Na superação do enigma das revoltas de 2013 reside a compreensão das necessidades para uma vida melhor. Entrevista Especial com Roberto Andrés

Para o professor, ainda não compreendemos plenamente o que levou uma multidão às ruas, e se não olharmos urgentemente além de uma maquiada recuperação econômica viveremos traumas que golpearão a já frágil democracia

Durante as jornadas de 2013, uma das imagens icônicas foi a escalada do prédio do Congresso Nacional por manifestantes | Foto: arquivo Agência Senado

Por: João Vitor Santos | 15 Julho 2022

 

O cenário econômico e social do Brasil de 2012 e 2013 era muito diferente do atual. Programas sociais galgavam conquistas que levavam à emancipação de muitas famílias, vivíamos praticamente em estado de pleno emprego, PIB lá em cima e inflação controlada, mais acessos a universidades, facilidades para aquisição de imóveis e até para comprar ou trocar de carro. Ainda assim, em junho de 2013 uma legião se levantou para protestar contra aquilo que não era dito nos bons indicadores, mas que perturbava. Isso fez com que muitas pessoas, inclusive em setores da esquerda, não compreendessem essa explosão. Para o urbanista e professor Roberto Andrés, é preciso fazer memória àquele junho porque ainda não compreendemos o que passou e suas consequências. “Esse enigma de 2013 segue nos desafiando até hoje e talvez ele talvez ele diga respeito a como nossa sociedade enxerga e analisa seu próprio funcionamento”, aponta.

 

Na entrevista a seguir, concedida através do envio de áudios pelo WhatsApp, Andrés ainda detalha questões que vinham sendo problemáticas e que impediam uma melhor qualidade de vida já antes de 2013. São, por exemplo, as lutas urbanas por moradia, melhor qualidade de transporte público e direito à cidade. “São as questões que afetam a vida cotidiana e de alguma maneira como nós organizamos o conhecimento para olhar para essas questões”, avalia. Ou seja, para ele, há pontos da vida concreta e da necessidade diária das pessoas que passavam em branco. “Ninguém foi capaz de prever revoltas como aquelas de junho de 2013. E não foram capazes de prever justamente por se olhar para aspectos muito específicos das métricas sociais que dizem respeito a alguns indicadores macroeconômicos. Percebe-se que tais indicadores não são capazes de traduzir toda complexidade das formas de vida e das relações sociais”, diz.

 

Por isso, aponta como fundamental que revivamos essa memória de 2013 e tentemos realmente compreender o caldo das revoltas. “E, justamente pelo fato de governos, analistas e imprensa não terem sido capazes de prever e compreender as razões de fundo daquelas revoltas, nós seguimos até hoje olhando para aquele momento com perplexidade. Isso dificulta, inclusive, nossa compreensão histórica dos desafios que foram colocados ali e que continuam sendo relevantes para o debate público brasileiro”, acrescenta.

 

Enfrentar esses problemas também não deve ser visto como uma forma de evitar manifestações autônomas. Não se trata disso, que aliás é salutar no ambiente democrático. O problema é não identificar esse clamor, deixá-lo se transformar em revolta e desesperança e ser cooptado por uma extrema direita oportunista e que, ainda sem resolver essas questões, implode todo o ambiente democrático. “Esses problemas precisam ser enfrentados. A melhoria de vida de uma maneira mais completa pode se dar, num primeiro momento, somente por uma recuperação econômica, numa atuação mais funcional do Estado. Mas ela precisa também ser transferida para outros aspectos da vida cotidiana”, resume. E exemplifica: “se nós não tivermos solução para o transporte, não é possível ter o bem-estar de uma população cada vez mais urbana, moradores de grandes metrópoles. Em algum momento, isso vai voltar e cobrar seu preço”.

 

Roberto Andrés (Foto: Arquivo pessoal)

 

Roberto Andrés é graduado e mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Também é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, pesquisador do grupo Cosmópolis (CNPQ) e revisor do Journal of Public Spaces. É coorganizador dos livros "Guia Morador" (2013), "Escavar o Futuro" (2014) e "Urbe Urge" (2018). Foi, ainda, um dos fundadores da revista Piseagrama, e coeditor entre 2011 e 2020.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como o cenário político nacional é reconfigurado a partir das marchas de 2013?

