18º domingo do tempo comum – Ano C – Ver novos todos os celeiros, acumulados de amor e de solidariedade

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29 Julho 2022

 

 "Contra a tendência de querer apropriar-nos de tudo como busca de segurança e como defesa, Jesus nos convida a viver a partilha, como abertura e como possibilidade para a criação da 'nova comunidade' (nova ekklesia), que se constitui como alternativa frente às relações interpessoais fundadas na acumulação e no consumismo. Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevolente. Além disso, onde há partilha, há comunhão. Trata-se de um convite a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela 'identidade compartilhada', na qual o próprio Jesus se encontrava."

 

A reflexão é de Andréia Cristina Serrato. Ela possui graduação em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2005), mestrado em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE/BH e doutorado em teologia sistemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2015). Leciona as disciplinas de Introdução à Teologia, Antropologia Teológica, Teologia da Espiritualidade, Mariologia e Escatologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente é assistente de coordenação na graduação de Teologia na mesma Universidade e contribui com assessorias sobre o tema Espiritualidade Cristã na arquidiocese de Curitiba e recentemente foi eleita vice-presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião - Soter.

 

 

Leituras do dia

 

Primeira Leitura: Ecle 1,2; 2,21-23
Salmo: 89,3-6.12-14.17
Segunda Leitura: Cl 3,1-5.9-11
Evangelho: Lc 12,13-21

Apoiando na mão rugosa o queixo fino,
O Pensador reflete que é carne sem defesa:
[...]
Carne que odeia a morte e tremeu de beleza.
E tremeu de amor; toda a primavera ardente,
E hoje, no outono, afoga-se em verdade e tristeza.
[...] (Gabriela Mistral)

 

Na liturgia da palavra do 18º domingo do tempo comum, trago uma breve contribuição a partir do Ministério da palavra na Voz das Mulheres. Este domingo que coincide com a festa de Santo Inácio de Loyola, ano em que se comemora os 500 de sua conversão, e os 400 anos de canonização.

 

Mergulhemos então na liturgia. A reflexão de hoje antecipa onde chegaremos se pautarmos nossa vida em falsas seguranças: numa vida ilusória do individualismo e do poder. Questiona-nos sobre a busca de sentido, e remete-nos a respeito da atitude que assumimos diante dos bens materiais. E, sobretudo, convida-nos a olhar nosso cotidiano e a enaltecer nosso trabalho a partir do que faz sentido. Abandonarmos os deuses que nos escravizam, permitindo que o homem novo e a mulher nova manifestem-se à imagem de Deus.

 

No início, a primeira leitura (Ecl 1,2;2,21-23) apresenta um ar de desesperança, total falta de sentido, pois: "Tudo é vaidade [...] Toda a sua vida é sofrimento; sua ocupação, um tormento. Nem mesmo de noite repousa o seu coração. Também isso é vaidade” (v.2). Importante recordar, Eclesiastes é um livro de caráter sapiencial e significa “aquele que senta ou fala na assembleia” (ekklesia). Este pequeno “caderno de anotações” parece destruir mais as certezas e seguranças a dar fórmulas ou leis de vida. Em certo tom de denúncia aponta o fracasso da sabedoria da época e deixa saltar por suas linhas o grito de angústia de uma humanidade perdida, sem razão para viver. Algo se desvela desse pessimismo, o reconhecimento de nossa impotência e que o ser humano em si mesmo não se basta. Alguma coincidência com a “sociedade do cansaço” da atualidade?

 

Enquanto a primeira leitura tem tom de desânimo, o Salmo (89(90)) nos traz consolo e esperança “Vós fostes, ó Senhor, um refúgio para nós”. [...] Saciai-nos de manhã com vosso amor, / e exultaremos de alegria todo o dia! / Que a bondade do Senhor e nosso Deus repouse sobre nós e nos conduza!” (v.1).

 

Ao destruir todas as certezas que o povo pensava ter, pautada na sua própria soberania em Eclesiastes, o Salmo aponta-nos o caminho, onde está o amor, a alegria, a bondade. Há que “destruir o homem e a mulher velhos para reconstruir um homem novo, uma mulher nova.

 

Com isso, a segunda leitura (Cl 3,1-5.9-11) convoca-nos à uma criação renovada, recriada em Cristo. “Portanto, fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria. [...] Já vos despojastes do homem velho e da sua maneira de agir e vos revestistes do homem novo, que se renova segundo a imagem do seu criador, em ordem ao conhecimento. Aí não se faz distinção entre grego e judeu, [...], escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos” (v. 5-11).

 

Paulo, demonstra na carta aos Colossenses que a fé em Cristo basta para se chegar a salvação e clama a comunidade a viver, no seu cotidiano a vida nova, ressignificada e restaurada pelo Cristo. O ponto de partida é a união com Cristo ressuscitado que desembocará na morte dos falsos deuses, renascendo o homem novo e a mulher nova. Um movimento contínuo, de descriar e recriar em Cristo até que se dilua as diferenças entre povos, religiões, raças e todos/as sejam um/a em Deus.

