O que nos falta para sermos felizes. Artigo de André Gorz

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03 Setembro 2016

Em 01 de setembro, L’Obs consagra um dossiê ao filósofo-jornalista. Nesta ocasião, BibliObs republica vários de seus artigos, a começar por este, que foi publicado em 1978.

André Gorz morreu no dia 22 de setembro de 2007, aos 84 anos. Filósofo, amigo de Sartre, de Marcuse ou ainda de Ivan Illich, Gorz foi um dos precursores da ecologia política e do decrescimento e não cessou de analisar e denunciar o capitalismo, que destrói o planeta e expropria os indivíduos de sua autonomia. Mas, com o nome de Michel Bosquet, ele também era um jornalista e foi um dos fundadores do Nouvel Observateur em 1964, onde ele teve um papel eminente até 1982. Deste itinerário intelectual fora do comum, podemos ter agora uma ideia completa graças à biografia que o historiador Willy Gianinazzi (André Gorz. Une vie. Paris: Editions La Découverte) acaba de lhe consagrar.

Para a atual redação do Obs, poder contar entre seus predecessores com um intelectual desta envergadura é uma honra e uma oportunidade. No Obs, que está nas bancas a partir de 1 de setembro, encontramos um amplo relato da sua vida, extratos da sua última entrevista e uma carta inédita a Jean Daniel. Ao mesmo tempo, BibliObs vai disponibilizar seis artigos escritos entre 1960-1970, e nunca mais republicados. A começar por este incrível texto, que apareceu no Nouvel Observateur de 11 de setembro de 1978, onde André Gorz/Michel Bosquet simplesmente se pergunta: “o que nos falta para sermos felizes”.

O artigo é publicado por Le Nouvel Observateur, 31-08-2016. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

Recentemente, foi perguntado a americanos entre 15 e 18 anos se eles achavam que o futuro seria melhor; 55% responderam: “Pior”. Disso decorre uma moral: é preciso viver agora. Toda felicidade adiada será perdida irremediavelmente. A vida não recebe mais seu sentido do futuro. E isso muda tudo.

Diferentemente das crises anteriores, esta não anuncia mais nada: nenhuma superação do capitalismo está nela inscrita, nenhuma revolução redentora. O profetismo em si está em crise. Os tempos modernos estão em sua fase final: nos últimos 200 anos, o Ocidente viveu na crença de que o amanhã seria melhor que o hoje, de que vale a pena sacrificar o presente em vista do futuro, que a ciência e a técnica trariam a liberdade e a abundância. Esta crença está morta (1). O futuro está vazio de promessas.

Com a ideologia do “amanhã será melhor”, é a base comum ao capitalismo e ao socialismo que trinca: as satisfações adiadas com vistas a economizar não trazem mais dividendos; o aumento da produção não é mais gerador de bem-estar; o desenvolvimento das forças produtivas não é mais gerador nem de liberdade nem de contradições revolucionárias. O que esperar, então, dos detentores da ciência econômica? Ninguém mais sabe o que é pior: a crise sem perspectivas da ordem industrial-produtivista ou as improváveis tentativas da “esquerda” para colocar esta ordem de pé.

Na medida em que ela não oferece nenhum meio de superar a crise do sistema ou de resolver a crise geral das incertezas e dos valores que fundam a civilização ocidental, a própria política sofre de ilegitimidade: não são mais somente as soluções que representam um problema, mas a natureza mesma das questões que a política deve propor. Os valores centrais das três últimas décadas (produtividade, crescimento, trabalho e urbanização) não são mais, para além das divergências sobre os meios, uma unanimidade no corpo social.

Novas linhas de fratura atravessam as classes, destroem o antigo consenso sobre o que é “esquerda” ou “direita”, mas também e especialmente sobre este vasto campo em que a esquerda e a direita diferem apenas em matizes. Os conflitos sobre os quais a sociedade está trabalhando já não dizem respeito mais somente aos meios para atingir os fins sobre os quais todos parecem estar de acordo (economia, tecnologia, moeda, emprego), mas também sobre a definição dos próprios fins que merecem que nos esforcemos para atingi-los. Não há mais interesse nacional ou interesse de classe com os quais os indivíduos simplesmente se identificam.