 

Roberto Andrés – O ciclo global de revoltas que aconteceu entre 2009 e 2013 alterou profundamente a configuração política. Isso se deu em diversos países e foi assim também com as revoltas de junho de 2013 no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, o ciclo político anterior às revoltas globais, iniciadas em 2009, era marcado por aquilo que alguns cientistas políticos chamam de consenso de centro. Foi uma situação em que as forças de direita e de esquerda haviam se aproximado do centro e entrado em acordo sobre certas políticas de austeridade ou certo caminho de redução da participação do Estado e de precarização dos serviços sociais etc. Isso levou a um acirramento da desigualdade nesses países, o que se explicitou muito fortemente com a crise econômica de 2008.

 

 

Dessa maneira, as revoltas que vêm em seguida explicitam e acabam por contribuir para o encerramento desse ciclo de consenso de centro e inaugurar um novo ciclo em que a agenda política está mais radicalizada; e que nós iríamos conhecer nos anos seguintes. Mas aquele momento trouxe, então, o povo de volta às ruas, com multidões ocupando praças, avenidas etc., reivindicando agendas mais radicalizadas para além desse consenso de centro. E começavam a apontar que o caminho que havia sido tomado globalmente nas últimas décadas tinha deixado muita gente para trás, gerado muitos insatisfeitos e estes começavam então a se manifestar de forma mais contundente e organizada.

 

Da mesma maneira no Brasil, embora nós tenhamos elementos diferentes, as revoltas de 2013 também acabaram por encerrar um ciclo. É um ciclo que poderíamos chamar de República do Real, em que entre 1994 e as eleições de 2010 a polarização se deu entre PT e PSDB e, também, uma certa dinâmica de disputa entre uma centro-direita uma centro-esquerda, forças moderadas entre as quais já havia uma série de acordos.

 

 

Peemedebismo

 

Assim, nesse caso brasileiro isso é muito marcado por esse elemento que o filósofo Marcos Nobre chama de peemedebismo. É uma cultura política arraigada de atuação de bastidores em que as oligarquias e as forças mais reacionárias sempre operaram para retardar os avanços e manter certos lugares de privilégio.

 

Dessa maneira, as revoltas de 2013 vêm questionar esse arranjo, nessa disputa entre PT e PSDB, tendo o peemedebismo como elemento organizador dela, e que impede de fato uma democratização. A partir de 2013, da mesma maneira que ocorre em outros países, no Brasil a disputa política passa a se dar de uma maneira muito mais radicalizada entre agendas que apontam tanto para um lado quanto para outro, colocados de forma muito mais contundente e, de alguma maneira, deixando de funcionar esse consenso de centro que também acabou por operar aqui de uma maneira diferente dos outros países onde isso é analisado.

 

 

IHU – De que forma essa geração de 2013 olha o Brasil de hoje? Aliás, por onde esses protagonistas de 2013 andam agora em 2022?

 

Roberto Andrés – Primeiro, é preciso que seja dito que a geração de 2013 é múltipla. Ela foi justamente marcada por isso, por ativistas que atuavam nos movimentos de moradia e contra as remoções da Copa do Mundo, por pessoas do campo autonomista que participam das lutas pelo transporte, por grupos mais ligados à cultura, por grupos diversos que reivindicavam o uso dos espaços urbanos e direito à cidade, por manifestantes avulsos que foram para a avenida sem organização prévia para reivindicar melhores serviços de educação, saúde, contra a corrupção etc. Ou seja, essa geração é muito diversa e não foi para as ruas de uma forma organizada, com lideranças estabelecidas. Inclusive, a forte presença da cultura autonomista, anarquista, nessa geração faz com que a própria ideia de protagonista, de liderança fosse muito questionada, embora, obviamente, esses atores existissem.

