04 Agosto 2011
A crise da Igreja não se resolve com as mudanças práticas solicitadas por seus críticos, mas com uma fé mais viva e mais verdadeira. Joseph Ratzinger estava firmemente convencido disso já como cardeal. Um memorável debate entre ele e um cardeal francês ajuda a entender sua atual conduta como Papa.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa, 01-08-2011. A tradução é do Cepat.
Em pleno verão, inesperadamente voltaram a ganhar força os ataques contra Bento XVI, de fora e de dentro da Igreja.
De fora veio o ataque frontal – de dureza sem precedentes – do primeiro ministro irlandês Enda Kenny, que acusou a hierarquia católica até seu vértice mais alto, de proteger os sacerdotes pedófilos das armas da justiça terrena. No banco dos réus Kenny sentou o próprio Joseph Ratzinger, por esta frase sua de quando era cardeal: "padrões de conduta apropriados à sociedade civil ou ao funcionamento de uma democracia não podem ser pura e simplesmente aplicados à Igreja".
Também o Financial Times, com um editorial, se alinhou com o primeiro ministro irlandês contra a Igreja católica. Na Irlanda está em estudo uma lei que obrigaria os sacerdotes a contar aos órgãos do Estado as informações de abusos sexuais a menores obtidas no sacramento da confissão.
Enquanto isso, de dentro da Igreja se iniciou novamente uma onda de reivindicações por parte de sacerdotes na Áustria, Estados Unidos, Austrália e pouco a pouco em outros países, pela abolição do celibato do clero, a ordenação sacerdotal de mulheres, a comunhão aos divorciados em seu segundo casamento.
O que estes ataques têm em comum é a pressão que procura fazer com que a Igreja se adapte ao ordenamento das modernas democracias e assimile as correntes culturais dominantes.
Com um olhar mais aproximado, a reforma da Igreja que estes acusadores pretendem não tem em seu centro as mudanças de doutrina, mas a modificação de seu ordenamento e de sua disciplina. Para eles a ortodoxia não tem importância, mas a ortopráxis: são as regras práticas da Igreja que devem ser mudadas e alinhar o passo com os tempos atuais.
Bento XVI é acusado justamente por isso: de insistir na verdade da doutrina e de rechaçar as inovações práticas de que a Igreja tem necessidade.
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Na realidade, o atual pontificado se caracteriza também por uma série importante de mudanças normativas no campo litúrgico, financeiro, penal, ecumênico, a tal ponto que estudantes de direito canônico dedicaram um recente congresso precisamente ao tema "Bento XVI legislador canônico".
Mas em que sentido Bento XVI se vê a si mesmo como "legislador"?
Para responder a esta pergunta é necessário remontar para antes de sua eleição como Papa: a uma conferência pronunciada pelo cardeal Ratzinger na Sorbonne. Uma conferência à qual se seguiu um vivo debate de réplica e tréplica entre ele e o então arcebispo de Bordeaux (França), o cardeal Pierre Eyt, também membro da Congregação para a Doutrina da Fé da qual Ratzinger era prefeito.
Era o dia 27 de novembro de 1999. Ratzinger intitulou a sua conferência "Verdade do cristianismo?". E quem voltar a lê-la encontrará uma extraordinária sintonia com a aula que deu, já como Papa, em Regensburg, no dia 12 de setembro de 2006.
Em Paris, na conclusão, Ratzinger disse:
"Olhando o passado, podemos dizer que a força que transformou o cristianismo em uma religião mundial está na síntese entre razão, fé e vida que pôde realizar, brevemente indicada com a expressão "religio vera’".
E continuou: "Todas as crises no cristianismo que observamos em nossos dias remetem apenas secundariamente a problemas de tipo institucional. Os problemas de tipo tanto institucional como pessoal na Igreja derivam, em última instância, desta questão e de seu enorme peso".
Ou seja, precisamente, da "pretensão de verdade" do cristianismo, em uma época em que para muitos homens já não existem mais certezas, mas apenas opiniões.
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A estas teses o cardeal Eyt reagiu poucos dias depois no jornal católico La Croix, de 9 de dezembro de 1999.
Objetou que os "problemas institucionais" na Igreja não são absolutamente "secundários", como Ratzinger havia defendido.
Bispos e cardeais, na opinião de Eyt, devem diariamente "decidir e tomar posição com urgência". Não podemos tergiversar, porque diariamente "estão com as costas contra a parede". Sob a provocação da sensibilidade de hoje "devemos provar um pouco mais algumas de nossas concepções e práticas".
Quais práticas? Para exemplificar, o cardeal Eyt citou a intervenção do cardeal Carlo Maria Martini no sínodo daquele mesmo ano, que havia indicado como necessitadas de respostas as seguintes questões: "o papel da mulher na sociedade e na Igreja, a participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, a sexualidade, a disciplina matrimonial, a relação com as Igrejas irmãs da Ortodoxia, a necessidade de reanimar a esperança ecumênica, a relação entre democracia e valores, entre as leis civis e morais".
