A suspensão da Operação Carro-Pipa. ‘Quando o Brasil se libertará da indústria da seca?’. Algumas análises

Pesquisadores comentam a suspensão da Operação Carro-Pipa e os desafios do governo eleito em relação ao abastecimento de água no semiárido

Foto: Alex Pimenta | Diário do Nordeste

29 Novembro 2022

A suspensão da Operação Carro-Pipa, que leva água potável para 1,6 milhão de famílias no semiárido nordestino, pelo governo federal na semana passada, 21-11-2022, por falta de recursos, “mostra como o governo que está saindo é desorganizado, incompetente e não tem sensibilidade alguma para com os pobres deste país”, diz o geógrafo Pedro Costa Guedes Vianna ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo ele, a suspensão do abastecimento “certamente vai causar problemas a muitas famílias no semiárido, mas é também um alerta para a população se levantar e buscar soluções de longo prazo e mais sustentáveis para segurança hídrica”, uma vez que essa política de abastecimento, critica, “é muito ruim pelo seu caráter assistencialista”.

O engenheiro agrônomo João Suassuna destaca que a medida lança um desafio aos governos dos estados que eram abastecidos pela Operação Carro-Pipa. A decisão, menciona, exigirá “empenho e articulações políticas necessárias, a fim de que a transposição das águas do Velho Chico comece a atingir os seus reais objetivos, entre eles, o de abastecer 12 milhões de pessoas no Nordeste seco. Será uma tarefa árdua e extremamente difícil de ser realizada, tendo em vista a falta de recursos financeiros nos estados, situação agravada pelo processo de mudança no governo federal”.

Crítico deste modelo de política de abastecimento, o engenheiro João Abner Guimarães Júnior comenta que a Operação Carro-Pipa do governo Bolsonaro “absorveu o Programa Um Milhão de Cisternas, que era voltado para uma questão de cunho social e ambiental. Quer dizer, as cisternas, que eram obras para armazenar a água da chuva, passaram a ser reservatórios de abastecimento para receber água dos carros-pipa”.

Nas entrevistas a seguir, concedidas por e-mail e telefone, os especialistas também comentam os principais desafios do governo eleito em relação à gestão hídrica e de abastecimento no semiárido. Na avaliação de Vianna, o desafio inicial “será reconstruir toda uma política hídrica para o semiárido, que foi destruída nos últimos seis anos” e “um dos grandes desafios será integrar as grandes obras hídricas, tipo a transposição das águas do Rio São Francisco, com as inúmeras ações afirmativas de convivência com o semiárido representado, por exemplo, pelo Programa Um milhão de Cisternas e seus derivados que construíram uma rede imensa de pequenas obras de forma capilar por todo o sertão nordestino”.

Para Guimarães Júnior, o dilema é “saber quando o Brasil vai ter chance de se libertar da indústria da seca. Esta é a grande questão. Como vamos poder fomentar uma discussão política para enfrentar essa situação? Estou curioso para conhecer as diretrizes da política para o semiárido do novo governo Lula”, afirma. 

Confira as entrevistas.

Pedro Costa Guedes Vianna é geógrafo formado pela Escola de Geografia da Associação dos Geógrafos Brasileiros e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutor em Geografia Física pela Universidade de São Paulo – USP. Por 19 anos foi geógrafo do organismo de gestão de águas do Estado do Paraná, atual Instituto Águas Paraná. É professor titular da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

IHU – Como avalia a decisão do governo federal de suspender a Operação Carro-Pipa que leva água potável às famílias no semiárido nordestino?

Pedro Costa Guedes Vianna – Com certeza, essa não é a pior decisão do governo Bolsonaro sobre o semiárido Nordestino. O desmonte, o corte de verbas e a redução forte dos programas de cisternas, por exemplo, foi muito mais grave do que isso, porque tem efeito a mais longo prazo e retira o Estado Nacional de atividades que emancipam a população local e empoderam as organizações da sociedade civil. Mas essa ação mostra como o governo que está saindo é desorganizado, incompetente e não tem sensibilidade alguma para com os pobres deste país. Esta é a principal razão de sua derrota eleitoral.