 

 

É importante lembrar que, depois de 2013, parte dessa geração e desses grupos que seguiu nas ruas se mobilizando contra a Copa do Mundo e outras situações foi fortemente reprimida a partir de um acordo amplo, de diversos partidos, Executivo, Legislativo e Judiciário, mídia e empresariado. Isso fez uma pressão muito expressiva contra essas manifestações, com centenas de manifestantes presos, muita violência policial, violação de direitos humanos etc. Sem falar em capas de jornais e toda uma repressão que fez com que muitos desses ativistas se afastassem da luta política nos anos seguintes.

 

 

Isso gerou um saldo de redução nas esquerdas, déficit de forças políticas graças a essa repressão e acabou resultando no vácuo das ruas, que seriam ocupadas pela direita nos anos seguintes.

 

IHU – Que lutas urbanas foram possíveis até a eclosão de 2013? E como o senhor observa essas lutas atualmente?

 

Roberto Andrés – Minha pesquisa de doutorado é sobre o período anterior a 2013, e tem o título “A Razão dos Centavos – crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013”.

 

 

Há uma emergência de lutas que ocorrem a partir de 2009 - e que são objetos da minha tese - com muita força em diversas capitais brasileiras. São lutas pelo direito à cidade. É um campo de lutas que não tem um histórico tão forte no Brasil. Na história do país foram raras as vezes em que ocorreram fortes mobilizações pelos direitos de espaços público, pelo direito a decidir como a cidade deve avançar, lutas contra o rodoviarismo, o excesso de automóveis, as avenidas, os viadutos, a favor da proteção de árvores, a favor da preservação de praças. E esse tipo de mobilização emergiu com força no ciclo iniciado em 2009.

 

Além dessas, também vimos lutas pela proteção de rios, mananciais, córregos, áreas verdes etc. Elas foram representadas, por exemplo, pelo movimento Ocupa Estelita, mas também pela Praia da Estação em Belo Horizonte, o Churrascão da Gente Diferenciada em São Paulo, pelo Movimento do Largo Vivo em Porto Alegre e vários outros.

 

 

Enfim, esses movimentos tiveram um impulsionamento inédito naquele momento e acabaram marcando uma disputa por formas de vida no período anterior a 2013. Em 2013, durante as Revoltas de Junho, isso foi ainda fortalecido por lutas da pauta do transporte, organizadas pelo movimento Passe Livre e, também, por frentes locais que foram grupos de diversos movimentos contra o aumento das tarifas. Além disso, foram muito ativos os movimentos contra os impactos da Copa do Mundo, organizados em torno dos comitês populares da Copa. Esses eram organizações da esquerda, de Direitos Humanos, grupos de defesa de moradia que se reuniram para atuar contra o impacto das obras de megaeventos que desalojaram famílias, degradaram centros urbanos e criaram uma série de problemas principalmente para a população mais pobre.

 

 

Bem, esse é o foco de minha pesquisa, mas além dele há diversos movimentos que emergem de uma maneira muito forte – veja a Marcha da Maconha, Marcha das Vadias, Movimento Fora Feliciano. Há, assim, uma constelação de lutas que na tese chamo de “lutas de fronteira”, usando o termo criado pela filósofa Nancy Fraser. O conceito diz respeito a lutas que estão nas fronteiras entre a economia capitalista e as condições de fundo que são necessárias para que aquela economia funcione, mas que são corriqueiramente denegadas e delas são extraídos valores sem reposição.

 

 

De modo que essas lutas de fronteira foram mal compreendidas por justamente não dizerem respeito às relações entre capital e trabalho, mas entre as diversas desigualdades de condições de vida. São lutas que buscam a preservação das condições de fundo que as sociedades capitalistas tendem a desestabilizar recorrentemente.

 

 

IHU – Quais eram as questões que envolviam a sociedade brasileira naquele período de 2013 e como compreender as questões de fundo que levaram à explosão daquela revolta?

 

Roberto Andrés – As revoltas de 2013 talvez sejam o evento mais mal compreendido da história do Brasil. Nicolau Sevcenko dizia algo similar sobre a Revolta da Vacina, mas talvez atualizasse a sua avaliação se tivesse vivenciado esse momento de 2013. O período anterior a 2013 foi de grande otimismo, e um otimismo baseado em índices econômicos e macroeconômicos favoráveis. Isso vem desde 2007 com o crescimento do Produto Interno Bruto ano a ano, taxa de desemprego baixíssima, com pleno emprego no Brasil praticamente até 2012 ou 2013, inflação sob controle; tudo isso deu um otimismo grande para a sociedade, junto ao entusiasmo com a realização dos megaeventos internacionais no país.

