ritmo da terra são uma coisa só, para dizer que a natureza não é o pano de fundo dos nossos dias, que a natureza não vive apenas ao nosso redor, mas vive conosco até viver em nós.

O Advento é tempo litúrgico, porque está escrito no livro da natureza, tanto quanto está escrito no livro litúrgico. Reconhecer o Advento em tudo aquilo em que há um hálito de vida significa compreender que, em todas as coisas, há uma espera, cada ser contém em si um futuro, cada ser vivo espera uma vinda. Em tudo isso, inscreve-se a espera de nós, cristãos, que invocamos o Vindouro, fazendo-se voz de todas as criaturas: “Maranatha! Vem, Senhor Jesus!”. Humanos, animais, criaturas animadas e inanimadas, tudo e todos esperam, tudo e todos gemer na espera. Nada e ninguém é privado de espera.

Por isso, entrar no espírito do Advento não significa simplesmente entrar na igreja para fazer ritos seculares, escutar leituras bíblicas e orações antigas, mas, muito mais em profundidade, significa ter acesso a uma dimensão do espírito que nos pertence. Não há vida plena onde não há capacidade e vontade de vigiar.

Vigiar significa cuidar

“Vigiai!”, nos manda o Senhor. O exato oposto da vigilância é a negligência. O Advento é o tempo do homem e da mulher que lutam contra o espírito da negligência que se manifesta de muitos e diversos modos. Ele se manifesta como indiferença e insensibilidade para com as pessoas, como superficialidade nas relações, desinteresse em relação às situações e aos momentos, inconsciência do peso das palavras e do valor da linguagem, descuido em relação aos objetos, desatenção aos lugares.

A negligência assume a forma do esquecimento, da mediocridade assumida a cânone, do descuido, que, a longo prazo, amarguram a vida própria e alheia. A negligência, as pequenas e reiteradas omissões, pouco a pouco, corroem o desejo, até aniquilá-lo. A indiferença é de quem tem um amor desmedido por si mesmo. Existir somente para si mesmos leva a não ver o outro, a não reconhecê-lo pelo que ele é, condená-lo à irrelevância até tirar-lhe a vida sem matá-lo. Como crente, como posso esperar o Senhor se não me dou conta daqueles que vivem ao meu lado?

Vigiar significa se opor tenazmente ao descuido, exercendo o desejo de ver rostos e escutar vozes, até mesmo de animais e de coisas. Vigia e espera aquele que tem cuidado e interesse por todos e tudo. Ter cuidado significa reconhecer o valor de cada pessoa individual e de cada relação. Significa reservar uma grande atenção à palavra individual, ao gesto mais simples e cotidiano, palavras e gestos que, dia após dia, geram uma vida. Vigia aquele que declara que nada e ninguém lhe é estranho e renuncia a dizer: “Não me interessa”.

“Vigiai!”, nos manda o Senhor. Mas também se pode fingir que se vigia. Simular a vigilância é hipocrisia: do lado de fora, mostrar-se vigilante, mas, do lado de dentro, dormir. O exato oposto da vigilância é a hipocrisia, a falsidade, a não sinceridade, a ficção e a duplicidade. Aquele que vigia é o oposto do hipócrita, porque, para vigiar, é preciso estar totalmente ali onde se está, sem excluir nada de si mesmo. A atitude interior da vigilância a inteireza e não a duplicidade.

Os comportamentos pessoais se tornam comportamentos sociais e tomam o nome de conformismo, "respeitabilismo", moralismo. Demandar a outros é o exato oposto do vigiar. Não vigiar é delegar, em vez de assumir em primeira pessoa a responsabilidade, a escolha, o ônus. Para ser vigilante é necessário ser livre de si mesmo e do julgamento dos outros. De fato, o oposto da hipocrisia é a liberdade. “É o teu rosto, Senhor, que eu procuro, não me escondas o teu rosto” (Sl 27, 8-9): como se pode rezar dizendo que se busca o rosto do Senhor quando escondemos o próprio rosto verdadeiro aos outros?

Permitir que o futuro entre em nós

“Vigiai!”. Essa palavra do Senhor contém dentro de si toda a intensidade de um imperativo. Jesus não faz uma simples exortação, mas dá aos seus discípulos e a nós um mandamento, e diz: “Até o meu retorno, que o modo de vocês serem fiéis e que o modo de vocês estarem no mundo sejam um vigiar, sejam um esperar-Me na noite”.

Portanto, é Jesus quem institui a noite como o tempo e o luar da nossa fé. Por isso, nós, cristãos, somos fiéis na noite não porque o mundo em que vivemos é apenas trevas, apenas mal e apenas pecado, mas porque o Senhor quis nos colocar na noite e não em plena luz do dia. Não fomos nós escolhemos a difícil condição de ser fiéis na noite. Para crer na noite, o Senhor nos deu a única coisa necessária para quem está no escuro, uma lâmpada: “A tua palavra é lâmpada para os meus passos” (Sl 119, 105).

