30º domingo do tempo comum - Ano B - No caminho da escuta, a pergunta inicia o diálogo

Por: MpvM | 22 Outubro 2021

"Temos visto uma história sendo contada nos últimos domingos, no contexto da caminhada de Jesus e seus discípulos até Jerusalém, fatos que são narrados em Marcos 10. O que nos traz essa passagem do evangelho são ensinamentos de Jesus Cristo – que poderíamos ter como coisas prosaicas do cotidiano da época, acontecimentos certamente importantes que foram relatados pelo cronista: divórcio, participação das crianças, a riqueza e seus apegos materiais, o desprendimento... Os privilégios: ações humanas em um contexto cultural certamente bem diferente do nosso, mas que refletem a humanidade dos discípulos – e, ainda hoje, dizem sobre a nossa humanidade. Eles fazem juntos o caminho para Jerusalém e Jesus faz dessa convivência um itinerário catequético e teológico, como já foi ressaltado pelas comentadoras nos domingos anteriores aqui no Ministério da Palavra na Voz das Mulheres." 

A reflexão é de Bia Gross, leiga. Ela possui mestrado em Teologia Sistemática e graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente desenvolve projetos na área da escrita acadêmica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Coordena a revisão da Enciclopédia Teológica Latino-americana, junto à FAJE, e coordena a equipe de revisão da revista Dignidade Re-Vista, da PUC-Rio, na área de direitos humanos. 

 

 

Leituras do dia

1ª Leitura – Jr 31, 7-9
Salmo – Sl 125
2ª Leitura – Hb 5,1-6
Evangelho – Mc 10,46-52 

Com alegria, venho refletir com vocês sobre as leituras deste 30º domingo do tempo comum... E tempo de pandemia. Vocês vão ouvir, HOJE, a interpretação de uma mulher para as leituras propostas. Como diz um historiador argentino, Félix Luna: “Já se sabe que, em matéria histórica, a objetividade não existe, porque o expositor [a expositora] é um ser humano, nasceu num determinado local, tem uma certa formação, adscreve a certos valores. Inevitavelmente, vê as coisas a partir de sua própria ótica. Mas asseguro-lhes [diz Luna] é possível fazer uma crônica honesta”. Assim, venho eu aqui, hoje, interpretar as leituras a partir de um honesto olhar feminino do século XXI... ressaltando que não falo como minoria. Muitas das lutas identitárias atuais contemplam minorias, mas, no caso das mulheres, são a voz de mais de metade da população mundial! Somos numericamente m-a-i-o-r-i-a. Mesmo assim, mulheres e meninas que habitam este planeta ainda vivem experiências históricas de desigualdade em 2021 e são vozes silenciadas. Por isso, ouvir nossas interpretações é importante... 

Temos visto uma história sendo contada nos últimos domingos, no contexto da caminhada de Jesus e seus discípulos até Jerusalém, fatos que são narrados em Marcos 10. O que nos traz essa passagem do evangelho são ensinamentos de Jesus Cristo – que poderíamos ter como coisas prosaicas do cotidiano da época, acontecimentos certamente importantes que foram relatados pelo cronista: divórcio, participação das crianças, a riqueza e seus apegos materiais, o desprendimento... Os privilégios: ações humanas em um contexto cultural certamente bem diferente do nosso, mas que refletem a humanidade dos discípulos – e, ainda hoje, dizem sobre a nossa humanidade. Eles fazem juntos o caminho para Jerusalém e Jesus faz dessa convivência um itinerário catequético e teológico, como já foi ressaltado pelas comentadoras nos domingos anteriores aqui no Ministério da Palavra na Voz das Mulheres

As leituras de hoje, em conjunto, nos trazem o projeto libertador de Deus para a humanidade. A primeira leitura fala do cuidado com as pessoas mais vulneráveis, vítimas das mais diversas formas de exploração e injustiça. Na libertação do cativeiro e retorno dos exilados e israelitas que haviam ficado dispersos – apenas um resto, poucos e arrasados –, o povo que volta está cheio de esperança (o que é cantado no salmo). São os vulneráveis, são os cegos, aleijados, grávidas e parturientes... Os que sofrem, os pobres, os excluídos, eles têm a preferência e os cuidados de Deus, que os vê como vítimas da desigualdade. 

