“No Brasil nunca houve transição, mas transação”. Entrevista com Jair Krischke

Para o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, a impunidade da ditadura militar impede a democracia plena

Foto do Bolsonaro: Marcelo Camargo | Agência Brasil | Arte: Reprodução CUT

12 Dezembro 2022

Neste sábado (10) celebra-se o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Nessa mesma data, em 1948, foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, primeiro documento de caráter universal de proteção aos direitos do homem e que, desde então, inspira as constituições dos Estados democráticos.

Analisar a questão dos direitos humanos na terra arrasada que é o Brasil de Bolsonaro é falar de um retrocesso brutal. A ONU aponta que, nos últimos quatro anos e meio, o país cumpriu apenas 17% das orientações para evitar violações. A ONG Global Witness aponta que o Brasil é o quarto país onde mais matam defensores e defensoras de direitos humanos.

Militante histórico dos direitos humanos, o gaúcho Jair Krischke, 84 anos, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) em 1979, ainda sob a ditadura mas na sua fase final. Brasil. Presidente do MJDH, ele concedeu longa entrevista ao Brasil de Fato RS. Nela, avalia a grave situação de desmonte promovida por Bolsonaro nas políticas de direitos humanos.

Para ele, a “capenga democracia brasileira” segue instável por não tomar consciência e julgar os crimes cometidos pela ditadura de 1964. Por isso, resgata o tempo passado para refletir sobre a atual situação e os desafios para o próximo governo.

Adverte que há muito o que ser feito para que a juventude compreenda o que ocorreu nos 21 anos de regime militar. Que só com a superação da impunidade é que os arroubos golpistas e candidatos autoritários deixarão de ser comuns. Para isso, entre outras coisas, aponta a sua maior prioridade: não esquecer. E isso só se consegue em um país com políticas públicas de memória.

 


Jair Krischke, hoje com 84 anos, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) em 1979

Foto: Reprodução/Estado de Direitos

 

A entrevista é de Marcelo Ferreira, do Brasil de Fato, com colaboração de Fabiana Reinholz, publicada em 10-12-2022.

Eis a entrevista:

O último relatório da Revisão Periódica Universal (RPU) aponta que o Brasil, nos últimos quatro anos e meio, não conseguiu cumprir 80% das orientações da ONU para evitar violações de direitos humanos. Só 17% foram, de fato, totalmente cumpridas. Como você avalia a atual situação dos direitos humanos no país e por que essa dificuldade de avançar quando se trata de proteção?

O relatório da ONU não nos surpreende por uma simples razão: o presidente Bolsonaro fez toda a sua campanha eleitoral com um discurso explicitamente contra os direitos humanos. Mais ainda: fazendo apologia de torturadores e de repressores. Não é difícil entender que o relatório constate aquilo que era mais ou menos esperado.

Durante esses quatro anos, tivemos um retrocesso brutal nas questões de direitos humanos, a começar pelo ministério, que foi totalmente alterado, entregue para uma das pessoas menos qualificadas para implementar as políticas. E, ao contrário, além de não implementar as políticas propostas pela ONU, desmontou aquilo que até era pouco, mas que se havia conquistado.

 

 

Em 2021 o Brasil foi apontado como o quarto lugar no ranking dos países que mais matam defensores e defensoras de direitos humanos, ficando atrás apenas de Colômbia, México e Filipinas. O país também é o que mais mata ativistas pela terra, de acordo com o relatório da Global Witness. Há algo que possa explicar esse cenário de violência?

Em 2018, elegeu-se um presidente com esse discurso contra os direitos humanos e que pregava a violência. Por exemplo, essa liberação enlouquecida e inclusive ilegal de armas e munição. É claro que, com abundância de armas, vamos ter abundância de assassinatos.

As vítimas são defensores de direitos humanos e estão vinculadas à luta pela terra e à questão da demarcação das áreas indígenas e quilombolas. Isto é fácil da gente constatar. Se olhares o mapa do Brasil num relatório bem recente, o número de clubes de tiro que começaram a funcionar ao longo da Transamazônica é impressionante. Clubes de tiro onde, nos registros, o endereço sequer existe.

Há uma política governamental nessa direção para a liquidação física daqueles que se opõem à violação dos direitos humanos. Esse número é impressionante sim mas é fruto de uma postura que privilegia e prega a violência. A gente olha esses números e fica arrepiado porque é um retrocesso brutal.

Há um desmonte das políticas públicas de direitos humanos durante o governo Bolsonaro? Quais os desafios do próximo governo?

A questão das políticas públicas do governo Bolsonaro foi ao contrário. Tudo que deveria ser feito não foi feito e o que já existia foi desmantelado.