 

No entanto, a revolta eclodiu. Como explicar uma revolta que eclode quando os indicadores apontam para um cenário otimista? Talvez haja um problema nos indicadores que olhamos hegemonicamente, pois eles não abordam diversos fatores que dizem respeito à vida cotidiana, principalmente nos centros urbanos, e esses conflitos entre as sociedades capitalista e as condições de fundo. Essas condições de fundo, segundo Nancy Fraser, são o meio ambiente, os serviços públicos e tudo aquilo que se chama de reprodução social.

 

 

Assim, essas condições de fundo foram sendo desestabilizadas continuadamente, por exemplo, com a degradação das condições de vida nas cidades, poluição gerada pelo modelo de desenvolvimento, degradação da Amazônia por grandes hidrelétricas, piora dos níveis de serviços urbanos, aumento das tarifas e do tempo de deslocamento no transporte público, degradação da qualidade das cidades. Tudo isso interfere na vida cotidiana, diz respeito a aspectos importantes das rotinas, dificulta ou pode impedir a emancipação. No entanto, nada disso é contabilizado nos números que geram os indicadores macroeconômicos.

 

Assim, essa surpresa de 2013 também se dá por esse descompasso entre análise e realidade social. Pode ter havido uma pequena redução do PIB ou pressão da inflação nos anos anteriores a 2013, mas ainda assim o Brasil tinha índice econômicos considerados positivos; em comparação com países como Espanha, Estados Unidos e Grécia, em que a taxa de desemprego estava nas alturas, a situação brasileira era de céu de brigadeiro. Esse enigma de 2013 segue nos desafiando até hoje e talvez ele diga respeito a como nossa sociedade enxerga e analisa seu próprio funcionamento. Trata-se de questões que afetam a vida cotidiana e como organizamos o conhecimento para olhar para elas.

 

 

IHU – Por que o governo, à época, não foi capaz de auscultar a revolta sendo gestada? Em que medida isso impactou na reação às manifestações de junho de 2013?

 

Roberto Andrés – Não só o governo, mas os analistas, a imprensa, os pesquisadores, ninguém foi capaz de prever revoltas como aquelas de junho de 2013. E não foram capazes de prever justamente por aquilo que eu dizia há pouco. Ou seja, por se olhar para aspectos muito específicos das métricas sociais que dizem respeito a alguns indicadores macroeconômicos. Percebe-se que tais indicadores não são capazes de traduzir toda complexidade das formas de vida e das relações sociais. Aliás, entre a própria sociedade e as condições de vida nesse planeta, que precisam ser analisadas se quisermos compreender a dinâmica social de uma maneira mais completa.

 

E, justamente pelo fato de governos, analistas e imprensa não terem sido capazes de prever e compreender as razões de fundo daquelas revoltas, nós seguimos até hoje olhando para aquele momento com perplexidade. Isso dificulta, inclusive, nossa compreensão histórica dos desafios que foram colocados ali e que continuam sendo relevantes para o debate público brasileiro. São desafios ligados à vida em grandes centros – serviços públicos, transporte, moradia, qualidade de vida nas cidades, democratização da vida cotidiana.

 

É possível enxergar uma denegação das revoltas de junho de 2013, em que as razões delas são consideradas desimportantes e o movimento é considerado algo voluntarista, despropositado. Há, inclusive, quem fale em manipulação internacional, coisas muito malucas que cientistas sociais mais sérios nem levam em consideração, mas que a gente vê pautando o debate público. De todo modo, seguimos com o enigma porque seguimos sem levar a sério as principais questões que foram a razão daquelas revoltas, fazendo com que milhões de pessoas acabassem indo às ruas num cenário que, para muitos, parecia favorável.

 

 

IHU – Muitos se surpreendem que no Brasil de 2022, de crise econômica e social, ameaçado com a volta da fome e aturdido com desmonte de estruturas estatais e democráticas que já pareciam consolidadas, não se veja explosões como àqueles de 2013. Por que 2013 não se repete em 2022?

