“Uma das tarefas da filosofia é lutar contra a ‘superprodução do poder’, procurando limitá-lo, freando os seus avanços”. Entrevista especial com Rossano Pecoraro

"Pasolini nos ensina que é preciso defender a sociedade contra o poder. Mas atenção, não apenas do poder que vem do outro, do inimigo político ou acadêmico, do ‘outro lado’, do partido ou do grupo que não é o nosso, mas também e sobretudo do poder ao qual, por razões ideológicas ou culturais, estamos de algum modo ligados", diz o filósofo italiano radicado no Brasil

Foto: Reprodução

Por: Patricia Fachin | 11 Fevereiro 2022

 

Muitos foram e são os intérpretes da obra de Pier Paolo Pasolini, cineasta, escritor e poeta italiano que viveu entre as décadas de 1920 e 1970. Entre as diversas abordagens que propõem explicar e explicitar a compreensão do italiano da realidade de seu tempo, destacam-se as temáticas da fome, das desigualdades sociais, da pobreza, da diversidade, da militância política e social, ou a crítica à burguesia, à religião, à igreja, ao fascismo e à democracia italiana da época. Embora todas essas categorias expressem aspectos do pensamento de Pasolini, de algum modo, elas se transformaram "num 'supermercado', no qual cada um pega o que lhe serve sem respeitar o sentido das teses e das argumentações pasolinianas, que não raramente são distorcidas em 'operações' intelectuais que, pelo modo de proceder, 'se assemelham à confecção das fake news' da nossa atualidade", lamenta o filósofo Rossano Pecoraro.



O Pasolini pelo qual Pecoraro se "interessa" e nos convida a "descobrir", é o "dos anos 1940 que se revolta contra a dominação linguística romanocêntrica e escreve poesias e textos em dialeto friulano e da perene tensão entre 'periferia' e 'centro'; o Pasolini do 'neoexperimentalismo', dos textos ligados à revista Officina, da coletânea Le ceneri di Gramsci e do romance Teorema; o Pasolini de Vie Nuove e da colaboração com o Corriere della Sera”.


Para descobrirmos essa versão de Pasolini, o filósofo sugere a dissolução de "clichês acadêmicos, fílmicos e sociopolíticos que aprisionam e silenciam a potência revolucionária e transformadora do 'sistema Pasolini'”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele explica: "O viés fome-pobreza-miséria-desigualdade-comunismo-fascismo-capitalismo está esgotado. Bater nas mesmas teclas – que outrora foram essenciais para legitimar e orientar lutas e resistências – não vai acrescentar muita coisa nem vai oferecer instrumentos teóricos para as novas batalhas do e no século XXI. Não estamos mais na Itália Pós-guerra nem na Europa dos anos 1960 e 1970".

 

O outro movimento necessário para compreender a produção do italiano, menciona, "diz respeito à análise crítica dos elementos ignorados ou pouco estudados da totalidade do corpus pasoliniano. A terceira operação, por fim, refere-se à coragem da verdade, à quebra de todo arqué e à necessidade de limitar e frear toda e qualquer forma de Poder". Esse novo modo de interpretar e compreender a obra, ressalta, abre uma "perspectiva nova, mais arriscada e mais radical de engajamento e prática filosófica. Trata-se da necessidade de não mais, simplesmente, criticar o poder, mas de limitá-lo, de frear os seus avanços. Trata-se de opor ao poder que impõe, manda e submete não um contrapoder (como quase sempre se fez, invertendo ou substituindo uma forma de poder pela outra), mas um poder que freia; uma espécie de katechon profano que seja capaz de deter, conter, despotencializar o poder".

 

Rossano Pecoraro (Foto: Arquivo pessoal)

 

Rossano Pecoraro é graduado em Filosofia pela Universidade de Salerno, Itália, e mestre doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Atualmente, leciona na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Unirio.

 

A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 02-05-2021.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O senhor tem um interesse específico pelos escritos de Pier Paolo Pasolini. Por quê? Que diferenças existem entre os primeiros e os últimos escritos de Pasolini?

