A célebre obra de Antoni Negri e Michael Hardt continua atual e nos coloca diante do desafio de aprofundarmos as instâncias democráticas e impulsionadoras de vida no mundo em que vivemos
Em Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, há uma atualidade que atravessa os tempos e nos desafia, 25 anos depois de sua publicação, a fazer avançar a democracia em todos os quadrantes. “Negri e Hardt propunham um esquema de análise para a nova estrutura da dominação capitalista em escala global de modo a identificar as dimensões ‘monárquicas’, ‘aristocráticas’ e democráticas dessa reconfiguração. E, sobretudo, para identificar as brechas e fissuras pelas quais as lutas desde baixo poderiam enfrentar as duas primeiras dimensões a partir da ampliação e transformação da terceira, a democrática”, explica o professor e pesquisador Adriano Pilatti, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “É justamente aí que parece residir sua atualidade e sua força de interpelação e inspiração: na aposta de poder ampliar e radicalizar a dimensão democrática do Império por meio das lutas por direitos”, complementa.
No contexto deste livro, os autores trabalham o conceito de Multidão, que substitui a categoria de proletariado para pensar os novos regimes de trabalho e organização social. “Desse modo, pode-se compreender a multidão como uma categoria de classe, que aponta para a nova composição da classe trabalhadora no capitalismo globalizado, e acentua, valorizando-a, essa dimensão diversa e plural, essa percepção de uma multiplicidade de singularidades em luta pelas condições de fruição da ‘vida boa’”, descreve o entrevistado.
É importante notar, no léxico do pensamento desses autores, que Império não é imperialismo, porque há sempre no seu interior a potência da transformação desde baixo, a partir, precisamente, da Multidão. Lutar ao mesmo tempo contra e pelo Império “é dizer que as lutas devem ser desenvolvidas contra as dimensões monárquicas e aristocráticas, mas em prol de suas dimensões democráticas, de forma a preservar, ampliar e transformar a institucionalidade democrática, sem a qual as lutas se tornam muito mais difíceis, sofridas e ineficazes”, aponta Pillati. “Neste sentido, preservar o que resta da institucionalidade democrática, liberal ou social que seja, é condição de possibilidade do desenvolvimento das lutas autônomas por direitos e pela construção de uma democracia efetiva para os trabalhadores e trabalhadoras, seja no âmbito do trabalho, seja no âmbito da participação política”, acrescenta.
Adriano Pilatti, em evento no IHU (Foto: Luísa Boéssio - Acervo IHU)
Adriano Pilatti é graduado em Direito (UFRJ), mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio), doutor em Ciência Política (IUPERJ) e pós-doutor em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza.
Foi assessor parlamentar junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, assessor legislativo concursado da Câmara dos Deputados e chefe da Assessoria Jurídica da Reitoria da PUC-Rio. É professor adjunto do Departamento de Direito da PUC-Rio, do qual foi diretor (2004-2010).
Traduziu o livro Poder Constituinte: Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (DPA, 2002/Lamparina, 2015) e é autor de A Constituinte de 1987-1988: Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Lumen Juris, 2008, 2016, 2019 e 2020).
IHU – Império de Negri e Hardt foi publicado há 25 anos. O mundo era, evidentemente, outro. Os EUA eram ainda uma potência global pujante, que hoje é vista em declínio. Embora o livro seja muito conhecido, pode resumi-lo e nos dizer como ele continua atual?
Adriano Pilatti – Neste livro, Negri e Hardt propunham um esquema de análise para a nova estrutura da dominação capitalista em escala global – inspirado no, mas não confinado ao modelo polibiano de constituição mista – de modo a identificar as dimensões “monárquicas”, “aristocráticas” e democráticas dessa reconfiguração. E, sobretudo, para identificar as brechas e fissuras pelas quais as lutas desde baixo poderiam enfrentar as duas primeiras dimensões a partir da ampliação e transformação da terceira, a democrática. É justamente aí que parece residir sua atualidade e sua força de interpelação e inspiração: na aposta de poder ampliar e radicalizar a dimensão democrática do Império por meio das lutas por direitos, de forma a permitir a autoprodução da multidão como multiplicidade de subjetividades insurgentes autônomas, o “trabalho da multidão”, e a construção de uma outra institucionalização, radicalmente democrática.
Reprodução da capa de Império.
IHU – Multidão é outro conceito central nesta obra. Como os autores a definem e que exemplos no mundo contemporâneo a exemplificam? Há na Multidão, também, uma pulsão de morte, representada nos invasores ao Capitólio ou nos vândalos de 8 de janeiro?
Adriano Pilatti – Polêmica e complexa, essa categoria de inspiração espinosana é uma construção in progress, que pretende superar as dimensões uniformizadoras, compactadoras e mistificadoras das noções tradicionais de povo e nação, e ao mesmo substituir a antiga categoria de proletariado, esta concernente a um momento do desenvolvimento capitalista já ultrapassado, sobretudo no que se refere à centralidade do modelo fabril de organização, subordinação e exploração da cooperação produtiva dos trabalhadores e trabalhadoras. Desse modo, pode-se compreender a multidão como uma categoria de classe, que aponta para a nova composição da classe trabalhadora no capitalismo globalizado, e acentua, valorizando-a, essa dimensão diversa e plural, essa percepção de uma multiplicidade de singularidades em luta pelas condições de fruição da “vida boa”.