 


Mapa do semiárido brasileiro (Foto: Governo Federal)

 

IHU – Quais as implicações dessa decisão para as pessoas que vivem no semiárido, especialmente nos próximos meses?

Pedro Costa Guedes Vianna – Imagino que ela será logo – senão quase – imediatamente revogada. Se não for assim, vai durar muito pouco a “suspensão”, menos de 45 dias. Não acho que os sertanejos nordestinos morrerão de sede por esta razão. Inclusive esta é uma decisão que pode ser compensada pela ação das prefeituras, dos estados e organizações da sociedade civil. Poderá e deverá também ser anulada por outros poderes ou instâncias do Estado brasileiro. A Operação Carro-Pipa deveria ter um caráter emergencial, mas com o tempo se tornou uma política de abastecimento, o que é muito ruim pelo seu caráter assistencialista. A possível suspensão por esses dias certamente vai causar problemas a muitas famílias no semiárido, mas é também um alerta para a população se levantar e buscar soluções de longo prazo e mais sustentáveis para segurança hídrica.

IHU – Quais os desafios para o governo eleito quanto à gestão hídrica e ao abastecimento no semiárido?

Pedro Costa Guedes Vianna – Inicialmente, será reconstruir toda uma política hídrica para o semiárido, que foi destruída nos últimos seis anos, a começar pelo desgoverno de Michel Temer e continuada pelo governo de Bolsonaro. Depois disso, é imprescindível avançar na autonomia hídrica e no aumento da segurança hídrica da região, sempre tendo no horizonte que a semiaridez é natural e já sabemos que precisamos e devemos conviver com ela, não eliminá-la. A semiaridez tem seus aspectos positivos, muitas vezes desconhecidos ou relegados. Com certeza, um dos grandes desafios será integrar as grandes obras hídricas, tipo a transposição das águas do Rio São Francisco, com as inúmeras ações afirmativas de convivência com o semiárido representado, por exemplo, pelo Programa Um milhão de Cisternas e seus derivados que construíram uma rede imensa de pequenas obras de forma capilar por todo o sertão nordestino. Com certeza, dias melhores virão.

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João Abner G. Júnior

Foto: Blog Jair Sampaio

João Abner Guimarães Júnior é doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

IHU – Como avalia a decisão do governo federal de suspender a Operação Carro-Pipa que leva água potável às famílias no semiárido nordestino?

João Abner Guimarães Júnior – Esse é um tema muito complexo e tem muita coisa para falar sobre isso. O primeiro ponto a destacar é que, no governo Bolsonaro, ocorreu o maior programa de carro-pipa no semiárido. Isso tem um aspecto relevante em um sentido que não é positivo porque, no citado governo, o programa de carro-pipa deixou de ser um programa emergencial e passou a ser um programa permanente. Tanto que a grande seca terminou em 2018 e, durante esses quatro anos, o programa de carro-pipa continuou. Este ano, em que o inverno foi acima da média no Nordeste, o Exército continuou circulando com os caminhões, levando água para grande parte da população do semiárido. Essa é uma questão que merece um aprofundamento.

Outro aspecto é que o programa de carro-pipa do governo Bolsonaro absorveu o Programa Um Milhão de Cisternas, que era voltado para uma questão de cunho social e ambiental. Quer dizer, as cisternas, que eram obras para armazenar a água da chuva, passaram a ser reservatórios de abastecimento para receber água dos carros-pipa.

A justificativa para a permanência dos carros-pipa, mesmo no período chuvoso, era fornecer água potável para a população. O entendimento era que as águas locais, principalmente a própria água da chuva, não teriam condições de potabilidade. Daí a necessidade de continuar mantendo o abastecimento de água apesar das chuvas. Inclusive, um dos critérios que foi adotado é o seguinte: como a água de chuva não era potável, as famílias que quisessem receber a água do carro-pipa e se inscrevessem no programa, precisavam assumir um compromisso de desligar o sistema de captação de chuva das cisternas para não misturar a água da chuva com a água da cisterna.