Rossano Pecoraro - Pasolini era um homem anárquico, livre e contracorrente. Esses traços fundamentais do seu caráter, da sua inteligência e da sua percepção de mundo devem ser compreendidos no sentido mais radical possível; muito, mas muito longe das representações impostas pela cultura e pela sociedade contemporâneas que, de acordo com claros projetos de “anestesiação”, visam mercantilizar e vulgarizar, isto é, tornar acessíveis, compráveis e mensuráveis econômica e ideologicamente toda e qualquer prática de liberdade e de resistência.

No ponto de implosão desse status quo aparentemente inabalável, eu procuro arremessar o evangelho explosivo de Pasolini, que era um homem anárquico, livre e contracorrente, justamente porque nunca abandonou a coragem da verdade (a famosa parresia grega), nem traiu as suas ideias e os seus ideais. A sua existência, a morte, as obras, os processos, as polêmicas, os sucessos e os fracassos são o inexorável testemunho dessa honestidade intelectual, dessa luta perene contra a hipocrisia social e humana e contra a opressão de toda forma de poder. Ele pagou um preço altíssimo, que beirou os limites do humanamente suportável, por ser e se manter indefinível, não rotulável, obsessivo em seu rigor ético-social. Estamos diante de elementos cruciais, que nem sempre são destacados com a devida radicalidade, mas que no meu caso têm motivado, e orientado, a releitura daquilo que em outras ocasiões chamei de “sistema Pasolini” cuja potência hermenêutica busca ir além das divisões e subdivisões canônicas que – como sempre acontece toda vez que um ato transgressor e revolucionário é de alguma forma institucionalizado – aprisionam a força disruptiva da sua obra.

Deve-se a esse prisma genealógico e categorial, um tanto distorcido talvez, um pouco radical demais talvez, o meu escasso interesse em empreender análises reconstitutivas das eventuais fases da produção pasoliniana. Há outras razões, obviamente. A primeira é que existem inúmeros materiais (livros, artigos, vídeos, entrevistas etc.) em que especialistas conceituados abordam e esclarecem essas temáticas: não é necessário, creio eu, ter mais um professor fazendo isso. A segunda é que, no caso de Pasolini e da minha perspectiva filosófica sobre e desde ele, a questão das (eventuais) diferenças entre as primeiras e as últimas produções não é muito relevante. A terceira é que estamos ainda bastante distantes da compreensão do legado de Pasolini não apenas por causa da sua riqueza e complexidade, mas também, e diria, sobretudo, porque vários elementos ainda não tiveram sua importância detectada pela crítica.

 

 

Escritos literários

Penso nos seus escritos literários, ensaísticos e jornalísticos; nos apontamentos e nos fragmentos metanarrativos e antinarrativos que compõem Petrolio, publicado postumamente em 1992 e que ele, em uma entrevista ao diário italiano La Stampa (1975), definiu como “suma” de todas as suas “experiências” e de todas as suas “memórias”. Penso nos textos poéticos juvenis da década de 1940 nos quais são centrais as obsessões autobiográficas e dialetais e o interesse extremo pelas “pequenas pátrias”; nos artigos escritos mais ou menos nessa mesma época para as revistas ligadas aos universitários de direita Architrave e Il Setaccio; nos textos do Pós-guerra marcados pelo engajamento político, pela adesão ao Partido Comunista Italiano - PCI, do qual logo será expulso, e pela aproximação ao universo sociocultural e às condições de vida das periferias.

Penso, ainda, no livro Le ceneri di Gramsci (1957) e nas duras tomadas de posição contra o apoio da cúpula do Partido Comunista à invasão soviética da Hungria (uma ferida que até hoje sangra no corpo da esquerda italiana); nas atividades de vanguarda da revista Officina por ele editada na segunda metade dos anos 1950; nos textos em defesa dos povos oprimidos do Sul do mundo e da análise – excepcional – da “negritude” como “nova razão”; nas colunas assinadas no início dos anos 1970 no Corriere della Sera (o mesmo no qual escrevia Michel Foucault), o mais importante e prestigioso diário italiano da época de clara tendência burguesa e conservadora...