Embora haja, em autores desse campo, concepções mais ou menos divergentes (as concepções de Paolo Virno, de um lado, e Gigi Roggero, de outro, por exemplo, são distintas daquela de Negri e Hardt), os elementos fundamentais acima mencionados parecem razoavelmente compartilhados. De todo modo, não se trata de uma categoria idealizada e edulcorada: justamente pela multiplicidade de sua composição, derivas tendem a ocorrer. O que, de resto, não constitui novidade: amplos setores do proletariado alemão nos anos 1930, por exemplo, foram atraídos, cooptados e capturados pelo nazismo, não é mesmo?
IHU – Em um texto publicado recentemente, você escreveu que não há saída do Império? Por que não há? Diante disso, o que fazer?
Adriano Pilatti – Ao contrário do que muitos pensavam, as tentativas de saída do Império (ou sociedade global de comando, controle e exploração capitalistas) parecem ser mais vigorosas no campo autocrático do que no campo democrático. Permanecer dentro do Império, em que já nos encontramos e do qual dificilmente sairemos – pois não há um “fora”, a não ser parcialmente, em modelos ultra-autocráticos – significa lutar dentro dele, contra suas dimensões monárquicas e aristocráticas, ambas nefastas e predatórias.
IHU – O que significa dizer que os movimentos de emancipação precisam lutar ao mesmo tempo contra e “pelo” Império?
Adriano Pilatti – É dizer que as lutas devem ser desenvolvidas contra as dimensões monárquicas e aristocráticas, mas em prol de suas dimensões democráticas, de forma a preservar, ampliar e transformar a institucionalidade democrática, sem a qual as lutas se tornam muito mais difíceis, sofridas e ineficazes. Nisso não há nenhuma heresia em relação à tradição de esquerda. Lembremos que o próprio (e neste caso “insuspeito”…) Lênin sustentava que “somos partidários da república democrática como a melhor forma de governo para o proletariado sob o regime capitalista, mas andaríamos mal se esquecêssemos que a escravidão assalariada é o quinhão do povo mesmo na república burguesa mais democrática” (O Estado e a Revolução, cap. I, 4).
Neste sentido, preservar o que resta da institucionalidade democrática, liberal ou social que seja, é condição de possibilidade do desenvolvimento das lutas autônomas por direitos e pela construção de uma democracia efetiva para os trabalhadores e trabalhadoras, seja no âmbito do trabalho, seja no âmbito da participação política. Daí a necessidade de compreender a importância (no mínimo estratégica) da defesa das instituições democráticas onde elas subsistem e viabilizam as lutas, como na Europa ocidental e parte das Américas.
IHU – Em que sentido o Império se organiza por uma lógica “constituinte”, nos termos do próprio Negri, e não propriamente por uma lógica “imperial”?
Adriano Pilatti – A “lógica” do Império é a do poder constituído, do trabalho morto, do comando, da exploração e do controle. Preservando e ampliando a institucionalidade democrática nos Estados que a mantém, a “lógica” constituinte da multidão, do trabalho vivo e de seus movimentos emancipatórios pode prosperar de maneira mais positiva e adequada.
IHU – No artigo Crise da Democracia e Império 25 Anos Depois, você e os demais autores mencionam três crises atuais: da democracia, do poder constituinte e da globalização. Como elas se caracterizam e quais alternativas temos?
Adriano Pilatti – A caracterização está bem detalhada em nosso artigo. A alternativa fundamental é radicalizar a democracia, promover a intensificação e ampliação dos movimentos constituintes em escala global, reconstituindo a internacionalidade ou transnacionalidade da cooperação solidária dos movimentos e comunidades em luta por direitos em todo o mundo.
IHU – Qual a diferença entre antiglobalização e alterglobalização e que movimentos apontam para uma perspectiva civilizatória no bom sentido do termo?
Adriano Pilatti – Se a dominação é global, e se a globalização apresenta aspectos positivos, trata-se de lutar por uma outra globalização possível, a globalização da solidariedade entre os que lutam e padecem, a globalização da democracia radicalizável.
IHU – Como construir, contra o socius extrativista, parasitário e necropolítico típico de um vetor de Império, um regime de acumulação do comum metropolitano, algorítmico, democrático e desde baixo?
Adriano Pilatti – Pelo desenvolvimento de novas formas de cooperação e luta, pelo restabelecimento da comunicação entre as lutas, pela superação das idiossincrasias identitárias que impedem a construção de uma consciência do comum.
IHU – Império de Hardt e Negri e suas derivas filosóficas, sociais e políticas são bastante tributários de um pensamento europeu e do Norte Global. Ailton Krenak (especialmente em Guerras do Brasil) e Davi Kopenawa (em A queda do céu), também estão debruçados sobre os temas do comum e do alterglobalismo. Parece-nos que estes autores estão muito mais próximos da matriz espinosista de pensamento que fundamenta o organiza a proposta multitudinária de Negri e Hardt, do que autores como Lazzarato, por exemplo. Como olhar para este pensamento de origem alterglobalista e radicalmente fundado no comum para fazer avançar as forças e as paixões alegres da Multidão?
Adriano Pilatti – Essa clivagem geográfica é bastante problemática. Concepções e experimentos que tendem à construção do Comum estão a se desenvolver em todos os quadrantes, e o desafio é justamente compreendê-los e valorizá-los em suas singularidades e especificidades, sem renunciar à cooperação, à solidariedade e à construção de um projeto comum de emancipação de todos e todas, sem preconceitos ou discriminações, onde quer que estejam, ou para onde quer que migrem.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Adriano Pilatti – Para os necessários aprofundamentos, desenvolvimentos e detalhamentos, vale a leitura de nosso artigo “Crise da Democracia e Império 25 Anos Depois”, disponível aqui.