03 Dezembro 2018
Capa do Livro | Divulgação
A síntese mais legível e eficiente do ensinamento do Papa Francisco sobre a vida consagrada: assim pode ser considerado o livro-entrevista La Forza della Vocazione. La vita consacrata (A força da vocação. A vida consagrada, em tradução livre) que é publicada agora simultaneamente pelas edições Claretianas (Madri - Espanha) e pela Edizioni Dehoniane.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 30-11-2018.
Há textos teologicamente mais elaborados, como a Carta Apostólica a todos os consagrados por ocasião do ano da vida consagrada ou mais específicos como nas conversações do papa com os coirmãos jesuítas, recolhidas por A. Spadaro, ou os números de Evangelii Gaudium e Gaudete et Exultate dedicados aos religiosos, ou ainda o volume editado por J. Braz de Aviz e J. Rodriguez Carballo, na cúpula da Congregação para os Religiosos, È tempo di camminare. La vita consacrata nel magistero pontificio (Hora de caminhar. A vida consagrada no magistério papal, Lev, Roma 2018), mas a leitura fácil da entrevista de quatro horas com o claretiano espanhol Fernando Prado [1] em 9 de agosto de 2018 oferece um compêndio em forma narrativa das convicções do primeiro papa "religioso" desde 1846.
Respira, como no conjunto de seu magistério, um ar de singular liberdade e profundidade espiritual. A partir do juízo sobre os difíceis anos do pós-concilio: lentos, prolíficos e desordenados. Como um movimento irregular, marcado pela grande generosidade, por injustificadas resistências e por evidentes ingenuidades.
No lado positivo pode-se recordar o tema da comunidade, a inclusão das experiências das pessoas, a redescoberta do carisma. Limito-me a duas notas críticas: a ideologia e o clericalismo. "O que realmente me preocupa, ontem como hoje, é quando esses processos de mudança são orientados pela ideologia (...). É algo que deve ser desmascarado continuamente". "Não importa para mim qual seja a ideologia: sempre termina mal."
"Existe um clericalismo que se manifesta nas pessoas que vivem com atitudes de ‘segregados’, com o nariz empinado, mal segregados. São aqueles que vivem uma espécie de atitude aristocrática em relação aos outros". Sem ignorar o privilégio injustificado concedido nas últimas décadas pela Congregação vaticana aos novos institutos de viés nitidamente conservador", com um olhar agradecido a quem remava em uma direção diferente, como D. Gianfranco Gardin, atual bispo de Treviso, e D. Joseph William Tobin, agora cardeal e bispo em Newark - EUA. Ambos foram secretários da Congregação para os Religiosos, antes do atual, D. J.R. Carballo.
Entre as muitas aquisições agora firmemente reconhecidos há o sentido de pertencimento à Igreja (não mais como "corpo separado" e de referência apenas ao papado), o deslocamento criativo fora do quadrante europeu e a centralidade do carisma. Do concílio “sem dúvida, aprendemos muito. Em dados concretos, eu diria que nós aprendemos principalmente que o caminho da vida consagrada é da inserção na Igreja... Aqui está: é uma inserção eclesial com categorias eclesiais, com uma vida espiritual eclesial, na qual o Bispo é considerado a cabeça do corpo e é amado como pai, irmão e amigo."
A interculturalidade, a internacionalização, a criatividade própria de cada âmbito geográfico, agora já caracterizam todas as congregações masculinas e femininas de determinada consistência: "Uma ‘deseuropeização’ que está dando frutos com fortes Igrejas locais, Igrejas particulares com uma identidade forte e concreta”. Problemas permanecem abertos como o "tráfico" de jovens religiosos e religiosas para as obras na Europa, o equilíbrio de representação nos órgãos de governo e, sobretudo, a especificação original e fiel do carisma.
"O carisma fundador das instituições requer, mais uma vez, uma espécie de purificação. Dizendo purificação entendo dizer que devemos resgatar a parte mais autêntica dos carismas fundadores, para ver como ela se expressa, ou deveria se expressar hoje (...). Hoje é o presente e é aqui que devemos dar respostas a partir de nosso carisma. É um desafio que exige paixão".
O discernimento criterioso sobre as obras e a resistência à libido moriendi colocam à prova muitas famílias religiosas. "É claro que, em muitas ocasiões, as obras nos traíram. Quando se dá demasiada importância às obras, fica muito escondida a força do carisma. Tudo isso está intimamente ligado ao elemento de diálogo com o mundo. As obras devem ser uma consequência do diálogo. Devemos nos perguntar, por exemplo: ‘A educação é necessária hoje? Sim. Os colégios são necessários? Sim. Como eu conduzo um colégio?’ Essas são perguntas que devem estar claramente formuladas e às quais se deve responder com sinceridade. No entanto, se no final tenho que continuar a sobreviver e tapar os buracos de uma grande estrutura que me serviu cinquenta anos atrás, mas da qual agora não vejo mais sua utilidade, então eu estou desperdiçando e perdendo a razão da obra e a vida consagrada que eu vivo”.
Existem âmbitos da vida consagrada que teorizaram a o ''ars bem moriendi" porque não se vê o futuro ou porque não se quer "ter filhos". "Isso, é algo que à primeira vista pode parecer honesto, depois, no fundo, revelava que estavam sendo procurados outros tipos de segurança, talvez mais mundanos", como a segurança econômica para uma velhice tranquila.