O evangelho (Mc 10,46-52) narra especificamente a cura do cego Bartimeu; é o relato de um milagre e, mais do que isso, um modelo de fé e de confiança no seguimento de Jesus. E, ainda, é um ensinamento que podemos atualizar para nossos tempos: é preciso que os vulneráveis de hoje se façam ouvir. O cego gritou... Atenção, mulheres e tantos e tantas que sofrem injustiças: pessoas com deficiência, famílias que vivem abaixo da linha da pobreza, pessoas LGBTQIA+... O cego gritou e se fez ouvir. Jesus atendeu ao pedido do cego (que, ao contrário de alguns discípulos, queria VER!). 

Não ter medo de gritar: não ter medo de se fazer ouvir... É Jesus, em sua pedagogia catequética, que nos ensina. O cego gritou, foi ouvido por Jesus, embora os que o acompanhavam achassem que estava sendo inconveniente. Como o cego, nós mulheres somos vistas como inconvenientes quando apontamos nossas lutas, quando pedimos por igualdade, quando falamos em justiça. E quando gritamos pedindo proteção para não sermos mortas. 

Contextualizando, recentemente vimos uma senadora ser taxada de descontrolada porque gritou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito, exigindo do depoente respeito... Convencionou-se que gritar é permitido aos homens, em seus debates, mostrando superioridade em suas convicções, mas “pega mal” para moças que ainda devem ser belas (com padrões impostos), recatadas (aos sussurros) e do lar (sem possibilidade de desejos profissionais). E silenciosas: não devem elevar o tom de voz e muito menos clamar para terem seus direitos respeitados. Mas hoje queremos direitos iguais na sociedade, na Igreja, na política. Na verdade, queremos ser como o cego... Ouvidas! Aos que o taxaram de inoportuno, a resposta de Jesus foi demonstrar que ele tinha direito à fala, direito de expressar a sua condição e pedir por melhor vida, por vida justa, por equidade... Assim, gritar para relatar as atrocidades que se cometem contra populações indígenas não é “uma” narrativa: há crimes ocorrendo e contá-los é nosso dever cristão. Gritar ao lado das mães que juntam corpos de seus filhos depois de incursões policiais em favelas Brasil afora é pedir por justiça, gritar na defesa mulheres, jovens e meninas que não podem mais estudar no Afeganistão é sororidade... Gritamos para dizer que direitos sexuais e reprodutivos são uma pauta das mulheres e é delas esse lugar de fala. 

Há muitas alegorias nessas leituras: as mulheres grávidas como símbolo da vida, o manto que o cego joga como símbolo de desprendimento, e, importante, Jesus pergunta o que o cego quer... Mais um ensinamento de Jesus, que mostra a importância de ouvir o outro... Jesus pergunta e espera a resposta do cego. Precisamos reaprender isso de modo urgente nos dias que correm. Paramos de ouvir o diferente de nós, achamos que as respostas às demandas deles são as que nós já temos dogmaticamente eleitas. Não, perguntar como a pessoa quer ser chamada não é mimimi... Ouvir sobre pobreza menstrual e compreender o que as mulheres precisam não é criar privilégios. Ouvir como se sentem as pessoas LGBTQIA+ quando são discriminadas e lutar ao seu lado nas suas causas não é apenas tolerância, é respeito. Quando perguntamos, entramos em relação com a outra pessoa. Esperar a resposta de uma pergunta feita mostra a disposição ao diálogo. 

Ouvir necessidades e desejos é fundamental para quem quer agir para o bem dos semelhantes. Quando ouvimos os que estão conosco na caminhada, construímos um Reino mais justo, com participação mais equânime. É preciso que as religiões e as igrejas ouçam o que têm a dizer as mulheres, nós somos muitas! 

Muitas são também as interpretações possíveis para cada parte narrada na Sagrada Escritura... Certamente, nas Igrejas mundo afora, neste domingo, muitos falarão só da insistência do cego e da presteza de Jesus em curá-lo, muitos se preocuparão apenas com o milagre em si, com a magia da fé que cura. A reflexão que deixo hoje é que precisamos ouvir exatamente o que Jesus nos diz com a cura de Bartimeu... E, se ainda é preciso gritar para que a sociedade repense e reformule as construções e estereótipos que sustentam e reproduzem as relações injustas, assim faremos!

 

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