15 Dezembro 2011
Ao telefone, da cama de um hospital recifense, Daniel Lima diz o que entende por poesia.
"É uma espécie de vômito da beleza. A gente tem necessidade de soltar a beleza que percebeu do universo, o impulso irresistível de restituir a beleza vista por nós ao mundo a que ela pertence".
Aos 95 anos, Daniel Lima está lúcido e solar. Ainda assim, às vezes parece confuso.
Como quando foi informado pela reportagem, há uma semana, que acabara de receber um prêmio da Biblioteca Nacional pelo seu primeiro livro, "Poemas" (Cepe, R$ 45, 416 págs).
"Não é uma brincadeira não?", perguntou.
A reportagem é de Fabio Victor e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 15-12-2011.
Não era uma brincadeira. Sequestrados por uma professora amiga entre as dezenas de inéditos que ele mantém guardado, os versos resultaram numa antologia de antemão não autorizada, mas depois assentida.
Reunião de quatro livros, a obra foi inscrita pela "professora-ladra", Luzilá Gonçalves Ferreira ("roubei mesmo", diverte-se ela), no prêmio literário. Concorreu com outras 50 obras na categoria poesia. Padre Daniel, como é conhecido - há muito não exerce o sacerdócio, mas continua padre -, bateu nomes como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant'Anna.
A cerimônia de entrega do prêmio, pelo qual ganhará R$ 12,5 mil, é hoje no Rio. Ainda no hospital, Lima será representado por Luzilá Ferreira.
"É para acreditar mesmo, não é?" - ele continuava desconfiado da notícia. "Não me faça bancar o idiota, viu?"
Não. Daniel Lima não tem nada de idiota.
"Fico arrasado pela beleza que consegui apanhar na palavra que é tão pobre. Eu mesmo adoeço quando escrevo muita poesia."
E agora está no hospital porque adoeceu de quê?
"Adoeci de Daniel", responde rindo. "O mundo é muito importante, eu fico meio desorientado. Para me enquadrar nele eu tenho de sofrer e adoeço."
Amigos contam que o poeta está saudável e foi parar no hospital porque não queria comer, andou anêmico. Mas deve ter alta em breve.
UNANIMIDADE
Composto por Alexei Bueno, Antônio José Jardim e Frederico Gomes, o júri escolheu o livro por unanimidade.
"Eu não o conhecia e acho que ninguém o conhecia. A obra dele impressiona muitíssimo, não tive a menor dúvida [em escolhê-lo]. É uma descoberta da poesia brasileira", afirma Jardim, professor de literatura da UFRJ.
Ele diz que Lima "consegue aliar a força do pensamento a tamanha dimensão poética". "É a poesia como a força da palavra."
Escritora, professora de literatura na UFPE e ex-aluna de Lima, Luzilá Ferreira relata que foi cativada pela originalidade do poeta. "Ele alia simplicidade a um conhecimento extraordinário do fazer poético, do ritmo, do domínio das palavras."
Segundo amigos, Daniel Lima tem pelo menos 27 livros inéditos, 14 de filosofia. Amiga dele há 50 anos e que hoje o acolhe em sua casa, a ex-bibliotecária Célia Veloso disse ser impossível calcular o número exato. "Ele passou a vida escrevendo e espalhando livros, os ratos iam comendo... Só escreveu para ele e para os amigos", conta.
Nascido em Timbaúba (PE) em 2 de maio de 1916, Lima foi pároco em Nazaré da Mata e ensinou filosofia em universidades do Recife. Ligado a setores progressistas da Igreja, atuou nas Ligas Camponesas de Francisco Julião.
Trechos
"Ao nasceres, tinhas o prefigurado rosto
Que hoje terias se houvesses sido tu mesmo
No tempo singular de tua vida.
Mas viveste o relógio, não teu tempo
e agora vê teu rosto:
o que dele te resta é a desfigurada
sombra do primeiro rosto
que não soubeste ter,
nem mereceste"
"Eu sou a metáfora de mim.
Por isto, quando eu
morrer
morrerá meu poema.
Restarão apenas palavras sem sentido,
formas tornadas vãs de um mistério
Cuja chave perdida para sempre
No silêncio de morte
Ninguém encontrará"
Extraído de "Poemas", de Daniel Lima