Dispomos apenas da pequena chama de uma lâmpada. Mas uma chama não ilumina tudo, não permite ver tudo, mas apenas o suficiente para mover os passos. Por isso, a nossa fé, assim como a Palavra que a gera, é apenas uma pequena chama que não permite ver tudo como em plena luz, não possui a clareza sobre tudo e, portanto, não dá certezas inabaláveis, não oferece verdades absolutas a serem impostas com força, não permite a arrogância daqueles que presumem possuir toda a verdade. Os fiéis na noite procuram a verdade com o mesmo esforço com que, no escuro, se busca o caminho: às apalpadelas, muitas vezes errando e se desviando do caminho.

Vigiar neste Advento, portanto, será para nós permanecer fiéis na noite, vigiando para não transformar a pequena chama da nossa fé em um sol brilhante que cega a todos. Que a noite seja sempre a medida da nossa fé, porque, se cedermos à tentação de querer ver e saber tudo, não viveremos mais no espaço de fé, mas das certezas, e não seremos mais fiéis.

Ser fiéis na noite, como Jesus nos ordena, também significa tomar consciência de que a noite é o tempo do silêncio, das vozes baixas, dos sussurros, do murmúrio submisso. Na noite, não se grita, não se eleva o tom, não se faz ouvir a própria voz na praça. Jesus, instituindo-nos como fiéis na noite, quer que a Sua palavra, o Seu Evangelho se meça com o silêncio da noite.

O Evangelho, de fato, não é uma ideologia para se fazer propaganda nas praças deste mundo, não é um produto a se vender no mercado e, por isso, não deve ser nem gritado nem ostentado. O Evangelho é uma boa notícia, e a notícia boa é contada. Um conto se atém mais à intimidade e ao silêncio da noite do que à praça lotada de pessoas ao meio-dia. Vigiar, neste Advento, portanto, será para nós saber contar o Evangelho sem romper o silêncio da noite.

Jesus, no fim, faz de nós fiéis na noite à espera, e aquele que espera, acima de tudo, faz a experiência da ausência, da falta, do vazio, do não ter tudo de já. Esperar é sempre invocar uma presença, uma plenitude, um cumprimento. Ser fiéis na espera significa, então, estar no mundo não como quem já possui tudo e não tem nada a esperar, mas como aqueles que não têm não apenas alguma coisa, mas não têm o essencial: o seu único Senhor. Nós, crentes, muitas vezes cansados, decepcionados, às vezes frustrados por dois mil anos de espera, somos tentados a preencher essa falta, a preencher esse vazio tão difícil de sustentar.

O apóstolo Pedro já conhecia o esforço de permanecer cristãos à espera e escrevia a sua comunidade: “Nos últimos dias aparecerão pessoas que zombarão de tudo (…) E dirão: ‘Não deu em nada a promessa de sua vinda? De fato, desde que os pais morreram, tudo continua como desde o princípio da criação!’” (2Pe 3, 3-4).

Esses zombadores estão prontos para nos oferecer o que nos falta: um senhor a servir, um reino a governar. Cedemos a isso, muitas vezes, em nome de um pragmatismo cristão, que se preocupa mais com o cristianismo e os seus interesses do que com Cristo e a Sua vinda. Assim, como cristãos, tornamo-nos cristianistas, isto é, aqueles que amam o cristianismo mais do que amam a Cristo. Que este Advento renove em nós a consciências de sermos fiéis na noite à espera do Senhor, sabendo que essa espera é necessariamente também virtude política, ou seja, um modo de estar como cristãos na polis confessando: “Há muitos deuses e muitos senhores. Contudo, para nós existe um só Deus (…) e um só Senhor, Jesus Cristo” (1Co 8, 6).

Cantar Rorate cœli desuper (chovam, céus do alto) significa gritar ao céu invocando dele aquilo que não podemos nos dar aqui embaixo. Significa reconhecer que cada ser humano é habitado por um desejo tão profundo que a terra não pode saciar. Rorate cœli desuper é cantado somente por aqueles que têm a humildade de admitir que não só não se pode dar tudo, mas também que o essencial que nos fazer viver, nós o recebemos, certos de que a única salvação é a vida de um outro, de um Outro. Sabemos que o passado não no-la deu, compreendemos que o presente é totalmente incapaz de no-la dar, então a esperamos no futuro e, invocando-o, atraímo-la a nós. “O futuro entra em nós, para se transformar em nós muito antes que aconteça” (R. M. Rilke, “Cartas a um jovem poeta”, 12 de agosto de 1904).

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