09 Setembro 2018
Este relato de um confessor, anônimo por razões óbvias, refaz, brevemente, o calvário de uma jovem que viu sua vida irreparavelmente arruinada porque um jovem padre, amigo da família, seduziu-a quando ela era adolescente. Quanto essa “culpa” pesou sobre o seu ser mulher, esposa, mãe e avó? Uma narrativa “por parte das vítimas”.
O relato foi publicado por Settimana News, 04-09-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Filomena (nome fictício) não sorri mais há muito tempo! Desde quando...
Era o tempo da “cristandade” (nos anos 1950-1960). O tempo em que o sacerdote era uma pessoa importante não só no altar e na Igreja, mas também na sociedade e incutia um senso de respeito e... veneração. Seu próprio estilo de vida, o modo como se vestia podia até subjugar uma adolescente, assim como, ao mesmo tempo, no início, fazer com que ela se sentisse lisonjeada por ter um relacionamento com ele.
Esse jovem padre era afável com as pessoas, era alguém “de casa” para a família da jovem, podia ser considerado um amigo da família.
A batina longa quase até o chão era usada com certa elegância, uma veste que cobria até as calças. “Como meu papai as veste?”, perguntava-se a adolescente curiosa... Ao seu redor havia respeito por essa pessoa “sagrada”, cujas mãos tornavam Jesus vivo e presente no altar. Mesmo que, debaixo daquela veste, ele não podia esconder a sua realidade de homem, e que homem!
Porque “aquelas mesmas mãos” feriam a jovem e continuaram a fazer isso até quase o casamento dela... Durante anos!
Há certas violências que tiram a alma de quem as sofre. São mais do que uma ferida. São como um grande tumor latente, que ninguém vê, mas cuja presença torna toda a existência dolorosa e conturbada.
Quem – como eu –, depois de várias décadas, encontra-a no seu caminho pelo ministério da reconciliação, tenta consolá-la, chega a ponto de perdoar pecados não cometidos por ela, a fim de fazê-la se sentir em paz. Mas tudo isso não a afeta! Ela vê todos os relacionamentos humanos, especialmente os familiares, influenciados pelo seu “pecado”. Ela se deu ao luxo de um pouco de humor algumas vezes na sua vida: quando encontrou o “sacerdote” presente no seu casamento, porque era amigo da família, e em outra ocasião, quando ficou sabendo que haviam lhe conferido o título de monsenhor! O “monstro” é até levado em grande consideração na sua diocese: obviamente ninguém sabia o que ele fazia no privado, à sombra do campanário!
Sabe-se lá por que eu também sorri quando pensei na laje fúnebre que cobria o seu túmulo com a escrita em letras grandes, precedidas pelo título: “Aqui jaz Mons. *** ... RIP”... (mas como uma pessoa cujas ações prejudicaram uma existência alheia pode encontrar a paz? Como um Deus misericordioso pode acolher uma pessoa na Sua paz e deixar a “vítima” em um sofrimento contínuo? É realmente um mistério!).
De fato, no coração e na alma da moça, que com o tempo se tornou mulher, esposa, mãe e avó, ficou gravado um tormento que arruinou a sua existência, privada até mesmo daquelas alegrias “naturais” que cada mulher experimenta ao se tornar mãe e avó.
Não só isso. Nas circunstâncias infelizes que toda família atravessa: como quando o filho se divide. A culpa é sua! A filha coabita e não se casa? Até disso ela se culpa. O outro não se casou, a outra não consegue ter filhos... Tudo isso ocorre por “sua causa”!
É fácil lhe dizer: não é verdade, essas situações também estão presentes em outras famílias... Ela não consegue se dar razão sobre isso. Nesse coração que se tornou de pedra, ela derrama o mal sofrido também sobre o lado de fora, sobre a existência dos seus familiares.