É por isso que a crise é muito mais profunda que o social, o econômico, o político: ela muda a ideia que cada qual fazia de si mesmo e de sua posição na sociedade, no mundo e na história. Ela se prolonga em uma crise, cultural, da identidade individual, porque tudo o que dava sustentação a esta identidade está em um processo de decomposição: as nações, as classes sociais, a família; as relações entre gerações e entre os sexos; a natureza.

É por isso que já não é mais possível ganhar os indivíduos para a política partindo dos “interesses coletivos” que, até pouco tempo atrás, pareciam os melhor estabelecidos: interesse nacional, profissional, econômico, de classe, etc. Não que esses interesses desapareceram; mas eles não são mais portadores de futuro e de esperança. Eles são, sobretudo, interesses de conservação, próprios daqueles que – basicamente, os maiores de 35 anos – têm alguma coisa para conservar: seu desejo de defender contra futuras mudanças posições e vantagens adquiridas é agora o único “interesse coletivo” que ocupa o cenário político.

Como isso pode mobilizar aqueles que, nunca tiveram nada, porque ainda não tem a idade para “ter”, não têm nada para conservar? Entre aqueles que têm um bem ou seu emprego a defender, quem realmente acredita que vamos conseguir impedir o capitalismo de superar a sua crise, como as anteriores, cortando sua madeira morta (e muita madeira viva ao mesmo tempo)? Quem discerne os meios para impedi-lo? Quem aceita o preço?

Na realidade, o codificador desapareceu. Os confrontos políticos tornam-se um espetáculo e uma batalha verbal. As energias não empregadas buscam empregos em outros cenários. O essencial da vida desloca-se para outros lugares. Comportamentos e preocupações vêm à tona, dos quais nem a política, nem nenhuma ideologia consegue captar a vitalidade mais profunda: paixão, quase exclusiva, da juventude pela moto, pela música, pela dança; maravilhosa descoberta de que podemos gostar de ter um corpo; 58% das famílias francesas têm um jardim onde elas cultivam seus legumes; a proporção dos alemães adultos que sonham em “viver sem trabalhar” quase dobrou em 15 anos, para ultrapassar os 30%; a esfera privada (família, cozinha, férias, casa, carro) é valorizada e defendida com uma nova intransigência contra as invasões da esfera pública; para uma maioria dos jovens, desempregados ou não, o trabalho não é mais uma fonte de identidade ou de dignidade pessoal, mas um desagradável “meio para ganhar dinheiro”.

Para eles, a boa sociedade – de acordo com o que Marx anunciou em outro lugar – é aquela que reduz o trabalho social a um mínimo, para que seja possível o desenvolvimento, durante o tempo liberado, das faculdades criativas e lúdicas dos indivíduos.

A expansão dos espaços de liberdade, a começar pela soberania individual, é a grande questão. Todos aqueles que afirmam que essas são causas às quais é preciso renunciar a gozar ou mesmo a viver são vistos como aborrecedores insuportáveis. Será possível dizer que todos esses novos comportamentos fazem o jogo da direita e são absorvidos pelo poder constituído? Se isso for verdade, provará somente que a direita é mais ágil que a esquerda para ocupar o terreno das novas aspirações.

Mas, realmente, é esse o caso? Parece que a direita recuperou mais depressa os temas mais clássicos e mais usados sobre os quais a velha esquerda persiste em querer insistir: o intervencionismo, o estatismo, o hospitalocentrismo, o culto das grandes obras, a religião do produto nacional e do consumo de energia per capita. A tal ponto que a diferença entre a direita e a esquerda tradicional se reduz muitas vezes a questões de grau, de porcentagem, de vocabulário e de pessoas, e que, ao reprovar nas formações políticas sua religião dos meios e sua indiferença para com os fins últimos, se fazem facilmente chamar de “neocristãos”.