Claro que eu não concordo com isso porque o programa de carro-pipa tem que ser entendido como uma política emergencial, porque a água potável do carro-pipa que está sendo distribuída no semiárido pode ser considerada uma das águas mais caras do mundo: pode chegar a até cem reais o metro cúbico. Pensando em um programa permanente de abastecimento de água potável para a população do semiárido, é um absurdo ter um programa desse tipo como permanente. Qualquer outra solução – e são inúmeras as soluções – deveria ter sido adotada para assegurar a água potável para as famílias em caráter permanente.

Alternativas

Existem soluções mais eficientes e econômicas do que o carro-pipa. Essa discussão tem que ser feita. Postos com dessalinizadores é uma solução bastante conhecida e consagrada. Pequenos sistemas de tratamento de água domiciliar, tratando e fornecendo a água para a população, é outra opção factível e tem um custo baratíssimo. Pequenas adutoras, que é o modelo que defendo mais, também é uma proposta factível. Assim como existe um sistema de ampla capilaridade de entrega de energia para toda a população, defendo que poderia existir, nos moldes do Programa Luz Para Todos, um programa de água para todos, que levasse água potável para todas as famílias do semiárido. Essa solução passa pela construção de uma grande rede de sistemas integrados, com adutoras de maior e menor porte, reservatórios setoriais. É possível ter um sistema desses e entregar água à população rural a um custo equivalente ao da energia elétrica.

Tenho uma hipótese de que essa questão da água, da seca e do abastecimento urbano é uma reserva de mercado da indústria da seca. Por isso, não se enfrenta a questão e não se resolve o problema do abastecimento, como se resolveu a questão elétrica. Se resolvessem o problema do abastecimento de água, como ficaria a defesa dessas obras superfaturadas, verdadeiros elefantes brancos que ainda estão sendo tocados no Nordeste, a exemplo da transposição do Rio São Francisco? Este é o maior impedimento: existe uma luta da indústria da seca contra a resolução do problema da seca no Nordeste. Tal luta passa por essa reserva de mercado que atende aos interesses da indústria da seca. Não é um debate fácil de ser feito. É um debate político e muito complexo.

 


Mapa da Transposição do Rio São Francisco (Foto: Ministério da Integração Nacional)

 

IHU – Quais os desafios para o governo eleito quanto à gestão hídrica e ao abastecimento no semiárido?

João Abner Guimarães Júnior – A indústria da seca se fortaleceu bastante com a chegada de Lula ao poder, haja vista o programa da transposição do Rio São Francisco, que foi iniciado no governo Lula e que é o carro-chefe da indústria da seca no Nordeste.

Na gestão Bolsonaro, a indústria da seca tomou de assalto o governo. Tanto que na época da campanha e no início do governo, Bolsonaro fez um discurso diferente, meio tecnicista, associando os problemas do Nordeste com as soluções que tinham sido adotadas em Israel, que é um argumento que às vezes aparece. Mas, logo depois, a realidade se impôs e o governo Bolsonaro foi dominado pela indústria da seca. Resta saber quando o Brasil vai ter chance de se libertar disso. Esta é a grande questão. Como vamos poder fomentar uma discussão política para enfrentar essa situação? Estou curioso para conhecer as diretrizes da política para o semiárido do novo governo Lula.

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João Suassuna

Foto: Fundação Joaquim Nabuco

João Suassuna é engenheiro agrônomo e pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco. É especialista em questões de hidrologia do semiárido.

IHU – Como avalia a decisão do governo federal de suspender a Operação Carro-Pipa que leva água potável às famílias no semiárido nordestino?

João Suassuna – Essa situação já era prevista. Ao inaugurar, em 2022, a totalidade das obras do projeto de transposição do Rio São Francisco, o governo federal entendeu que o recurso hídrico para o abastecimento das populações difusas nordestinas começou a existir no Setentrional nordestino, devendo, para tanto, cada estado da região semiárida iniciar seus projetos para a busca dessa água, dando garantias ao abastecimento de suas populações através da sinergia hídrica de suas principais represas com as águas do São Francisco.

