Festa da Sagrada Família – Ano C – Virtudes que tornam sagrada qualquer configuração familiar

Por: MpvM | 24 Dezembro 2021

 

"Os textos bíblicos dessa festa apresentam-nos de um lado Sagrada Família e de outro as qualidades e as virtudes que devem ser buscadas para que realmente nossas famílias sejam consagradas. Entretanto, é preciso muito cuidado e atenção ao falarmos de família, pois precisamos estar atentos para os Sinais dos Tempos e discerni-los à luz do Evangelho. Por isso, devemos refletir sobre o modelo de família patriarcal que muitas vezes a Igreja nos apresenta como sendo o único possível e o único onde se encontram os valores cristãos. Isto não é verdade!!! O modelo da família tradicional é um entre outros. É preciso ter a mente e o coração abertos para perceber que o amor humano que é frágil e limitado, pode ser sagradoem toda e qualquer configuração familiar onde se vive o afeto, o respeito, o carinho, a harmonia, o acolhimento, a parceria, o perdão, o desejo de promover o outro...Afinal, existem famílias onde encontramos essas virtudes!!!!!

 

A reflexão é de Sonia Cosentino, leiga. Ela possui graduação em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio (2005) e mestrado tem teologia pela mesma Universidade (2008). 

 

 

Leituras do Dia

1ª Leitura - Eclo 3,3-7.14-17a (gr.2-6.12-14)
Salmo - Sl 127,1-2.3.4-5 (R. Cf 1)
2ª Leitura - Cl 3,12-21
Evangelho - Lc 2,41-52

 

Queridas irmãs e queridos irmãos celebramos hoje a Festa da Sagrada Família, como família inspiradora para todas as outras.

 

Os textos bíblicos dessa festa apresentam-nos de um lado a Sagrada Família e de outro as qualidades e as virtudes que devem ser buscadas para que realmente nossas famílias sejam consagradas. Entretanto, é preciso muito cuidado e atenção ao falarmos de família, pois precisamos estar atentos para os Sinais dos Tempos e discerni-los à luz do Evangelho. Por isso, devemos refletir sobre o modelo de família patriarcal que muitas vezes a Igreja nos apresenta como sendo o único possível e o único onde se encontram os valores cristãos. Isto não é verdade!!! O modelo da família tradicional é um entre outros. É preciso ter a mente e o coração abertos para perceber que o amor humano que é frágil e limitado, pode ser sagrado, em toda e qualquer configuração familiar onde se vive o afeto, o respeito, o carinho, a harmonia, o acolhimento, a parceria, o perdão, o desejo de promover o outro...Afinal, existem famílias onde encontramos essas virtudes!!!!!

 

O que podemos aprender com as leituras bíblicas de hoje?

 

A Primeira Leitura (Eclo 3,3-7.14-17a),  apresenta-nos um convite aos filhos adultos para que amem de coração os seus pais já idosos mediante um comportamento verdadeiramente filial. O texto sublinha a estreita relação entre o honrar a Deus e o honrar aos pais.

 

Mas, o que é verdadeiramente “honrar pai e mãe”? É toda uma gama de atitudes e sensibilidades, que se traduz não só em respeito, mas na ajuda concreta, nas mostras de carinho, obediência, estima e atenção.

 

Na Segunda Leitura nos deparamos com a Carta de Paulo aos Colossenses (3,2-21) onde o Apóstolo apresenta os sentimentos que devem pautar os relacionamentos humanos e acrescenta a seguinte moral doméstica: “Vós, mulheres, submetei-vos, aos maridos como convém no Senhor.” (18).

 

Diante de nossa sociedade historicamente injusta com as mulheres, onde vemos casos de violência doméstica e feminicídio multiplicando-se, não poderia deixar de comentar esse versículo que serviu e serve, como referência bíblica para legitimar a opressão do homem sobre a mulher. Precisamos reafirmar sempre que a cultura é parte do que somos, nela está o que regula nossa convivência e nossa comunicação em sociedade. Portanto, Paulo só podia escrever dentro de seu contexto cultural que era o patriarcal. No entanto, perguntamo-nos: nas primeiras comunidades cristãs esta lógica era mantida ou eram já vividas experiências em que as mulheres eram lideranças e protagonistas? Nas igrejas fundadas por Paulo as mulheres ensinavam, profetizavam, dirigiam a oração e tinham postos de autoridade. Esses fatos muitas vezes se tornaram despercebidos para a maioria de nós, pois foram invisibilizados e colocados de lado.