Um dia, no confessionário, olhando para o crucifixo pendurado na parede, eu lhe digo: “Veja, você está ali ao lado dele, que, como você, se encontra nessa condição porque outros a colocaram nela...”. Ela olhe e se cala, sem qualquer comentário: obviamente, não se sente tocada!
Em resumo, menciono a situação dolorosa e difícil de uma mulher que não sabe se alegrar e ficar serena desde quando alguém que ela estimava a vinculou a si em uma relação perversa que continua a fazê-la se sentir não só suja, mas também carregada de todos os males que os seus familiares experimentam, como se dizia acima.
Essa mulher, com um pequeno grupo de pessoas da sua paróquia, teve a oportunidade de se encontrar com o Papa Francisco, queria compartilhar com ele a sua dor que lhe faz companhia há uma vida inteira, mas o seu marido estava ao seu lado e, portanto, não podia se arriscar a abrir a boca: se ele ouvisse, o que lhe aconteceria? Nem ele nem muito menos nenhum dos seus familiares deve saber de nada: que reputação teriam da esposa, da mãe e da avó?
Uma “desordem” toda “dela”, que ela compartilhou com alguns sacerdotes no segredo do confessionário, mas todos se mostraram incapazes de lhe dar um pouco de paz, de serenidade.
Tentou-se até apelar ao papa. Pensou-se, muito provavelmente, que uma palavra dele poderia lhe trazer um pouco de serenidade. Seguindo o canal apropriado, no fim, conseguiu-se ter um pensamento dele com a sua assinatura manuscrita. Mas, ao longo do tempo, até mesmo esse meio se revelou como a presença do sol em um prado coberto de neve; com o tempo, ela desaparece e permanece a realidade que antes estava encoberta.
Das consequências ainda presentes na mulher depois de décadas que os fatos ocorreram, percebe-se as reações negativas que são produzidas por tal abuso por parte de uma pessoa adulta, em relação a uma jovem, a ponto de chegar a deformar a sua alma. De fato, ela não faz mais nada a não ser continuar alimentando sentimentos de culpa por aquilo que “fez” e não admitindo ter sido “forçada” a sofrer e a fazer!
Mesmo aqueles que recolheram várias vezes a “mesma” confidência encontram-se incapazes de romper aquele muro que ela construiu, dia após dia, ao longo de toda a sua existência com suas próprias mãos: para se defender? Para se proteger? Para se salvar de toda intrusão, depois de ter sido privada da capacidade de distinguir as intervenções positivas das negativas?
E, como se não bastasse, tendo chegado aos 80 anos de idade, ela ainda tem as mesmas fantasias e sensações físicas da época e continua se culpando.
Em seu benefício, está o fato de que, muito provavelmente, no princípio, ela não foi capaz de entender até o fim o que estava acontecendo com ela. Ela não acreditava no que estava acontecendo e negava os fatos a si mesma, a ponto de chegar a pensar que havia sido ela mesma que interpretara mal os fatos que aconteciam quando se encontrava com o sacerdote.
Só com o tempo ela se deu conta daquilo que o padre fazia e queria dela: um conjunto de pedidos e atitudes incorretos e inoportunos, mas que agora ela não era capaz de recusar, de tanto que ela era submissa a ele.
A partir daquilo que eu pude compreender, eu não sei se a mulher chegou a se dar conta de que o pior que ela estava sofrendo era a demolição da sua personalidade: a transformação de vítima em cúmplice (no seu contínuo “querer” confessar as “suas” culpas!)... Também não sei quando ela conseguiu se dar conta de que não era algo que devia ser feito e o que lhe impedia de pedir ajuda a quem podia.
Isso pode ser dito e pensado hoje, com toda a liberdade, depois dos fatos ocorridos há quase 60 anos, quando era inconcebível que a “besta” também pudesse viver no homem do sagrado! A batina escondia tudo, exatamente tudo, não só as calças do homem e do pai da moça e dos outros homens!