Nesse sentido, a ajuda federal ao Programa Carro-Pipa deixou de existir e caberão, doravante, a cada governo dos estados o empenho e as articulações políticas necessárias, a fim de que a transposição das águas do Velho Chico comece a atingir os seus reais objetivos, entre eles, o de abastecer 12 milhões de pessoas no Nordeste seco. Será uma tarefa árdua e extremamente difícil de ser realizada, tendo em vista a falta de recursos financeiros nos estados, situação agravada pelo processo de mudança no governo federal. Em síntese: os estados estão falidos, os volumes hídricos existentes são preocupantes, o que exigirá atenção redobrada do novo governo que começa em janeiro vindouro.

IHU – Quais as implicações dessa decisão para as pessoas que vivem no semiárido, especialmente nos próximos dois meses?

João Suassuna – A principal implicação dessa decisão na vida das pessoas recai na questão das dificuldades na busca pela água. A gestão hídrica, que já não era tão eficiente no Setentrional nordestino, vai ter seus pilares agravados pelas dificuldades de acesso ao recurso hídrico na região. Esse cenário poderá ser ainda mais complicado em caso da ocorrência de uma seca em 2023. Sobre esse assunto, concedi algumas entrevistas ao IHU tratando desse problema.

Aqui ressalto duas delas: uma, em 2016, tratando da falta de um plano B no semiárido para o abastecimento de populações diante de uma inclemente seca que se abatia sobre a região naquele período e outra, em 2020, tratando da deficiente gestão hídrica que acabava privilegiando interesses políticos e colocando em risco a vida das pessoas. Se, porventura, o ano de 2023 for seco, não irá demorar muito para a população difusa do semiárido sentir na pele as agruras da falta d’água. Continuaremos sem alternativa de abastecimento imediato para as populações.

IHU – Quais os desafios para o governo eleito quanto à gestão hídrica e ao abastecimento no semiárido?

João Suassuna – Há necessidade de o governo eleito atentar para algumas questões básicas importantes de atendimento das necessidades hídricas das populações residentes na região semiárida. Inicialmente, é importante ressaltar os quantitativos hídricos existentes no país e a inserção do semiárido neles.

O Brasil é riquíssimo em recursos hídricos. Possui 14% da água que escoa superficialmente no planeta, além de ter uma malha potamográfica de dar inveja. Só que a distribuição dessa água no território nacional deixa muito a desejar: 79% desses recursos estão localizados no Norte do país, em regiões com baixa demografia. Existe muita água para a satisfação de pouca gente. O Nordeste brasileiro possui apenas 3% desses recursos, dos quais 70% estão localizados na bacia do Rio São Francisco. Não foi outra a razão de as autoridades terem partido em busca dessas águas, com o projeto de transposição.

Nesse sentido, é de bom termo tecer comentários sobre as fontes hídricas disponíveis no território nordestino, a fim de facilitar a compreensão da sociedade para o melhor uso dos recursos hídricos.

Águas interiores

O Nordeste brasileiro tem cerca de 70 mil represas. Esses reservatórios acumulam cerca de 37 bilhões de metros cúbicos de água. É o maior volume de água represado em regiões semiáridas do mundo. O Estado do Ceará, por exemplo, tem a maior represa do Nordeste, o Castanhão, com capacidade de 6,7 bilhões de metros cúbicos. O Rio Grande do Norte possui a segunda maior represa, a Armando Ribeiro Gonçalves, com cerca de 2,4 bilhões de metros cúbicos. A Paraíba possui o complexo de represas Coremas/Mãe D’água, ambas com 1,2 bilhões de metros cúbicos. Quando bem manejadas, essas represas poderiam fornecer água de boa qualidade para o atendimento das populações residentes no semiárido desses estados, por gerações.

Quando um rio é represado, ele passa a escoar em seu leito, a jusante da barragem, o que, em termos hidrológicos é denominado de vazão de regularização, cujo entendimento conceitual é fundamental para determinar os limites de usos das águas represadas. Esses limites não podem ultrapassar, em hipótese alguma, o valor da vazão regularizada estabelecida pelo barramento, sob pena de a represa vir a entrar em exaustão. Foi a desobediência a esse conceito hidrológico que, em 2017, ao final do ciclo seco compreendido entre 2012-2017, provocou, em praticamente todas as represas nordestinas, a depreciação de seus volumes de forma drástica. As que não secaram por completo alcançaram volumes mortos, ou seja, ficaram com seus espelhos d’água abaixo da linha de tomada d’água para os abastecimentos estabelecidos, sendo necessário, em tais casos, o uso de flutuadores para o acesso ao precioso líquido restante nas represas.