 

Além disto, como era o comportamento de Jesus com as mulheres? Ele possuía, escandalosamente, discípulas em seu grupo. Portanto, precisamos olhar para o conjunto de todo o Evangelho e destacar com cores fortes as passagens que negam veementemente qualquer tipo de submissão entre homem e mulher, como por exemplo, Gl 3, 28 que nos diz “não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”

 

Muitas injustiças têm sido perpetradas em função de interpretações bíblicas realizadas fora de contexto e com o interesse de manter relações de poder desiguais. Quantas não são as mulheres que, ainda hoje, mesmo diante de um casamento opressor, ficam quietas e se resignam na condição de submissas “por que a Bíblia diz que deve ser assim” e porque a liderança religiosa de sua comunidade de fé a orienta a aguentar a relação de dominação pelo bem da família? Diante disto muitas acabam mortas pelos companheiros!

 

Finalmente, no Evangelho (Lc 2,41-52) de hoje vemos o episódio da Peregrinação da Família de Jesus a Jerusalém, narrado por Lucas. A intenção teológica desse Evangelista, ao narrar este episódio, não é apresentar um tratado sobre uma família ideal. Se assim fosse, certamente teria contado a história de outra maneira, omitindo alguns elementos desconcertantes do relato atual, como por exemplo, a grande falta de atenção dos pais para com o filho no retorno a Nazaré. Então, porque Lucas narra este fato? Porque a caminhada de Maria e José para encontrar Jesus é fundamental para o evangelista, pois o movimento e o colocar-se em caminho é um tema muito caro para ele. Com isto Lucas quer ensinar que é necessário buscar sempre o Senhor, pois ele não é posse de ninguém. Até mesmo seus pais tiveram que procurá-lo!

 

Outro fato que chama a atenção é o de Maria, que dentro do contexto patriarcal, antecipa-se a José, e em público repreende o filho. Numa família modelo daquela época isso não aconteceria. Por que Lucas narra os fatos desta forma? Porque ele faz questão de colocar Maria assumindo a liderança da família, dando protagonismo à mulher.

 

Finalmente, numa crônica descritiva de uma família exemplar, certamente também a resposta de Jesus à sua mãe teria sido omitida. Ele, diante dos mestres da Lei e demais ouvintes, responde à mãe como um adolescente meio rebelde e malcriado; um jovenzinho obediente, apenas baixaria a cabeça e, se respondesse, seria um pedido de desculpas aos pais pela preocupação e constrangimento causados. Por que Lucas coloca essa cena em seu relato? Porque sua intenção teológica é a de fazer Jesus afirmar que é a Deus que deve obedecer e fazer a sua vontade, sem entretanto, dispensar seus pais terrenos.

 

Logo, se sabemos que o autor deste Evangelho não pretendia descrever uma família ideal, tendo como base a Família de Nazaré, por que ainda hoje ela é usada como ÚNICO modelo de família querido por Deus para nossa sociedade?

 

Por que não olhamos os Sinais dos Tempos e à luz do Evangelho fazemos um discernimento sobre a possibilidade de novas configurações familiares? Se Lucas, com a narração deste episódio busca nos mostrar a importância do movimento, por que continuamos parados e estratificados num único modelo de família? Por que muitos de nós ficam presos e acomodados na religião, esquecendo que a aponta sempre para o futuro, para o novo? Portanto, é preciso caminhar sendo uma Igreja “em saída”, em movimento.

 

Olhando atentamente para os valores apresentados na Liturgia de hoje, podemos ver que qualquer família que os ponha em prática será Consagrada por Deus.

 

Que a Sagrada Família de Nazaré nos fortaleça, revigore e inspire para buscarmos esses valores e colocá-los em prática dentro de nossas limitações humanas.

 

Que assim seja!

 

 

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