 


Pasolini (Foto: Reprodução)

 

IHU On-Line - Por que o senhor se interessa, particularmente, pelos últimos textos dele? O que há de peculiar nesses textos, que ainda não foi trabalhado pela crítica?

Rossano Pecoraro - Não sei lhe responder com a precisão que o seu questionamento exige. Diria, de maneira provisória e um tanto provocativa, que no “sistema Pasolini” o que me interessa é Pasolini, não as possíveis hierarquias entre fases ou momentos, nem as transformações ou mudanças de rotas literárias ou fílmicas. Não nego, é claro, que elas existam e que possam ser relevantes para a compreensão da sua obra. Mas se trata de vertentes hermenêuticas que não me atraem. Confesso que não tenho clareza sobre os motivos dessa minha “posição”. De verdade, não sei. Questiono, e me questiono, com frequência quanto à possibilidade de explicar Pasolini através das interpretações canônicas e das categorias que a cada vez o “enquadram”: marginalidade, periferia, diversidade, fome, pobreza, militância; crítica da burguesia, do fascismo, da democracia italiana dos anos 1960 e 70, da religião, da igreja, da polícia, do sistema judiciário, das desigualdades sociais etc. Repito: não que essas operações de análise e de (re)apropriação cultural estejam erradas. Muito pelo contrário. Apenas não me atraem nem satisfazem mais os meus anseios de radicalidade e de transformação social.

O que não raramente se faz com Pasolini, de resto, é uma espécie de prêt-à-porter cultural. Alguém vai lá, escolhe o que mais lhe agrada da obra dele – umas frases, um trecho, um filme, alguns frames etc. – e o usa de acordo com seus interesses imediatos. O enigma Pasolini se transformou, como disse uma vez o historiador Giovanni De Luna, num “supermercado”, no qual cada um pega o que lhe serve sem respeitar o sentido das teses e das argumentações pasolinianas, que não raramente são distorcidas em “operações” intelectuais que, pelo modo de proceder, “se assemelham à confecção das fake news” da nossa atualidade.

 

 

Tomemos como exemplo a célebre poesia “Il PCI ai Giovani” (O PCI – sigla do Partido Comunista Italiano – aos jovens) publicada em 1968 no L’Espresso após os confrontos entre estudantes e polícia no bairro romano de Valle Giulia. O evento foi um dos símbolos daqueles anos: centenas de jovens marcharam rumo à Faculdade de Arquitetura para ocupá-la; as forças policiais impediram a entrada dos militantes dando início aos confrontos, que duraram várias horas. No final do dia foram contabilizados quase 150 feridos de ambos os lados.

O longo e polêmico poema é lido até hoje a partir de dois paradigmas ideológico-políticos que consideram Pasolini

a) um traidor da causa comunista porque criticou os estudantes e simpatizou com os policiais ou

b) um lúcido companheiro que critica os erros e os “atrasos” da militância estudantil.

Ambas as interpretações são legítimas, obviamente. Mas eu as considero pouco fecundas e equivocadas. Pôr essa ou aquela etiqueta na mercadoria comprada no supermercado Pasolini não me parece ser uma operação intelectualmente interessante uma vez que, dentre outros efeitos nefastos, aprisiona, banaliza e neutraliza a força anárquica do sistema pasoliniano. “Agora os jornalistas do mundo inteiro (...) ficam lambendo as bolas de vocês”, escreve referindo-se aos estudantes, mas “eu não, meus caros. Vocês têm caras de filhos de papai. Odeio vocês da mesma forma que odeio os seus pais. Filho de peixe peixinho é. Vocês têm o mesmo olhar maldoso. Vocês são medrosos, inseguros, desesperados, mas também sabem muito bem como ser prepotentes, chantagistas, convencidos, descarados: todas prerrogativas pequeno-burguesas, meus caros. Ontem, quando vocês lutaram com os policiais eu simpatizava com os policiais. Porque os policiais são filhos de gente pobre. Eles vêm de periferias extremas, rurais ou urbanas que sejam”.