Águas do São Francisco

O Rio São Francisco escoa superficialmente em cerca de 60% do território semiárido brasileiro. Essa condição geográfica imprime aos seus tributários a condição de temporariedade. Esses rios interrompem seus cursos em períodos secos, sem chuvas.

Com as construções das represas de Três Marias e Sobradinho, visando à regularização volumétrica do São Francisco, o rio passou a ter suas vazões artificiais. Três Marias deflui atualmente, para o leito do rio, uma média de 400 m³/s e Sobradinho, uma média de cerca de 1.100 m³/s.

Os problemas de gestão hídrica na bacia do Velho Chico não são diferentes daqueles apresentados nos barramentos. Segundo dados obtidos junto à Companhia Hidrelétrica do São Francisco – CHESF, o rio São Francisco é detentor de uma amplitude de variação volumétrica bastante acentuada (há registros em sua bacia hidrográfica de 595 m³/s em período seco e 20.000 m³/s no período das águas).

Essas características preocupavam, sobremaneira, os responsáveis diretos pela geração de energia da região, que precisavam contar com uma vazão diária firme e segura. A solução encontrada pelo setor elétrico foi a construção de Sobradinho, inaugurada em 1979 (represa com 34 bilhões de m³ de capacidade), que regularizou a vazão média diária do rio, ao longo do Submédio e do Baixo São Francisco, em cerca de 2.060 m³/s.

Apesar de ter solucionado em parte os problemas da significativa amplitude de vazões e da regularização dos volumes, Sobradinho também criou um problema adicional: as vazões do São Francisco passaram a ser artificiais, dependentes da ação humana, através da abertura e do fechamento de comportas. Essas manobras necessitam de critérios com bases científicas, para a promoção de uma gestão hídrica mais eficiente e segura à continuidade do atendimento das demandas dos usuários da bacia.

As barragens também prejudicaram o fenômeno da piracema, uma vez que interromperam a subida dos peixes nas corredeiras para a desova, o que reduziu a sua reprodução na bacia do rio. As represas foram construídas em cima das corredeiras e os técnicos não encontraram meios para solucionar o problema da interrupção da ida e vinda dos peixes, o que acarretou o desaparecimento do pescado, principalmente do surubim, peixe de piracema e símbolo da bacia do rio São Francisco.

A vazão média regularizada, estabelecida no rio pela represa de Sobradinho, resolveu temporariamente os problemas de geração de energia do Nordeste que, no entanto, continuou a se desenvolver, e os volumes do rio voltaram a ser insuficientes para atender às crescentes demandas energéticas da região (crescimento estimado de 2% acima do PIB regional). Desta forma, o consumo de mais volumes do São Francisco se tornou progressivo.

Atualmente, as vazões médias regularizadas do rio, medidas em sua foz, são de cerca de 1.850 m³/s e com tendências ao declínio. O que tem ocorrido na realidade em sua bacia hidrográfica é a ausência quase que completa de uma gestão qualificada, cujos efeitos têm levado o caudal a situações vexatórias, principalmente o da insegurança hídrica para o atendimento aos diversos usos a que o rio é submetido.

Eixo Leste: as águas da transposição não estão chegando ao destino

Segundo as autoridades responsáveis pelo projeto de transposição na Paraíba, a água do São Francisco só será bombeada em caso de emergência. Particularmente, fico com enorme curiosidade de saber o que as autoridades paraibanas entendem por “só em caso de emergência”, quando da chegada das águas do São Francisco em Campina Grande. A represa de Boqueirão de Cabaceiras, que abastece Campina Grande e 18 municípios de seu entorno, está com sua capacidade útil em cerca de 22,4% apenas (25-11-2022).