Quatro anos é um tempo curto apenas para reestabelecer o que foi destruído. Todos nós, os brasileiros, não só na questão dos direitos humanos, mas em amplas questões sociais, vamos ter que ter um pouco de paciência. Trata-se de recuperar o que foi perdido e, ao mesmo tempo, implementar políticas públicas. Eu vou privilegiar muito as políticas públicas de memória porque esse governo desastrado, criminoso, uma das suas políticas implementadas foi da desmemória, do negacionismo, de negar todos os horrores praticados durante a vigência da ditadura militar.

 

 

Este povo desmemoriado que elegeu este senhor deu a ele no último processo eleitoral uma quantidade de votos significativa. Claramente é a consequência de uma desmemória. Precisamos trabalhar e o novo governo precisa assumir essa questão.

Costumo dizer que os militares somente desocuparam a praça. Eles e ainda têm uma influência impressionante. Estão, segundo a Constituição, submetidos ao poder civil, e durante esses quatro anos, não só o presidente, mas muitos oficiais generais, oficiais intermediários e oficiais subalternos infernizaram este país com uma ameaça permanente ao Estado democrático de direito. Então, as políticas públicas de memória são uma exigência para consolidar o processo democrático. Se não for feito, daqui mais um tempo vamos viver novamente os mesmos sobressaltos.

Temos uma comissão de mortos e desaparecidos, criada ainda no governo FHC, que foi destruída. A comissão de anistia, a mesma coisa. Essa comissão foi tão adulterada que chegou a cometer o horror de desanistiar. Coisas absolutamente inacreditáveis aconteceram. Essa comissão funcionou durante quatro anos como uma comissão contra a anistia.

Quais os caminhos precisam ser tomados para reverter ou amenizar esse quadro de violação de direitos humanos no país?

É preciso entender que direitos humanos são fundamentais para qualquer governo que tenha um compromisso com os interesses daqueles que são os mais despossuídos. Então isto é uma exigência, é artigo primeiro. O que deve ser feito é atender urgentemente aqueles brasileiros que estão a margem de tudo.

Restaurar a saúde por exemplo. Esse Ministério da Saúde juntou tanto militar que parecia mais um quartel. Os especialistas de infraestrutura e logística cometeram uma tragédia ao ponto de termos pessoas sem vacinas (enquanto estava estocado) no Ministério um lote imenso de vacinas que por vencer e outras que já venceram.

O Ministério de Educação tratou muito de interesses menores de pastores, desde corrupção com ouro e por aí vai. Então é muito o que fazer.

O que mudou com relação à defesa dos direitos humanos quando comparamos o Brasil da ditadura militar com o Brasil do governo Bolsonaro?

No tempo da ditadura militar, em determinado momento a população tomou consciência do que estava acontecendo e, agora, não. Vejo um país anestesiado porque ainda há manifestação na frente de quarteis em nome da democracia pedindo intervenção militar. Então é um disparate, de onde sai essa gente? De onde saem os 58 milhões de votos que o Bolsonaro teve? Isto é muito preocupante, porque, de repente, vamos ter um bolsonarismo sem Bolsonaro.

É preciso criar uma consciência, politizar o povo brasileiro. Aqui do lado, na Argentina ou no Uruguai, esta afronta aos direitos humanos não aconteceria. Haveria uma rebelião popular. No Brasil, as pessoas calam e até repetem esse discurso contra os direitos humanos.

Qual o peso do passado do país, em especial dos tempos da ditadura militar, para a configuração desse cenário? A falta de reparação histórica e o próprio processo de anistia têm impacto nessa realidade?

Tem. Eu venho, ao longo da vida, não só estudando esta questão da ditadura, mas muito vivendo isso, do alto dos meus 84 anos. Esta fragilidade que temos, uma democracia capenga, é porque, no Brasil, não houve transição mas sim uma transação. Digo que houve uma transação e provo. Não tenho nenhuma informação privilegiada, provo com fatos.

Eu volto lá em 1961, quando da renúncia do Jânio Quadros, devendo assumir a presidência o vice-presidente legitimamente eleito, o João Goulart, que estava numa visita oficial na China. Jango começa a voltar ao Brasil pela rota do Pacífico. Aqui no Rio Grande do Sul do governador Leonel Brizola inicia-se um processo de resistência, porque os militares não concordavam que João Goulart assumisse. Começa aqui o Movimento da Legalidade. O Brizola inicia uma resistência, cria a Cadeia da Legalidade, e torna inviável este ensaio de golpe.

