09 Setembro 2016
"Quem procura Deus constrói a paz com alegria criativa, e encontra a plenitude da vida em amar o outro na sua concretude e em na pobreza, oferecendo a própria. Até à cruz, se necessário. O resto não é cristianismo. É uma variante burguesa, talvez, que teve sua época", escreve Marco Ronconi, teológo, em artigo publicado por Portal Jesus, setembro-2016. A tradução é de Ramiro Mincato
Eis o artigo.
A burguesia apropriou-se do cristianismo, convertendo-o numa "religião utilitarista", onde fé, esperança e caridade transformaram-se em gosto pela segurança, pela economia, pela boa vida e pela imobilidade social. As virtudes cristãs degradaram-se, até converterem-se em caricaturas de si mesmas: a alegria criativa perverteu-se em felicidade conformista, a paz, em simples tranquilidade e a plenitude, em mera satisfação".
Emilia Bea assim sintetiza tão intensas páginas do filósofo católico Emmanuel Mounier. Parecem uma fotografia do confronto em andamento na Igreja Católica. Por um lado, o Papa que pensa e se move seguindo a bússola da opção preferencial pelos pobres. Por outro, uma série de estruturas e teologias europeias que amarraram tão fortemente o catolicismo ao ingente sistema de valores burgueses, que arriscam reduzi-lo a um mero instrumento.
Entre os exemplos citados por Mounier tomemos um, terrivelmente atual, o da paz. Nós, europeus, muitas vezes, identificamos a paz com nossa própria segurança, isto é, com a possibilidade de termos, singularmente, uma boa vida. Desejo mais que legítimo, mas estar seguro não significa estar em paz. No avião a Cracóvia, para a JMJ, o Papa Francisco disse: "Uma palavra que se repete tanto é "insegurança". Mas a verdadeira palavra é "guerra". E, dos fatos de Nice e de Rouen, imediatamente alargou o campo para os massacres da Nigéria, frequentemente desclassificados, ou pior ainda, esquecidos.
Perdemos a paz, mas não porque um, cinco ou dez loucos terrificantes disparam num centro comercial, mas porque centenas morrem todos os dias em Bangui, Aleppo, Cabul ... Dizemos, em vez, que é “guerra”, o que perturba a nossa paz de espírito e - acima de tudo - é imputável a algo fora de nós. Dou alguns exemplos. Dez homens que, em um mês, massacram cruelmente suas companheiras, não são vistos pelos políticos e pelos meios de comunicação como "declaração de guerra contra as mulheres", porque os culpados são apenas uma minoria dos muitos homens em circulação, e medidas urgentes e drásticas também os afetaria. As ações de centenas de Ultras que submetem a ferro e fogo uma cidade, não são consideradas um "ato de guerra", apesar das técnicas usadas, e ninguém iria fechar os estádios durante anos, porque há também muitos torcedores honestos. Dois desequilibrados que entram numa igreja e degolam um padre amigo de um íman. que logo chora a tragédia sofrida, são, ao invés, uma "declaração de guerra do Islã", ao que se apela para a revisão das políticas de acolhimento e de solidariedade.
Qual é a diferença? Mesmo nos sítios dos Ultra encontramos reivindicações semelhantes às do Daesh. A diferença é que os dois primeiros exemplos mostram um problema nosso. O último, no entanto, tem uma possibilidade de projeção muito eficaz sobre os "outros", tão poderosa, que faz passar em segundo plano que a maioria dos autores dos mais recentes massacres nasceram e foram criados exatamente na Europa. "Não podemos ter medo de dizer esta verdade: o mundo (não a Europa!) está em guerra porque perdeu a paz", disse ainda o Papa. E "não é uma guerra de religião, porque todas as religiões querem a paz". É uma afirmação poderosa: não é religioso aquele que diz ser religioso (e Francesco já o tinha reiterado a propósito de construir muros). É religioso quem quer a paz, e não reduz a religião a uma defesa dos próprios lucros, diria ainda Mounier. Isto vale para os fundamentalistas islâmicos, mas também para aqueles que confundem a paz com a segurança de si mesmos. Quem procura Deus constrói a paz com alegria criativa, e encontra a plenitude da vida em amar o outro na sua concretude e em na pobreza, oferecendo a própria. Até à cruz, se necessário. O resto não é cristianismo. É uma variante burguesa, talvez, que teve sua época.