Isso já não seria considerada uma situação de emergência para o atendimento a uma população de cerca de um milhão de pessoas? Venho denunciando essas questões há bastante tempo e não se toma nenhuma providência a respeito. É preciso um maior esclarecimento ao povo campinense, do porquê dessa interrupção do projeto naquela região do estado, principalmente agora que as chuvas só voltam a ocorrer na bacia do Rio Paraíba, em fevereiro do ano que vem. Afinal, o contingente populacional da região é bastante significativo, situação que é agravada, ainda, por uma demanda hídrica que não para de crescer.

O Eixo Leste atende prioritariamente as necessidades hídricas (abastecimento) das regiões agrestes dos estados de Pernambuco (municípios da bacia do Rio Ipojuca) e da Paraíba (Campina Grande e mais 18 municípios de seu entorno), havendo, também, previsão de abastecimento da região do Brejo paraibano e do agronegócio estadual, por intermédio do projeto Acauã-Araçagi, na chamada Vertente Litorânea do estado. O canal da referida Vertente, com 112,4 km de extensão, levará águas do Açude de Acauã (atualmente abastecido pelo Velho Chico) para o rio Camaratuba, na altura do município de Curral de Cima, integrando, dessa maneira, as bacias hidrográficas existentes nesse percurso.

Durante o governo Lula, quando das negociações dos destinos das águas da transposição, o então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, reivindicou o aproveitamento de parte dos volumes do Eixo Leste no próprio estado alegando que “Pernambuco não iria servir, apenas, de aqueduto na passagem das águas sanfranciscanas pelo seu território, para posterior uso dos paraibanos”. A solicitação de Campos resultou na proposta do Ramal do Agreste, visando o suprimento hídrico de municípios localizados na bacia do Rio Ipojuca, que passavam, à época, por sérias dificuldades.

Com o agravamento da crise de abastecimento no país e com as negociações do Ramal do Agreste já em andamento, o governo pernambucano, em 2018, com recursos próprios, iniciou a construção da Adutora do Moxotó, com captação das águas também no Eixo Leste da transposição, visando antecipar o fornecimento para os municípios de Sertânia, Arcoverde, Pesqueira, Brejo da Madre de Deus, Belo Jardim, Alagoinha, Tacaimbó, São Bento do Una, Sanharó e Custódia. A referida adutora, atualmente operando com uma média volumétrica de bombeamento de cerca de 0,45 m³/s, uma vez concluído o Ramal do Agreste (já inaugurado pelo governo federal desde 19-02-2021), será interligada a este, nas imediações da Estação de Tratamento de Águas do município de Arcoverde, dando continuidade ao abastecimento dos municípios da bacia do Ipojuca, com uma vazão estabelecida de 8 m³/s.

Adutora do Cariri na Paraíba

Em junho de 2021, o governador da Paraíba, João Azevedo, anunciou que seu governo havia obtido recursos necessários para a construção da nova Adutora do Cariri, que abastecerá quase todas as cidades localizadas naquela microrregião paraibana. O investimento, no valor de 80 milhões de dólares, será financiado através de empréstimo junto ao Banco Mundial. A adutora terá uma extensão de 358 quilômetros e captará as águas das barragens de Poções (30 milhões de m³, localizada em Monteiro) e de Camalaú (48 milhões de m³, situada no município de mesmo nome). Ambas as represas fazem parte do circuito das águas do Eixo Leste da transposição e estão interligadas por válvulas dispersoras de volumes, com as quais se podem abastecer as regiões à jusante dos reservatórios. Segundo dados da Aesa (novembro de 2022), a represa de Poções se encontra com cerca de 91,19% de sua capacidade e a de Camalaú com 55,81%. A totalidade desses percentuais é consequência direta das chuvas ocorridas recentemente na bacia do Rio Paraíba em 2022, já que o projeto da transposição se encontra momentaneamente paralisado no estado. Portanto, uma eficiente gestão hídrica será de grande valia para os residentes da região do Cariri com as águas dessas represas, notadamente o Campinense, no enfrentamento dos dias de penúria hídrica que estão por vir, uma vez que os volumes da transposição não estão chegando à represa de Boqueirão de Cabaceiras, cuja capacidade útil de armazenamento vem sendo reduzida paulatinamente, estando, atualmente, em cerca de 22,40%.

