Tecnologias sociais: a revolução silenciosa do saber coletivo

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Por: Fernan Silva | 01 Novembro 2025

“A ciência no capitalismo é instrumentalizada como força produtiva. O conhecimento só é validado quando pode ser transformado em tecnologia patenteável no mercado lucrativo. Ou seja, a ciência, no capitalismo em geral, deixa de ser um instrumento de melhoria social. Ela deixa de propiciar a melhoria da humanidade e vai propiciar o lucro”, afirmou Rafael da Guia, colunista e consultor em tecnologia no Jornal Brasil de Fato, ao analisar o tema Tecnologias sociais: saberes populares e conhecimento científico, no sexto encontro da série de debates [online] Tecnologia e Ecologia: rupturas e imbricações, ocorrido no dia 18 de outubro.

A iniciativa do Centro de Promoção de Agentes de Transformação – CEPAT conta com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá – UEM. A série de debates busca aprofundar as temáticas socioambientais com ênfase nas relações entre tecnologia e ecologia, com suas rupturas e imbricações, buscando analisar facetas dos principais desafios da condição humana no mundo.

Série de debates 'Tecnologia e Ecologia: rupturas e imbricações', com o tema Tecnologias sociais: saberes populares e conhecimento científico

Rafael da Guia começou o debate apresentando um panorama do cenário global onde a inovação tecnológica é frequentemente associada a corporações bilionárias e produtos de consumo massificados. Em contrapartida, um movimento alternativo e profundamente transformador vem ganhando espaço: as tecnologias sociais. Esta abordagem representa não apenas uma maneira diferente de criar soluções, mas uma verdadeira revolução na forma como entendemos o próprio conceito de progresso tecnológico. Diferente do modelo hegemônico, que frequentemente prioriza o lucro acima do bem-estar humano, as tecnologias sociais emergem das comunidades, com as comunidades e para as comunidades, estabelecendo um novo paradigma de desenvolvimento.

Um contraponto ao algoritmo e o solucionismo tecnológico

O ponto de partida fundamental para compreender essa abordagem está em distingui-la do que se convencionou chamar de "solucionismo tecnológico". Esta visão, tão propagada pelo mercado, parte da premissa enganosa de que todos os problemas complexos da humanidade, da fome às mudanças climáticas, podem ser resolvidos mediante a aplicação de soluções técnicas. Tal perspectiva ignora deliberadamente as causas estruturais e políticas desses problemas, convertendo questões sociais profundas em meras oportunidades de negócio. É a ilusão perigosa de que algoritmos podem substituir a necessária transformação social.

Rafael afirmou que as tecnologias sociais, por outro lado, constroem-se sobre alicerces radicalmente diferentes. Elas não se impõem de cima para baixo, mas germinam a partir do solo fértil do diálogo comunitário. Seu objetivo primordial não é gerar retorno financeiro, mas empoderar as pessoas para que sejam agentes ativos na transformação de sua própria realidade. Neste processo, a tecnologia deixa de ser um fim em si mesma para tornar-se uma ferramenta a serviço de projetos maiores como por exemplo a comunicação popular, o acesso a direitos fundamentais ou a preservação ambiental.

O debatedor destaca que um dos aspectos mais ricos deste modelo é o diálogo que estabelece entre o conhecimento científico acadêmico e os saberes populares tradicionais. Durante séculos, estes dois universos foram artificialmente separados por uma hierarquia injusta que privilegiava o saber formal em detrimento do conhecimento ancestral. O sistema capitalista, em particular, tende a validar apenas conhecimentos passíveis de serem patenteados e comercializados, marginalizando saberes coletivos que, por sua natureza comunitária, resistem à apropriação privada.

Série de debates 'Tecnologia e Ecologia: rupturas e imbricações', com o tema Tecnologias sociais: saberes populares e conhecimento científico

Contudo, as experiências mais bem-sucedidas de tecnologias sociais demonstram precisamente o contrário: longe de se excluírem mutuamente, conhecimento científico e saberes populares podem desenvolver uma simbiose extraordinariamente fértil. O método científico, com seu rigor metodológico e capacidade de validação, pode oferecer ferramentas para aprimorar técnicas ancestrais; já os saberes tradicionais, proporcionam insights valiosos e hipóteses de trabalho que frequentemente escapam aos olhares dos especialistas convencionais.

Esta integração revela-se com clareza em iniciativas concretas que já transformam realidades. Nesse sentido, Rafael apresentou três exemplos:

1. Os sistemas agroflorestais desenvolvidos e geridos principalmente por comunidades tradicionais combinam saberes milenares sobre a terra com pesquisas científicas sobre manejo sustentável;

2. As redes comunitárias de internet, planejadas e implementadas pelos próprios usuários, unem conhecimento técnico avançado a um profundo entendimento das dinâmicas locais;

3. Técnicas ancestrais de coleta e purificação de água são aperfeiçoadas mediante contribuições da engenharia hidráulica moderna.

Não se trata, porém, de um caminho isento de contradições. A implementação de tecnologias sociais em um contexto capitalista gera tensões inevitáveis. A pressão constante para converter soluções coletivas em produtos comercializáveis representa uma ameaça permanente à natureza comunitária dessas iniciativas. A lógica do valor de troca tende a subverter a primazia do valor de uso, transformando o que era destinado a suprir necessidades humanas em mercadorias lucrativas. Há ainda o risco destas tecnologias serem cooptadas como instrumentos paliativos, sem apresentar saídas que lidem com as raízes dos problemas.

Estas contradições, analisou Rafael da Guia, reforçam a necessidade de se compreender as tecnologias sociais em seu contexto mais amplo. Elas não criam soluções universais capazes de resolver, por si só, os profundos desequilíbrios de nossa sociedade. Seu verdadeiro potencial reside justamente em sua capacidade de fortalecer a organização popular, fornecendo ferramentas para a luta social e criando espaços de autonomia frente a um sistema frequentemente opressor. Cada tecnologia social bem-sucedida é, antes de tudo, uma demonstração prática de que outro mundo é possível.

O futuro que se vislumbra através das lentes das tecnologias sociais é, portanto, radicalmente diferente da distopia tecnocrática que nos é vendida pelo solucionismo de mercado. Nele, a inovação não serve aos interesses do capital, mas às necessidades humanas e ambientais. O desenvolvimento tecnológico deixa de ser um fim em si mesmo para tornar-se um processo coletivo de aprendizado, empoderamento e construção de autonomia.

Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.

 

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