 

Roberto Andrés – 2013 não se repete em 2022 porque a História não se faz de forma linear e tampouco a partir de elementos óbvios. Muitas vezes a História prega peças em quem busca alguma linearidade em sua condução. A história das revoltas está salpicada de eventos que aconteceram não nos momentos de maior crise, mas nos momentos em que a sociedade teve uma certa elevação de expectativas e, no entanto, essa elevação não foi continuada. Ou em que certos descompassos entre as expectativas da sociedade e os caminhos dos governos se explicitam.

 

 

Tivemos, depois de 2013, uma série de protestos no Brasil; o ciclo de 2015, a Primavera Feminista, ocupações nas escolas, tivemos uma onda de protestos à direita, durante a pandemia tivemos uma série de protestos contra Bolsonaro, quer dizer, há uma série de movimentações. Mas, há, também, um cansaço de muitos setores que faz também com que nenhuma dessas mobilizações tenha explodido como naquele momento em 2013.

 

 

Na época, parecia haver um certo conflito entre o desenvolvimento adotado e as expectativas cada vez mais presentes da sociedade. Mas, de outro lado, um certo empoderamento da sociedade visto que havia ocorrido uma elevação de patamar, com relação aos anos anteriores, que permitiram com que ele explodisse. Essas grandes explosões e revoltas sociais são momentos raros que acontecem pela combinação de fatores específicos. As grandes revoltas não são inteiramente explicadas pela Economia, basta ver grandes momentos de fome, privações e carestias que não geram grandes revoltas. As revoltas, quando acontecem, dizem respeito a esses momentos específicos da História em que o encontro entre expectativas sociais, limites do governo, aspirações, modos de organização da polarização política se dá.

 

 

IHU – Como você observa as relações – e até os choques – no que identifica, em sua pesquisa de doutorado, como “formas de vida privatista” e “aspiração por formas de vida democráticas e baseadas em direitos” pós-revoltas de 2013 e até os dias atuais?

 

Roberto Andrés – Eu enxergo as razões das revoltas de 2013 num conflito entre formas de vida, ou entre duas tendências que foram levadas a cabo no Brasil desde a redemocratização e que foram intensificadas na Nova República e, ainda, intensificadas de forma mais forte pelo lulismo. De um lado, uma tendência de forma de vida privatista que o Brasil herda da sua tradição autoritária, elitista e hierárquica e que foi acentuada pela ditadura. Quando se chega na redemocratização, essa tendência é marcada por um movimento das elites rumo aos condomínios, fugindo das cidades, dos espaços públicos, da convivência com os mais pobres, se privatizando e fechando em bolhas isoladas da vida cotidiana da maioria. Segue na tendência das elites de migrar para educação privada, saúde privada, automóvel particular, toda uma tendência de uma forma de vida que não é compartilhada e que é exclusivista, vide a grande proliferação de shoppings centers no Brasil.

 

 

Essa tendência é acompanhada por um fechamento político e econômico, toda a blindagem que o sistema político fez para não se democratizar de fato e de setores da sociedade e da economia que conseguiram se blindar. É o caso, por exemplo, dos empresários de transportes, que criaram mecanismos para manter seus serviços precários, mal prestados e, no entanto, sem sair desse seu lugar de conforto. Também o caso das montadoras de automóveis que conseguiram enormes benesses ao longo da Nova República sem precisar compartilhá-las com outros atores da cadeia produtiva e sem gerar grandes quantidades de empregos. Isso, aliás, foi acompanhando a desindustrialização do Brasil.

 

Todos esses setores que se mantiveram nessa tendência privatista acabaram gerando um status quo que acabou entrando em choque com as aspirações mais democráticas. E, aqui, eu falo dessa outra tendência, que é a tendência democratizante que vem dos movimentos pelas Diretas Já, e tem uma forte presença na Assembleia Nacional Constituinte em 1987, em que milhares de pessoas passaram a participar de reuniões, movimentações, coleta de assinaturas para abaixo-assinados de projetos de lei como grande movimentação progressista da sociedade.