Águas de Subsolo

Outro desafio a ser considerado é a irrigação praticada sobre o aquífero Urucuia, na bacia do Rio São Francisco, Oeste da Bahia (região de ampliação da fronteira agrícola nacional). Trabalhos do hidrogeólogo José do Patrocínio Tomaz Albuquerque dão conta do uso exacerbado das águas desse aquífero, um dos mais importantes da bacia do rio São Francisco, cujas vazões de base são responsáveis por mais da metade da vazão do Velho Chico que aflui à represa de Sobradinho. Além disso, pesquisa recente, realizada pelas universidades federais de Viçosa, do Rio de Janeiro e do Oeste da Bahia, chegou à conclusão de que o uso sem o menor controle das águas do Urucuia resultou no rebaixamento do lençol freático do aquífero, em cerca de 6,63 m, o que tem interferido sobremaneira no regime volumétrico do rio São Francisco.

Em 2017, por exemplo, a irrigação praticada sobre esse aquífero interferiu sobremaneira nos fluxos volumétricos (volumes de base) verificados em direção à calha do Velho Chico, a ponto de prejudicar o regime de alguns de seus afluentes, a exemplo do Verde Grande e do Paracatu, que interromperam seus fluxos naquele ano, tornando-se temporários. Esse fato, somado ao ciclo seco ocorrido na região entre 2012 e 2017, resultou em uma afluência muito baixa na represa de Sobradinho, de apenas 290 m³/s. Naquele ano de 2017, a citada represa alcançou a incrível marca de cerca de 1,98% de sua capacidade útil, obrigando o poder público a defluir, dela, volumes mínimos de cerca de 554 m³/s, a fim de evitar sua exaustão. Na época, todos os usos realizados no Submédio e Baixo São Francisco foram mitigados, com muita dificuldade, através desses 554 m³/s de fluidos em Sobradinho.

Pouca água para muita demanda

O projeto de transposição foi concebido para retirar do Rio São Francisco cerca de 127 m³/s, sendo 28 m³/s no Eixo Leste e 99 m³/s no Eixo Norte. Ocorre que o sistema de bombeamento atualmente implantado no projeto retira do rio apenas 23 m³/s, sendo 14 m³/s no Eixo Norte e 9 m³/s no Eixo Leste. Com essas características de bombeamentos, torna-se imprescindível a ampliação dos bombeamentos, principalmente no Eixo Leste, por conta das demandas hídricas existentes na Paraíba e em Pernambuco que não param de crescer, as quais estão sendo agravadas pela interrupção da transposição naquele eixo.

Os atuais programas de abastecimento, paraibanos e pernambucanos, justificam por si essa preocupação. A grande adutora do Curimataú paraibano, por exemplo, foi projetada com uma vazão de 5,8 m³/s e o programa Vertente Litorânea no mesmo estado, com uma vazão de 10 m³/s. Em Pernambuco, a Adutora do Agreste foi projetada com uma vazão de 8 m³/s. Portanto, os projetos hídricos acima citados foram programados para retirar 23,8 m³/s de um eixo que bombeia, do São Francisco, apenas 9 m³/s, ficando claro, com isso, que o atendimento das demandas hídricas nos estados de Pernambuco e da Paraíba foi projetado para operar no vermelho.

Gestão hídrica eficiente é a palavra de ordem

Fica claro nesse relato que o Eixo Leste do projeto de transposição do São Francisco tem graves limitações volumétricas para o atendimento das demandas hídricas nos estados da Paraíba e de Pernambuco, que não param de crescer. Essa problemática, aliada à deficiente gestão hídrica nesses estados, certamente irá comprometer a busca e os usos futuros das águas em parte do setentrional nordestino. Nesse sentido, medidas urgentes de otimização dessas variáveis precisam ser postas em prática, de forma a garantir a necessária segurança hídrica da população difusa do semiárido nordestino. Nunca é demais lembrar que “água” é um bem natural finito e sua busca deve ser realizada com muito planejamento e seu uso, com a parcimônia devida.

 

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