Pasolini descreve minuciosamente a miserável condição das suas famílias de origem. As fedorentas fardas “de palhaços” que são obrigados a usar, o salário de fome que recebem, a prostração psicológica dos que vivem “sem mais sorrisos, sem mais amizade com o mundo, separados, excluídos, humilhados pela substituição da qualidade de homens por aquela de policiais (o ser odiado faz odiar)”. É preciso entender que não se trata de uma apologia da “instituição policial” (contra a qual é necessário lutar), nem de uma glorificação dos pobres fardados contra a militância dos “filhos de papai”. O que está em jogo é a identificação do verdadeiro Poder que esmaga as classes sociais menos afortunadas, que continua massacrando os arrasados da terra (nesse caso os operários e o proletariado italiano).

 

Dois inderrogáveis sentimentos

Com uma lucidez e uma coragem exemplares, Pasolini mostra que o Poder não está nas mãos de um punhado de “garotos policiais”, mas na classe estudantil composta por burgueses, filhinhos de papai que brincam de guerrilha e ocupam universidades em vez de tomar o controle das fábricas e do Partido. Os ricos (estudantes) bateram nos pobres (policiais). E venceram. A grande imprensa (burguesa e conservadora) os idolatra; “lambe as suas bolas”, puxa o saco... E faz isso, é claro, porque esses estudantes são seus “filhos”, representam o seu futuro e a “sua esperança”. O “movimento estudantil” conhece realmente uma coisa só: “o moralismo do pai juiz ou profissional liberal, o vandalismo conformista do irmão mais velho (naturalmente bem instruído pelo pai), o ódio para a cultura que a sua mãe possui”. Trata-se, acusa Pasolini, de um conhecimento que é aplicado através de “dois inderrogáveis sentimentos: a consciência dos seus direitos (sabemos que a democracia só considera vocês) e a aspiração ao poder”. As palavras de ordem dos estudantes se concentram sempre na “tomada do poder”. Nas suas “barbas” e na “palidez” dos seus rostos, ele lê “ambições impotentes”, “esnobismos desesperados” e um “anticomunismo” visceral. “Parem de pensar nos seus direitos; parem de ansiar o poder”, sentencia Pasolini: “Um burguês redimido deve renunciar a todos os seus direitos e banir de sua alma, uma vez por todas, a ideia do poder”.

 

Centralidade do poder

O poema não termina com essa frase. Há ainda muitos versos e muitos movimentos de revolta. Mas acredito que nos entendemos sobre o sentido da minha leitura do “sistema Pasolini” e na centralidade da questão do poder. É uma questão que se coloca, mas isso não significa, como explicava Foucault, que nós a tenhamos colocado. Pelo contrário, ela se colocou, ela nos foi posta pelo tempo de agora e pelos resquícios de um passado recente. Pasolini nos ensina que é preciso defender a sociedade contra o poder. Mas atenção, não apenas do poder que vem do outro, do inimigo político ou acadêmico, do “outro lado”, do partido ou do grupo que não é o nosso, mas também e sobretudo do poder ao qual, por razões ideológicas ou culturais, estamos de algum modo ligados. Lembrando mais uma vez Foucault (conferência de 1978 A filosofia analítica do poder): o Filósofo é, em sua própria essência, um “antidéspota”. O Filósofo e a Filósofa, é claro; não as suas infelizes caricaturas da atualidade que costumamos definir – para “empregar uma desprezível palavra contemporânea” – como “intelectuais”. Nesse sentido, uma das tarefas da filosofia, talvez a mais elevada e virtuosa, é lutar contra a “superprodução do poder” (expressão de Foucault).

A partir daí uma perspectiva nova, mais arriscada e mais radical de engajamento e prática filosófica, começa a ser delineada e posta à prova. Trata-se da necessidade de não mais, simplesmente, criticar o poder, mas de limitá-lo, de frear os seus avanços. Trata-se de opor ao poder que impõe, manda e submete não um contrapoder (como quase sempre se fez, invertendo ou substituindo uma forma de poder pela outra), mas um poder que freia; uma espécie de katechon profano que seja capaz de deter, conter, despotencializar o poder.