 

Aportamos então no evangelho de Lucas (12, 13-21). Jesus neste texto chama a atenção a multidão de seu tempo, bem como da atualidade sobre o desejo de poder sobre atitude diante dos bens: “Evitem todo tipo de ganância”. Acumular riquezas é insensatez. A riqueza não é seguro de vida: “Ainda que alguém seja muito rico, sua vida não é garantida pelos seus bens” (v. 15). O texto questiona para que serve a riqueza e o acúmulo de bens. Jesus está atento a briga familiar e percebe que a questão não é a solidariedade na divisão, mas a luta pelos bens e o apego excessivo ao dinheiro: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.” Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?” (v. 13-14).

 

Jesus apresenta-nos um homem trabalhador, responsável, à primeira vista, digno de admiração. Contudo, de maneira egoísta, vive apenas para os bens que lhe dão uma falsa sensação de segurança. A Jesus interessa que a pessoa se converta para os valores do Reino de Deus.

 

O relato possui duas partes, se observamos bem. Na primeira, Jesus se nega a ser árbitro em um conflito de herança. Na segunda, Ele nos adverte do risco de centrar nossa vida na segurança dos bens terrenos, distanciando-nos do verdadeiro sentido de nossa existência: “Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!” (v. 19) . A preocupação excessiva com os bens leva o ser humano a uma desumanização, pois centra-se em si próprio e o impede de estar aberto e disponível para os valores do Reino.

 

A partir de um olhar atento para as duas partes do evangelho, vislumbramos expandir a verdadeira Vida que não pode depender de ter mais ou menos, mas de ser. Se o primeiro objetivo de todo ser humano é ativar ao máximo sua humanidade e o evangelho nos diz que ter mais não nos faz mais humanos, a conclusão é muito simples: a posse de bens de qualquer tipo, não pode ser o objetivo último de nenhum ser humano. A armadilha de nossa sociedade de consumo está nisso: quanto maior capacidade de satisfazer necessidades nós temos, maior número de novas necessidades despertamos; com isso, não há possibilidade alguma de marcar um limite. Já os antigos santos padres diziam que o objetivo da vida não é aumentar as necessidades, mas fazer com que essas diminuam cada dia que passa. Esse seria o sentido inspirador da vida, ou seja, vida descentrada e aberta à toda a criação.

 

Contra a tendência de querer apropriar-nos de tudo como busca de segurança e como defesa, Jesus nos convida a viver a partilha, como abertura e como possibilidade para a criação da “nova comunidade” (nova ekklesia), que se constitui como alternativa frente às relações interpessoais fundadas na acumulação e no consumismo. Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevolente. Além disso, onde há partilha, há comunhão. Trata-se de um convite a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.

 

Assim nos perguntamos: Do que queremos ser ricos, de celeiros e colheitas ou de partilha e solidariedade? Desvela-nos aqui a necessidade que o ser humano tem de um horizonte de sentido Ver novos todos os celeiros, acumulados de amor e de solidariedade.

 

A reflexão desse domingo desperta em nós um espírito de busca constante e humanizadora, que dá sentido a uma existência inspirada e carregada de significado.

 

Finalizo esta pequena provocação retomando os 500 anos de conversão de Inácio, comemorado neste ano a partir do lema: “Ver novas todas as coisas em Cristo” a reflexão que nos toca, seria pensar em qual é minha bala de canhão, como a de Inácio que o levou a conversão e o fez centrar e recriar sua vida em Cristo.

 

O olhar contemplativo conduziu-o a escolher aquilo que MAIS o aproximava do Cristo. Abriu mão da riqueza, das honras para ser pobre com Cristo pobre e humilde. No início dos Exercícios Espirituais Inacianos, n.23, no Princípio e Fundamento, Inácio de Loyola, desvela o sentido da existência, como a própria existência cristã: “O ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor [...]. As outras coisas sobre a face da terra são criados para o ser humano e para o ajudarem a atingir o fim para o qual é criado. Ele deve usar das coisas tanto quanto o ajudam para atingir seu fim, e deve privar-se delas tanto quanto o impedem. [...] desejando e escolhendo somente aquilo que nos conduz ao fim para o qual fomos criados.”

 

Assim como a provocação das reflexões de hoje, também para Inácio de Loyola, ninguém que pretenda ordenar seriamente a sua vida, sairá sem ter colocado o rumo da sua existência no horizonte referencial dos pobres e humildes. Isto significa, concretamente, sair de si, revestir-se de Cristo, pobre e humilde, por amor à humanidade. É a conversão do coração.

 

A liturgia faz-nos “ver novas todas as coisas”, a busca de Deus passa pelo compromisso amoroso no mundo, fruto de uma descoberta do Amor de Deus, que desce do alto, que se configura na pobreza e humilhação concretas. Somos chamado/as a testemunhar que se pode ser feliz vivendo uma cultura da gratuidade, uma cultura da moderação, que possibilite uma divisão dos bens mais igualitária e justa para todas as pessoas e que favoreça melhores condições de realização humana. Lançar o olhar novo para o Cristo, desenhando o novo caminho, nos faz homem novo, mulher nova.

 

Sendo assim somos chamados/as a colocar nossa esperança ao que dá pleno significado à vida. Ao ver novas todas as coisas, lançando este olhar mais profundo nos perguntemos:

 

O que dá sentido pleno à minha vida? Para que eu vivo e onde centro minha vida. Já é hora de pararmos de ver o velho como novo - focados em nossas escolhas antigas, vejamos novas todas as coisas em Cristo e Nele nos recriemos, afoguemo-nos, como diz Gabriela Mistral em seu poema, mas agora em seu amor, verdade e alegria.

 

Bom domingo, boa contemplação, boa oração!

 

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