Goulart está em Montevidéu esperando os acontecimentos. Um grupo sai de Brasília para negociar com ele. Foi um grupo para negociar que Goulart assumiria a presidência, mas se mudaria o sistema de governo, de presidencialista para parlamentarista. Significa que o presidente reina, mas não governa. É o primeiro ministro quem governa. Essa comitiva é muito interessante, uma das suas figuras principais chamava-se Tancredo Neves. Havia outras figuras, como o então coronel Ernesto Geisel. E Goulart aceitou a negociação. Quem foi o primeiro ministro? Tancredo Neves, que era uma figura aceita pelos militares.

Então Goulart volta à Brasília, assume a presidência, mas quem governa é Tancredo. Com muita habilidade, Goulart convoca um plebiscito para que o povo decidisse se queria permanecer no parlamentarismo ou voltar ao presidencialismo. A volta ao presidencialismo ganhou de lavada. Ele retoma os poderes presidenciais e depois há o golpe de 64.

Aí vem toda uma trajetória de escuridão. Quando se inicia o maior movimento de massa da história do país até hoje, as Diretas Já. Este país pegou fogo, o povo foi pra rua. No Congresso, com maioria do partido da ditadura, a Arena, a emenda das Diretas Já foi derrotada. A ditadura não permitiu que a emenda fosse aprovada. Impediu para, logo a seguir, num colégio eleitoral, eleger como presidente da República alguém identificado como da oposição. Quem era esse? Tancredo Neves.

A ditadura bancou Tancredo. De novo, por que razão? Aquela mesma de 61, aceito pelos militares. A tal da transação.

 

 

Tancredo surpreende inclusive os militares e morre. Isso não tinha sido combinado. Como não havia assumido, teria que haver nova eleição. Mas aí aparece o comandante do Exército, o general (Leônidas) Pires Gonçalves, e diz que consultando o livrinho, o livrinho seria a Constituição, quem assumiria seria o (José) Sarney, o vice. Mas ele não tinha assumido, nenhum deles tinha assumido, então necessitaria uma nova eleição. Mas eles não queriam saber de nova eleição e assumiu o Sarney.

A história registra, não é segredo. Houve esta transação que permanece vigente até agora, até agora.

Quem mais ou menos ousou discordar um pouco dos militares foi a Dilma Rousseff ao criar a Comissão Nacional da Verdade.

Agora a imprensa registra de que já está havendo uma negociação. Foram criadas várias comissões de transição, importantíssimas, menos a do Ministério da Defesa para não irritar os militares. Já se cogita de um ministro civil mas simpático aos militares. Não consigo entender isso. Diz a Constituição que o comandante em chefe das forças armadas é o presidente da república. As Forças Armadas, o seu princípio fundamental é a dinastia e a hierarquia deve funcionar, mas parece que já estão de novo numa transação.

Se não superarmos isso não vamos ter nunca uma democracia sólida e que não sofra sobressaltos, como passamos agora, a cada passo alguém já achava que havia um golpe militar.

 

 

Em meio a todo esse poder atemporal militar que permeia o Brasil, na tua avaliação, existem condições para que o país, mesmo que simbólica e postumamente, possa punir quem torturou e matou nos 21 anos da ditadura?

Este é o problema fundamental: a impunidade. Tivemos ditadura na região, mas os países aqui, Argentina, Uruguai, Chile, inclusive o pequeno Paraguai, souberam que era necessário punir aqueles que cometeram crimes de lesa humanidade, e isso aconteceu. Ainda neste momento temos na Argentina mais de 400 militares cumprindo pena, o golpista general Jorge Rafael Videla morreu na prisão. E aqui ninguém foi punido.

Temos ido buscar fora do Brasil a punição. Trabalhei desde dezembro de 2019 até o ano passado na punição de militares brasileiros envolvidos na Operação Condor (articulação das ditaduras do Cone Sul nos anos 1970/80 para eliminar opositores). Havia um grupo de 12 militares e um delegado civil aqui do Rio Grande do Sul. Começamos o processo em dezembro de 1999 e, ao longo dos anos, os envolvidos foram morrendo. A sentença estava prevista para outubro do ano passado mas, em agosto, morreu o último réu, coronel Átila Rohrsetzer.

 


Jair com os uruguaios Universindo Díaz e Lilian Celiberti, no início dos anos 1980, recém-libertos após sequestro em Porto Alegre e prisão pela ditadura do país vizinho

Foto: Arquivo Pessoal

 

Em novembro passado, abrimos um processo na justiça federal da Argentina no caso do desaparecimento do militante Edmur Pericles Camargo. Está prosperando. Aqui não adianta nada, não prospera. O próprio STF entendeu que a Lei de Anistia vale para aqueles agentes do Estado, civis ou militares, que cometeram crimes diretos de lesa humanidade.