IHU On-Line - Como o senhor interpreta o último filme de Pasolini, Salò? Que problemas político-filosóficos são abordados nessa obra?

Rossano Pecoraro - Salò é uma obra-prima sobre a natureza do ser humano e a ambiguidade do poder. O filme foi lançado oficialmente há 46 anos, em 1975, poucas semanas depois do assassinato de Pasolini. Desde então, rios de opiniões e análises – antropológicas, sociológicas, literárias, filosóficas, psicanalíticas, sócio-políticas etc. – têm inundado o cenário cultural (não só italiano ou europeu), ora idolatrando as mensagens comunistas e antifascistas do filme, ora cuspindo anátemas e desprezo sobre o fio condutor violento, sádico e masoquista da narração pasoliniana, ora destacando a centralidade “biopolítica” do poder sobre os corpos, ora vomitando juízos moralistas de ínfimo calão. Não entrarei no mérito, por evidentes razões de tempo, contexto e propósitos pessoais, dessas perspectivas que confluem naquilo que poderíamos chamar, canonicamente, de história crítica do cinema (das interpretações de um filme ou da produção de um cineasta, quero dizer). É mais interessante, creio, concentrar os nossos esforços nos dois tópicos que mencionei no início.

 

 

A perversa e violenta natureza do homem

Salò é uma obra-prima porque revela o quão perversa e violenta é a natureza do homem no momento em que a razão (logos) eticamente orientada é destruída ou é tornada ineficaz; no momento em que nada é feito, ou nada é possível fazer, para contrastar a libido (Freud), opor-se às manifestações da pulsão sexual na nossa vida psíquica. Pasolini disse numa autoentrevista publicada no Corriere della Sera em 25 de março de 1975, que queria representar “o sexo como uma metáfora do poder”. Mas esse é somente um primeiro aspecto do filme.

Outras perspectivas vêm à tona nas tensões fílmicas entre planos de conjunto/planos médios e os primeiros e primeiríssimos planos, valorizadas pela excelente direção de fotografia de Tonino Delli Colli. Destacaria, por exemplo, a cumplicidade e a conivência entre vítimas e carnífices: o poder não está somente nas mãos dos quatros donos da autoridade suprema (o duque, o banqueiro, o juiz, o monsenhor), mas também – a partir da metade do filme isso se torna um pouco mais claro – nas mãos e no raio de ação físico e emocional dos submissos e das submissas. A primeira cena de violência do filme é “protagonizada” não por um soldado nem por um dos quatros poderosos fascistas, mas por um jovem colaboracionista que do nada toma a decisão que irá agradar aos seus senhores, isto é, a de humilhar e estuprar uma das meninas que estavam servindo à mesa.

Os enquadramentos que Pasolini decide utilizar demonstram com uma clareza exemplar a atração, a cumplicidade, diria até a paixão entre vítimas e carnífices. Lembro-me de dois momentos: o beijo entre o Duque (o ator Paolo Bonacelli) e um dos meninos – um beijo apaixonado, com uma troca de olhares e sorrisos quase angelical que o cineasta consagra através de um par de primeiros planos de rara beleza – e o sexo entre o Monsenhor (o ator Giorgio Cataldi) e o seu amante – onde Pasolini retrata com maestria o desejo e a vontade de domínio, os sobressaltos dos dois corpos entrelaçados, as carícias e as trocas de posição na cama e no chão, a intensidade ancestral do gozo e os afagos e as juras de amor antes do “carnífice” ir embora. Salò, como o próprio Pasolini disse, é um filme já montado enquanto está sendo filmado, que foi pensado para beirar a perfeição e para ser “exato como um cristal”.