Perguntar pelo sentido desta vida, que vida teria um sentido ou, mais simplesmente, o que nos falta, fundamentalmente, para sermos felizes (eu disse felizes, e não mais felizes), seriam perguntas que preocupariam apenas os teólogos?

É normal, então, que a política provoque apenas bocejos ou encolhimento de ombros na maioria dos jovens. Seu novo radicalismo consiste precisamente em não mais partir dos problemas de governo e da sociedade em seu conjunto, mas dos problemas existenciais, aqui e agora, que nenhum governo e nenhuma sociedade poderá resolver em nosso lugar. Em primeiro lugar, trata-se de conquistar o poder de resolvê-los por nós mesmos. E isso não é pouca coisa. Porque, para esta conquista, tudo se torna obstáculo: todo o discurso congelado das instituições, das organizações, da administração, dos poderes jurídicos e ideológicos dos poderes constituídos.

Portanto, não é difícil identificar, para os próximos 10 ou 20 anos, algumas orientações simples que esclareceriam o futuro e reconciliariam a vida e a política. Por exemplo:

– nós não temos necessidade de que o Estado se encarregue integralmente de tudo, mas que nos permita ou proporcione os meios para que nós mesmos possamos nos encarregar disso de maneira autônoma, individual e coletiva;

– dado que a produtividade dobrará facilmente nos próximos 20 anos, será possível, trabalhando menos da metade do tempo, assegurar a todos e a cada um o necessário e muito do supérfluo, com a condição de suprimir as destruições inúteis e os desperdícios suntuosos;

– o único objetivo razoável, nos anos 1990, é a semana de 20 horas de trabalho para todos e a renda social garantida, vital, para cada um em troca de 20 mil horas de trabalho que poderiam ser intensificadas ou dispersadas em parcelas diárias suaves ao gosto do trabalhador;

– o desafio ao qual o capitalismo é incapaz de responder não é o mínimo de empregos e o máximo de consumo e de produtos, mas o máximo de satisfação com o mínimo de trabalho, de produtos e de restrições;

– uma parte da gestão central será, provavelmente, necessária; no entanto, seu objetivo não deve ser o de englobar tudo, mas, ao contrário, criar espaços sempre mais amplos de autonomia nos quais possa se desenvolver a infinita diversidade de capacidades humanas;

– a saída da crise fará nascer uma sociedade ainda mais infeliz (embora, talvez, mais divertida), caso não seguir muito conscientemente nessa direção.

Iremos responder ainda que tudo isso é utopia, quando a política consiste em programar reformas para os próximos seis meses ou cinco anos e não em preparar uma sociedade fundamentalmente diferente? Como se, em um período em que o sistema social, a civilização produtivista e, portanto, o próprio futuro estão em crise, o principal interesse dos programas para seis meses ou cinco anos não viesse justamente das mudanças fundamentais que eles iniciam e prefiguram.

Definir uma civilização, uma sociedade em que a vida poderá se desenvolver, ou melhor, as vidas infinitamente diversas e ricas que nós desejamos viver; definir os caminhos e os instrumentos para chegar a isso, este é o único meio de sair da política de crise e da crise da política.

Quais mudanças parciais devemos realizar, aqui e agora, em vista de quais mudanças fundamentais e de conjunto? Quais mudanças fundamentais e de conjunto são necessárias para superar os obstáculos ao poder de cada um sobre sua própria vida, ao “direito de perseguir a felicidade”? Estas são as únicas perguntas que realmente importam.

Michel Bosquet

Nota:

(1) Ela está morta desde 1933 para a Escola de Frankfurt, que se preocupava, desde esta época, com os germes de barbárie e regressões contidas na civilização técnica.

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5ª edição - Pelo Êxodo da Sociedade Salarial. A Evolução do Conceito de Trabalho em André Gorz

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