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Ratzinger fez sua tréplica no dia 30 de dezembro, no La Croix. E os primeiros dois pontos de sua réplica foram os seguintes:
"1. O cardeal [Eyt] disse que na análise das decisões da Igreja antiga, deveria ter levado em consideração não apenas a relação entre fé e racionalidade, mas também evidenciar a relação entre fé e direito romano.
Sobre este ponto não posso estar de acordo. A relação entre fé e razão, com efeito, é uma opção original da fé cristã já claramente formulada na leitura profética e sapiencial do Antigo Testamento e seguidamente retomada com decisão pelo Novo Testamento. A pretensão, frente à religião mítica e política, de ser uma fé em relação com a verdade e, portanto, responsável em relação à razão, pertence à autodefinição essencial da herança bíblica, herança que precedeu a missão e a teologia cristã e que, mais ainda, as tornou possíveis.
A relação com o direito humano, ao contrário, só foi desenvolvida progressivamente a partir do século IV e – em relação à decadência das estruturas do império – nunca conseguiu no Ocidente o mesmo significado que tinha na Igreja do império bizantino. Trata-se de uma opção secundária que interveio em uma época determinada e que poderia também novamente desaparecer. Certamente, é verdade que entre direito e Igreja existe uma relação recíproca de fundo, mas trata-se de uma questão independente da outra.
2. Meu irmão do colégio cardinalício considera que eu desprezo o sentido das instituições. É incontestável o fato de que a fé cristã, desde as origens, não quis ser apenas uma ideia, que tenha entrado no mundo dotada de elementos institucionais (função apostólica, sucessão apostólica) e que, pois, a forma institucional da Igreja pertença por essência à fé. Mas, as instituições não podem viver se não forem sustentadas por convicções fundamentais comuns e se não existir uma evidência de valores que fundem sua identidade.
A fragilidade desta evidência é – repito – a razão específica da crise atual da Igreja. O cardeal Eyt me recorda com razão as decisões institucionais que devo tomar diariamente. Mas é precisamente aqui que a conexão se torna para mim mais evidente. Ali onde as decisões do magistério sobre valores determinados pela identidade da instituição eclesial não podem mais contar com uma convicção comum, aquelas são necessariamente percebidas como repressivas e resultam, no final das contas, ineficazes.
Quem defende a doutrina trinitária, a cristologia, a estrutura sacramental da Igreja, sua origem no Cristo, a função de Pedro ou o ensinamento moral fundamental da Igreja, etc., e deve combater a negação enquanto incompatível com a instituição eclesial, bate no vazio caso se difundir a opinião de que tudo isto [junto com a verdade] não tem importância. Deste modo, uma instituição se converte em um esqueleto vazio e cai na ruína, embora exteriormente permaneça forte ou dá a aparência de ter bases sólidas.
Por isto, as decisões institucionais do magistério podem tornar-se fecundas apenas na condição de que estejam ligadas a uma luta séria e convencida por uma nova evidência das opções fundamentais da fé".
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Retornando à atualidade, ao ver a obra de Ratzinger como "Papa legislador", pode parecer que ele tenha mudado de ideia: isto é, que as instituições, os ordenamentos e as normas canônicas não sejam mais para ele algo "secundário".
Mas, não é assim. Cada vez que Bento XVI legisla – por exemplo, permitindo a missa em rito romano antigo ou reforçando as normas contra os "delicta graviora" – faz de tudo para mostrar o fundamento da verdade das decisões tomadas e a especificidade que têm em relação às leis da cidade terrena.
Onde esta "evidência das opções fundamentais da fé" falta, ele cuida bem de permitir as "provocações da sensibilidade de hoje".
Para ele a ortopráxis não pode estar separada da ortodoxia, assim como a "caritas" é tão somente "in veritate".
O parágrafo final de sua conferência de 1999 na Sorbonne dizia exatamente isto:
"A tentativa de restituir, na atual crise da humanidade, um significado global à noção de cristianismo como "religio vera’ deve apontar em paralelo à ortopráxis e à ortodoxia. Seu conteúdo, hoje como antanho, deverá consistir, mais profundamente, na coincidência entre amor e razão enquanto pilares fundamentais do real: a razão verdadeira é o amor e o amor é a razão verdadeira. Em sua unidade, eles são o fundamento verdadeiro e o fim de todo o real".
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Devo a inspiração para esta análise ao professor Carlo Fantappiè, ordinário de Direito Canônico na Universidade de Urbino e autor de importantes estudos sobre a Igreja e a modernidade jurídica. A ele um vivo agradecimento.