 

 

Esse cristal perfeito reflete também a ambiguidade, a sedução e a potência (inaudita e paradoxalmente indizível) do poder. Trata-se do motivo condutor da nossa entrevista, não é? A questão do poder. Das suas manifestações. Da sua ubiquidade. Da necessidade e da urgência da sua contenção no tempo de agora. Salò nos permite pensar o impensável; convoca-nos diante do enigma da anarquia do poder, que Pasolini intuiu sem ter chance de aprofundar ou desenvolver quando comentou pouco antes de ser assassinato: “Nada é mais anárquico do que o poder...”

IHU On-Line – Como avalia, de outro lado, a filmografia de Pasolini? Que ideias ele queria expressar através de sua produção?

Rossano Pecoraro - Posso estar equivocado, mas filmes são produtos, às vezes geniais, às vezes ridículos, de situações não necessárias (no sentido aristotélico), isto é, de situações que são frutos de um conjunto de elementos acidentais, desordenados, específicos, contingentes... A compreensão do “sistema Pasolini” – e, obviamente, da sua filmografia – deve passar pela sua obra literária, teatral, poética, pictórica e jornalística. Confesso que os seus filmes – com algumas exceções como Salò, Uccellacci e Uccellini (Gaviões e Passarinhos), O evangelho segundo São Mateus, Accattone, talvez Teorema – nunca me despertaram grande interesse filosófico.

Adoro cinema, melhor, assistir filmes em casa (porque a experiência física nas salas de projeção chamadas “cinemas” sempre foi para mim uma experiência terrível), mas creio que não devemos baixar a guarda diante da idolatria consumista e capitalista (capitalismo hipócrita e “caviar” da pior espécie) que envolve a “sétima arte”. Complementando uma das respostas anteriores, o Pasolini que me interessa e que convido a descobrir é o Pasolini dos anos 1940 que se revolta contra a dominação linguística romanocêntrica e escreve poesias e textos em dialeto friulano e da perene tensão entre “periferia” e “centro”; do Pasolini do “neoexperimentalismo”, dos textos ligados à revista Officina, da coletânea Le ceneri di Gramsci e do romance Teorema; do Pasolini de Vie Nuove e da colaboração com o Corriere della Sera. O fio condutor é esse.

Aliás, eu tenho uma paixão, à qual um dia espero poder dar voz, pela “paixão” de Pasolini pelas imagens e pelas artes figurativas. É o aspecto estético da realidade que está em jogo. É a questão dos signos que ela emana. Fabien Gerard talvez tenha razão quando afirma que “um culto excepcional para toda forma de signos, que remetem de modo fetichista à realidade carnal do mundo, marca toda a obra de Pasolini”. Essa paixão, ou culto, não se revela somente nos filmes obviamente, nem inspira e orienta apenas a escrita poética, literária e jornalística. Ela se concretiza, de maneira ainda pouco estudada, também no corpus pictórico do artista Pasolini. Quando falei da minha paixão pela sua paixão pelas imagens e pela arte, estava me referindo a isso. É algo fantástico que foi desenterrado do esquecimento graças ao trabalho do pintor e crítico de arte italiano Giuseppe Zigaina. São mais de duzentas obras – desenhos, retratos, autorretratos, naturezas mortas, nus femininos – criadas entre os anos 1940 e 1975 e que retratam um percurso iniciado nos anos 1930, quando o jovem Pasolini se matricula na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha e começa a assistir às aulas de Roberto Longhi, um dos mais importantes historiadores da arte da Itália.

 

IHU On-Line - Pasolini identificava uma homogeneização cultural e linguística na Itália de seu tempo, promovida pela cultura de massa. Essa homogeneização cultural contribuiu, de algum modo, para a crise de pensamento que se percebe hoje?

Rossano Pecoraro - Antes de tudo deveríamos nos entender sobre o significado desses termos. Não sei se é possível numa entrevista e, aliás, nem sei se isso seria de alguma utilidade teórica para avançar na análise do “sistema Pasolini”.