 

No lulismo

 

Essa tendência democratizante teve grande força durante o lulismo, com a inclusão econômica, aumento do acesso à educação superior, da difusão da cultura via políticas culturais democratizantes etc. Tudo isso criou uma geração que passou a almejar outras formas de vidas, baseadas em direitos, no compartilhamento das cidades, em serviços públicos de qualidade, na mobilidade urbana democrática e inclusiva.

 

Foi inevitável que tudo isso entrasse em choque com a tendência privatista. Choque esse que pode ser visto naquele ciclo de lutas entre 2010 e 2013 de uma maneira muito marcante, tanto nas revoltas de junho quanto nos eventos que aconteceram antes ou depois dela.

 

IHU – Nesse sentido, podemos também compreender esse momento como uma luta de classes?

 

Roberto Andrés – É possível compreender as lutas de fronteiras como disputas entre classes, porque elas dizem respeito a uma maioria que se revolta contra problemas gerados por uma minoria que se beneficia economicamente desses problemas. Então, quando pensamos na população que luta contra o aumento da tarifa, estamos falando de uma maioria da população que se beneficiaria de uma tarifa de ônibus mais baixa, de um transporte público de melhor qualidade. Mesmo as pessoas que não usam se beneficiariam disso diretamente, pois teriam melhoras, como trânsito melhor, menos poluição etc. Todas essas pessoas estão contra uma minoria, que são os empresários de transportes, que mantêm uma lógica expropriatória dos serviços que deveriam prestar como serviços públicos.

 

Da mesma maneira, é fácil ver luta de classes em um movimento como o Ocupa Estelita. Afinal, o coletivo se move contra a construção de torres e a descaraterização de um patrimônio histórico no Recife, defendendo uma maioria que se beneficiaria da manutenção do patrimônio histórico e da conversão do Cais José Estelita em um espaço de uso coletivo. De outro lado, está uma minoria que se beneficiou da construção das torres e dos negócios imobiliários gerados.

 

 

Então, sim estamos falando de lutas de classes. Mas, não necessariamente das lutas entre capital e trabalho, porque elas não dizem respeito a pessoas que trabalham numa fábrica cobrando melhores condições de salário. Estamos tratando das lutas de fronteira e que dizem respeito a diversos aspectos da vida cotidiana. Há, aí, uma luta de classes urbana, ligada à vida cotidiana, que diz respeito a como a maioria da população acaba por ser excluída de processos decisórios que favorecem interesses de uns poucos. Trata-se de ir contra, também, a captura do Estado por interesses privados, o que marcou aquele período.

 

 

IHU – Em uma possível vitória de Lula nas próximas eleições, é possível revermos esse choque entre privatistas e aqueles que buscam a vida democrática?

 

Roberto Andrés – Acredito que esse é um dos desafios muito importantes de um futuro governo Lula, depois dos desafios mais imediatos que são sobreviver às eleições, assumir o governo e ter uma governabilidade mínima sem estar refém da pior parte da política brasileira – que é o centrão de Arthur Lira, Ciro Nogueira, esse tipo de gente que está aí para abocanhar fatias cada vez maiores do orçamento público.

 

O avanço da extrema direita no mundo não se dá gratuitamente. Ele se dá também graças a diversos problemas que os modelos de desenvolvimento geraram e como a política tradicional dos países nas últimas décadas não foi capaz de encaminhar esses problemas. Por falta de perspectiva de solução para esses problemas, muita gente adere aos votos de protesto, beneficiando aqueles que não trazem soluções, mas ao menos colocam a culpa em alguém, como é o caso do atual presidente brasileiro.

 

 

Esses problemas precisam ser enfrentados. A melhoria de vida de uma maneira mais completa pode se dar, num primeiro momento, somente por uma recuperação econômica, numa atuação mais funcional do Estado. Mas ela precisa também ser transferida para outros aspectos da vida cotidiana. Se nós não tivermos solução para o transporte, não é possível ter o bem-estar de uma população cada vez mais urbana, moradores de grandes metrópoles. Em algum momento, isso vai voltar e cobrar seu preço.