Um desvio facilitado inclusive pelo privilégio concedido aos movimentos eclesiais e algumas fundações "novas", caracterizadas pelo tradicionalismo e por numerosas vocações. "Algumas congregações se apresentaram como a salvação da vida consagrada, tanto da vida consagrada apostólica quanto daquela contemplativa. Precisavam ser admiradas. Elas eram o novo modelo (...) e, depois, no final, viu-se que em alguns deles explodiram casos impressionantes de corrupção interna." No lado positivo, "o critério básico para julgar uma comunidade são aqueles "três P" de que falei em um encontro com pessoas consagradas. Refiro-me ao P de pobreza P, ao P de prece e ao P da paciência".
No Ocidente, um dos maiores problemas é a escassez de vocações. Por que os jovens não vêm? "É uma pergunta difícil de responder. É ampla e complexa. Eu diria: depende. Sempre depende (e aqui eu invento uma expressão) do ‘apelo profético’ que a vida consagrada tem. Quero dizer que depende da força mostrada pela vida consagrada de chegar ao coração de uma pessoa jovem que queira seguir o Senhor por esse caminho. E a força da vocação sempre se traduz em alegria". “Devemos perguntar ao Senhor ‘o que está acontecendo?’ Questionemos os superiores, vamos perguntar isso nas comunidades, entre nós, questionar o bispo, a congregação. Devemos procurar que iluminem o momento que estamos vivendo e, uma vez examinado, analisado, depois de um bom discernimento, decidir".
Sabendo que o discernimento preciso sobre as vocações é sempre necessário. "Não podemos admitir pessoas que não sejam adequados, ou pessoas com problemas bastante sérios que acreditam encontrar apoio para os mesmos na vida consagrada". Aqueles que não têm equilíbrio humano ou neuróticos devem ser ajudados de forma diferente, não os aceitando na vida consagrada. Assim como não podemos compartilhar a ideia de uma escolha ad tempus, um compromisso não-definitivo.
No contexto de discernimento, há a questão da homossexualidade. "O tema da homossexualidade é uma questão muito séria, que deve ser discernida com atenção desde o início com os candidatos, se isso for necessário. Nós devemos ser exigentes. Em nossa sociedade, parece até que a homossexualidade esteja na moda e essa mentalidade, de alguma forma, também afeta a vida da Igreja". "Por esta razão, a Igreja recomenda que as pessoas com tal tendência arraigada não sejam aceitas no ministério, nem na vida consagrada. O ministério ou a vida consagrada não são o seu lugar. Os sacerdotes, religiosos ou religiosas devem ser encorajados a viver integralmente o celibato e, acima de tudo, serem perfeitamente responsáveis, tentando não criar jamais escândalo em suas comunidades ou no santo povo fiel de Deus, vivendo uma vida dupla. É melhor que deixem o ministério ou a vida consagrada, em vez de viver uma vida dupla".
O compromisso da formação é um dos mais centrais e preciosos. Sempre tem a dimensão da obra artesanal que não pode ser colocada em produção de série. Deve abraçar todas as dimensões mais importantes da pessoa. "A formação deve ser baseada em quatro pilares: a vida espiritual, a vida comunitária, a vida de estudo e a vida apostólica. Todos esses aspectos devem interagir entre si”. Um compromisso que amadurece em todos, formandos e formadores, as dimensões essenciais da profecia e da missão.
A profecia é certamente um juízo sobre o mundo a partir do amor misericordioso de Deus, mas também é saber como aguardar o retorno do Senhor. "Essa dimensão escatológica da vida consagrada é importante. É a vida "como se", "já e ainda não". É o que devemos viver como horizonte. É viver na expectativa desse esperar e, nesse meio tempo, discernir os sinais dos tempos ".
"Frequentar o futuro significa frequentar esse horizonte de expectativa e frequentar o que está por vir na história." "Hoje, quando falamos de missão, entendemos um conceito mais amplo da missão ad gentes, mas a missão ad gentes continua a ser muito importante. Isso, no entanto, na medida em que a vida consagrada e as comunidades se inculturam no próprio lugar, e não quando chegam como grandes donos para ditar aos outros normas e modos de viver, ou acreditam que devem se impor àqueles aos quais deveriam se submeter ou obedecer."
Não poderia faltar uma atenção especial para a dimensão feminina que constitui a grande maioria da vida consagrada. Elas não estão em ordem com a difícil adequação crítica aos modelos femininos contemporâneos (feminismo), mas principalmente ao necessário reconhecimento da específico contribuição das mulheres no testemunho de fé na Igreja. "Eu realmente acredito que devemos caminhar para um crescente reconhecimento da dignidade da mulher no mundo, e também na Igreja. Progredir na igualdade é algo bom. No entanto, as religiosas que assumem estilos masculinos não me convencem totalmente. Não é necessário deixar de ser mulher para ser igual".
Termino com uma referência curiosa, mas não banal ao demônio que o Papa Francisco liberou na linguagem eclesiástica, sugerindo a retomada da oração a São Miguel para nos defender contra os poderes das trevas. Na entrevista ele o coloca sob o signo da ignorância, onde a perda da inteligência leva à imaturidade.
"Eu acredito profundamente no diabo. Não só acredito que exista, mas também sinto que é muito vivo. Acredito que ele se sente mais confortável onde há ignorância. É assim que ele se move, no engano, na ignorância, quando nos afastamos da luz da verdade. É por isso que parece tão importante a fronteira existencial da cultura e da educação. É preciso valorizar muito bem isso, por sinal, no sentido escatológico, de luta entre o bem e o mal."
Nota de IHU On-Line:
[1] Fernando Prado (Bilbao 1969), é missionario claretiano, laureado em Ciências da Informação, professor de Teologia da Missão e Meios de comunicação e Vida Consagrada, diretor da editora Publicaciones Claretianas – Madrid.