A Dilma, por exemplo, porque bancou a questão da Comissão da Verdade, teve sérios problemas com os militares. Eles não a perdoam. E isto foi, talvez, um dos elementos que levaram ao seu impeachment. É difícil você imaginar que aqui, mesmo que tardiamente, se pudesse punir estes militares que ainda estão vivos que foram envolvidos em crimes de lesa humanidade. Essa decisão do Supremo é um absurdo jurídico.

Tem companheiros nossos da luta por direitos humanos que querem uma reinterpretação da Lei de Anistia. Eu digo não. Temos que fazer uma interpretação correta. Não é reinterpretação. É a interpretação correta porque está escrito.

A Argentina puniu os agentes que cometeram crimes de lesa humanidade, o Uruguai puniu, o Chile tem punido, continua punindo. Aqui, em alguns processos, a Justiça Federal tem alegado prescrição quando os crimes de lesa humanidade são imprescritíveis. É da legislação e da doutrina internacional.

Acho muito difícil uma punição. Acho que seria mais importante políticas públicas de memória. Dizer quem fez o quê. Contar essa história e mostrar que houve no Brasil um terrorismo de Estado. Às vezes, dizem que (o delegado Sérgio) Fleury foi um grande bandido, e foi mesmo. Mas o Fleury cumpria ordens, era um peão desta máquina. O terrorismo era uma política de Estado.

 

 

Em meio a isso tudo, como comunicar às novas gerações a importância dos direitos humanos, visto a campanha sistemática dos últimos anos que vincula direitos humanos com a defesa de bandidos?

Estou trabalhando muito sobre essa questão porque acho que falhamos. Estou me dando conta que a nossa geração que enfrentou a ditadura está morrendo. Não conseguimos empolgar a juventude. Ela não sabe nada e por quê? Porque a escola não fala sobre isso, a academia, a nossa universidade, não fala sobre isso. Então, há uma ignorância. A juventude não se engaja como no Uruguai, na Argentina, por falta de informação. E, aí sim, é uma política pública de desinformação, é uma política pública de assassinato da memória. É isso que existe.

 


Jair com a presidente de Madres de Plaza de Mayo, Hebe de Bonafini, em agosto de 2022
Foto: Arquivo pessoal

 

Não soubemos enfrentar isso. Criar mecanismos, espaços, enfim, para enfrentar este problema e fazer chegar à juventude estas informações. O Movimento de Justiça e Direitos Humanos, muito preocupado com isso, produziu alguns livros. Mas o brasileiro não lê. Então partimos para os documentários.

Agora, começamos uma série sobre a Operação Condor, em capítulos. Já temos três capítulos no ar, um que conta o que foi a Operação Condor, depois as vítimas. Já temos oito capítulos gravados. São umas pílulas de pequena duração, 5 ou 6 minutos. Tem especialistas na área que nos dizem que mais do que isso o pessoal não vê também. Vamos fazer outros, tudo via Youtube, aquela telinha que brilha e tal, justamente buscando alcançar a juventude.

Vou te contar uma coisa. Foi antes da pandemia. Fui numa escola de segundo grau, que um professor me convidou, pra falar sobre o golpe militar. Iniciei dizendo assim: “Vocês sabem que no Brasil, em 1964, houve um golpe militar?” Silêncio absoluto, ninguém sabia. Então, bato no peito: é um erro nosso, fomos incompetentes, não soubemos enfrentar isso.

 

 

Essa questão que vincula direitos humanos à defesa de bandidos, a ditadura brasileira usou muito. Um dos aspectos da guerra psicológica foi trabalhar, especialmente com comunicadores, de que direitos humanos só defende bandido. E isto foi muito bem trabalhado, dentro do estilo clássico de uma guerra psicológica, de criar uma opinião pública, uma postura, sem parar para pensar. Tu não imaginas alguém chegar na Argentina e fazer um discurso contra os direitos humanos. Vai ser linchado até pela direita. Porque é um absurdo. É contra a civilização. No Uruguai, no Chile, a mesma coisa.  

No exterior, não imaginas a dificuldade para explicar o Brasil. Como explicar o Brasil racionalmente? Tem coisas aqui que a nossa vã filosofia não alcança, e aí eu volto: esses 58 milhões de votos do Bolsonaro de onde saiu isso? Um cara que desgraçou o país - e qualquer pessoa com cinco neurônios é capaz de entender. Ando muito chateado. Dediquei o melhor da minha vida para lutar contra a ditadura. Então, quando olho o Brasil de hoje, começo a pensar: "Puta que pariu, o que é que eu fiz?" É ruim, é muito ruim, mas vamos lutar. Não sei fazer outra coisa e, como eu não sei fazer outra coisa, vou continuar.

 

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