 

A história brasileira é salpicada de revoltas pelo transporte. Essas revoltas se deram de tempos em tempos, sempre ocorreram e vão voltar a ocorrer enquanto esse serviço não for pensado como um serviço público. No Brasil, o transporte foi historicamente abordado como um business, e enquanto seguir dessa maneira não haverá para a população brasileira uma solução real para seus deslocamentos cotidianos. Não tardará para que as revoltas voltem a acontecer.

 

Da mesma maneira, outros aspectos da vida cotidiana, como a justiça e a qualidade de vida nas cidades, se não forem solucionados, operam como uma barreira para a ascensão social. É preciso que a inclusão econômica seja acompanhada de melhorias efetivas na vida cotidiana, até para que ela seja sustentável.

 

 

Looping de risco

 

É muito desafiador, mas enquanto o campo progressista e a esquerda no Brasil não conseguirem implementar um modelo de desenvolvimento em que caibam todas as pessoas de fato, em que as condições de vida sejam de fato melhoradas para além da renda, nós vamos continuar nesse looping de risco, de erosão dos projetos democráticos. E tudo isso se agrava num momento de acentuação da crise climática, em que todos esses problemas da vida cotidiana se acentuam com os eventos climáticos extremos e com a piora das condições de vida nos territórios.

 

IHU – Quais são os riscos de uma universalização de itens de luxo, num cenário de aparente melhora das condições de vida? Como isso pode inebriar o debate sobre a cidade, a esfera pública e a segregação?

 

Roberto Andrés – Itens de luxo são desenhados para que poucas pessoas possam ter. Se todas as pessoas tiverem esses itens, eles perdem seus atributos mais valorosos. Foi o que aconteceu com o automóvel, que foi desenhado como item de luxo para que banqueiros e industriais pudessem circular com velocidade, distinção e fazer suas corridas esportivas lá no final do século XIX. A partir do momento que esse item se torna de consumo universal, a partir da massificação que vem da indústria de Henry Ford nos Estados Unidos, na primeira década do século XX, começa a aparecer uma série de problemas que são decorrentes justamente do aumento e massificação de algo que nasceu para ser restrito.

 

 

O automóvel é extremamente perdulário no uso do espaço, de modo que as ruas da cidade passaram a ficar congestionadas. É um item cuja velocidade não é compatível com os outros usos das ruas. Quando muito carros passam a circular pelas ruas, eles geram acidentes, além da poluição. É um item que vai degradando as condições de vida coletiva e vai deixando de entregar a posse de valor original dele, já que a velocidade deixa de ser praticada porque o trânsito se congestiona.

 

Essa universalização, no caso do automóvel, foi levada a cabo ao longo de 100 anos nas cidades do mundo todo e ela fez com que fosse gerada uma grande degradação dos centros urbanos por justamente colocar no centro da política de mobilidade algo que não poderia ser universalizado. Os impactos são tremendos hoje: nós temos sete milhões de pessoas que morrem no mundo por poluição do ar e grande parte disso por poluição gerada por veículos. Temos mais de um milhão de pessoas que morrem no mundo por acidentes de trânsito. Temos uma grande contribuição dos veículos motorizados para as emissões que geram a crise climática. Todos esses impactos são resultado de algo que não foi pensado como um direito, mas como um privilégio. Trata-se de uma dinâmica engenhosa porque, de fato, quanto mais pessoas compram carros, menos os carros atendem a proposta de valor original deles.

 

 

Círculo vicioso

 

A adequação da cidade para os automóveis acaba degradando as condições de vida pedestre ao espalhar os territórios, tornar as distâncias mais longas, tornar as condições de “caminhabilidade” piores, tornar o transporte público mais lento. E o curioso é que todos esses impactos gerados pelo excesso de carros fazem com que as pessoas busquem justamente comprar um carro para fugir desses problemas. De alguma maneira, a solução alimenta o problema e gerou esse círculo vicioso difícil de ser solucionado no curto prazo, mas que precisa ser encarado se quisermos estabelecer condições de vida saudáveis, tempos de deslocamento nas cidades adequados, maior qualidade do ar e mesmo frear a crise climática.

 

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