Por: André | 06 Abril 2016
“Não é fácil entender o que vemos e vivemos em cada Semana Santa. Porque não é fácil entender por que, cada ano e quando chegam estes dias, fazemos passear por nossas ruas imagens de dor, agonia e morte, em procissões de respeito e devoção. E, o que é mais chamativo, exibimos as imagens do fracasso em tronos de exaltação triunfal, com música gregoriana, incenso de deuses e bandas de música, tambores e trombetas. Tudo isso é a expressão mais eloquente do empenho incompreensível em fazer do fracasso mais humilhante da vida o triunfo sonhado de nossas mais sublimes ilusões. E por quê?”
A reflexão é do teólogo José María Castillo e publicada em seu blog Teología sin Censura, 21-03-2016. A tradução é de André Langer.
Segundo o teólogo, "enquanto Paulo continuar sendo mais determinante que Jesus, na teologia e na gestão da Igreja, nem a Igreja nem os cristãos vamos a lugar algum".
Eis o artigo.
Não é fácil entender o que vemos e vivemos em cada Semana Santa. Porque não é fácil entender por que, cada ano e quando chegam estes dias, fazemos passear por nossas ruas imagens de dor, agonia e morte, em procissões de respeito e devoção. E, o que é mais chamativo, exibimos as imagens do fracasso em tronos de exaltação triunfal, com música gregoriana, incenso de deuses e bandas de música, tambores e trombetas. Tudo isso é a expressão mais eloquente do empenho incompreensível em fazer do fracasso mais humilhante da vida o triunfo sonhado de nossas mais sublimes ilusões.
Por que acontece, no âmbito da religião, o que não ocorreu a ninguém imaginar nos outros setores da vida?
Não sei se este fenômeno – tão claramente contraditório – se produz, com tanta naturalidade, na história e nos costumes de outras religiões. No cristianismo, é um fato que tem uma história de séculos e que deita raízes nas origens da Igreja. Por mais que abordarmos o assunto, não é fácil entender a paixão de Jesus.
Onde está a chave do problema? Nos escritos mais antigos da Igreja, os documentos que chamamos de Novo Testamento, há duas teologias que não se integraram devidamente uma na outra, mas que se pensaram e foram escritas independentemente uma da outra. E que questões muito decisivas nos vêm dizer coisas que não são fáceis de harmonizar. A primeira destas teologias (a que primeiro foi escrita) é a de São Paulo (entre os anos 45 e 55). A segunda é a dos Evangelhos (depois do ano 70, até os anos 90).
A diferença mais óbvia que se percebe entre estas duas teologias é que a teologia dos Evangelhos é uma “teologia narrativa”. Ou seja, é construída sobre a base de uma série de relatos mediante os quais nos é explicada a forma de vida ou o projeto de vida que o protagonista de tais relatos levou, um modesto galileu do século I, Jesus de Nazaré.
A teologia de São Paulo é uma “teologia especulativa”, isto é, é construída sobre a base de uma série de reflexões religiosas que já não se referem diretamente ao humilde galileu, que foi Jesus, mas ao Filho de Deus, Messias e Senhor Nosso (Rm 1, 4), que é Cristo, o Ressuscitado que está junto ao Pai do Céu.
Suposto isto – e como é lógico –, estas duas teologias nos oferecem duas explicações da paixão e morte de Jesus. Segundo a teologia dos Evangelhos, a decisão da morte de Jesus foi tomada pela autoridade religiosa (o Sinédrio: sumos pontífices, senadores e mestres da Lei). E esta decisão foi aprovada pela autoridade política, o prefeito do Império. O motivo da condenação à morte foi religioso (Jesus é acusado de ser um perigo para o Templo, ser e agir como um blasfemo e um criminoso) e político (como o governador mandou colocar sobre a cruz).
Segundo a teologia de São Paulo, Cristo morreu na cruz, não por decisão humana (um assunto que Paulo nunca menciona), mas porque “os pecados são expiados pelo sangue”, o que se refere a Cristo que suporta a ira desatada de Deus sobre todos os pecadores (Rm 3, 19-20.25). Assim, sobre o Crucificado caiu o julgamento destruidor de Deus, que, com a morte de Jesus, condenou “o pecado em sua carne” (Rm 8, 3). O que significa que, para São Paulo, Jesus se fez “maldição” (Gl 3, 13) e “pecado” (2 Cor 5, 21) por nós. Em suma, a teologia de Paulo vem a ser a aceitação do princípio assustador apresentado na Carta aos Hebreus: “sem derramamento de sangue não há perdão” (Hb 9, 22).
Resumindo: a paixão de Jesus, segundo a teologia narrativa dos Evangelhos, explica-se porque Jesus, no qual Deus está presente e se revela (Jo 1, 18; 14, 9; Mt 11, 27 par), enfrentou o sofrimento humano (doença, pobreza, fome, marginalização, desprezo, humilhação, ódio...). Segundo a teologia de São Paulo, a paixão de Cristo se explica porque Deus necessitou do “sacrifício” e da “expiação” dos pecados, para assim redimir o homem pecador.
Pois bem, aceitando que no Novo Testamento encontram-se duas explicações da paixão e morte de Jesus, o Senhor, o problema concreto que se costuma apresentar no ensinamento da Igreja e na vida dos fiéis está em que a explicação da paixão oferecida por Paulo constituiu, é apresentada e se pede às pessoas que seja vivida como o dogma de fé de nossa salvação. Ao passo que a explicação da paixão apresentada pelos Evangelhos é explicada às pessoas como um critério de espiritualidade para praticar a devoção e a caridade cristã.
Evidentemente, sabemos que Paulo insistiu na caridade e no amor cristão (1 Cor 13, 1-13; Gl 5, 13-24; Rm 13, 8-10). Assim como sabemos que os Evangelhos falam com frequência da fé e da salvação. Mas, tenha-se em conta que, quando Jesus fala de “salvação”, refere-se à “cura de doenças”. Ou seja, nos Evangelhos, “salvar” é remediar o “sofrimento”.
Por isso, quando Jesus dizia a alguém: “Tua fé te salvou”, o que na realidade dizia era: “Tua segurança em mim te curou” (Mc 5, 34; Mt 9, 22; Lc 8, 48; cf. Mc 10, 52; Mt 8, 10. 13; 9, 30; 15, 28; Lc 7, 9; 17, 19; 18, 42). E chama a atenção que Jesus elogia a fé de um centurião romano (Mt 8, 5-13; Lc 7, 1-10), de uma cananeia (Mt 15, 21-28; Mc 7, 24-30) ou de um leproso samaritano (Lc 17, 11-19), todos eles pessoas que não tinham fé no Deus de Israel. Sem dúvida, o central na teologia de Paulo é a vitória sobre o pecado. Mas se nos atemos à teologia dos Evangelhos, o central é a vitória sobre o sofrimento.
Suposto tudo isto, atrevo-me a dizer que, enquanto este assunto não tiver a devida e autorizada explicação (e aplicação à vida), a Igreja não poderá cumprir com sua tarefa e sua missão no mundo. Em suma, com uma teologia desajustada e desengonçada, só podemos ter uma Igreja igualmente desajustada e desengonçada. Com outras palavras, enquanto Paulo continuar sendo mais determinante que Jesus, na teologia e na gestão da Igreja, nem a Igreja nem os cristãos vamos a lugar algum.
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