Em primeiro lugar, estamos longe demais da Itália daquela época. A revolução digital, a única, autêntica revolução social e científico-tecnológica da história recente da humanidade, ampliou de uma forma radicalmente nova o hiato que separa o presente do passado, as gerações dos anos 2000 das gerações de seus avôs. Cinquenta ou sessenta anos são uma eternidade, não mais o espaço de crítica ou de superação que marca um par de gerações.

Em segundo lugar, há uma questão de arqueologia social e filosófica relacionada aos termos que norteiam a sua pergunta. Com efeito, qual é o sentido, hoje, de expressões como “cultura de massa”, “homogeneização cultural”, “homogeneização linguística”, “crise de pensamento”? Começaria, rapidamente, por essas duas últimas, só para termos uma noção da complexidade e dos desafios desses contextos.

Acredito que você se lembre de uma nossa recente entrevista, em que critiquei o uso da palavra “crise” para definir o estado atual da filosofia e da cultura uma vez que, para usar uma frase “fashion”, o “buraco é muito mais embaixo”.

 

Falência do pensamento

O que vivenciamos hoje não é uma crise, mas a falência, a bancarrota, com muita probabilidade fraudulenta, da filosofia e do pensamento do tempo de agora. Não vou me deter sobre as razões e os argumentos desse meu diagnóstico para não ser repetitivo e não abusar da paciência de quem nos lê. Somente gostaria de acrescentar que talvez a “crise” não esteja ligada a essa “homogeneização” cultural da qual falamos que, aliás, possui pouca ligação com o sentido e as perspectivas que Pasolini procurou traçar na Itália pós-rural, “cattocomunista”, olhada de través pelos parceiros europeus mais desenvolvidos (sobretudo Alemanha e França) e atravessada por tensões que contribuirão para o nascimento e a consolidação do terrorismo e da luta armada de extrema esquerda (Brigadas Vermelhas) e de extrema direita (Ordine Nuovo e outros grupos neofascistas) que ensanguentaram o país entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 1980.

 

Silenciamento das identidades linguísticas

No que diz respeito à homogeneização linguística, Pasolini não era contra a língua italiana, mas contra o processo de silenciamento das identidades linguísticas e, portanto, culturais, de vastas comunidades locais ou regionais. Essa crítica e essa luta, porém, não são totalmente universalizáveis nem são fáceis de compreender já que dizem respeito a uma realidade histórica, social, política e linguística muito peculiar. A Itália política é uma criação recente (em 1961 se comemoraram 100 anos de sua unificação), assim como a Itália social, cultural e econômica. Não existe uma língua italiana. Existe a língua, ou o dialeto florentino, falado pela elite culta de Florença, que por uma série de razões se tornou hegemônico na Modernidade e acabou por prevalecer sobre outras línguas ou dialetos – friulano, milanês, romano, napolitano, siciliano, sardo etc., – que são falados até hoje e que possuem uma riqueza incrível e uma história secular. Não vou me estender muito, mas sem esse contexto (que resumi de maneira brutal), é praticamente impossível entender o significado da luta linguística pasoliniana.

 

Cultura de massa

Quanto à “cultura de massa”, o ponto de partida interessante poderia ser o de nos perguntarmos qual é o seu grau de culpa, cumplicidade ou conivência na deriva autoritária (não só político-institucional), na violência e no embrutecimento ético e cultural que parecem caracterizar o nosso tempo. Confesso que não tenho clareza sobre o seu destino e, portanto, sobre a sua culpabilidade uma vez que, apenas para dar um exemplo bastante simples, ela é em sua origem o produto de uma revolta sacrossanta contra a maneira de considerar a cultura e o conhecimento desenvolvido pelas elites dominantes.

Enfim... O BBB é cultura de massa na veia. É merchandising total; regressão narcísica; catarse moral de dúbio valor. Todavia – se adequadamente estudado – aponta para traços libertários e pedagógicos de extremo interesse, que se revelam através da maneira com a qual os participantes lidam com as questões morais e sociais que surgem na casa e da reação e do posicionamento individual e coletivo dos espectadores (pensem no BBB 2021: no “caso” Lucas e no “caso” Rodolfo, nas condutas e na militância de Karol Conka, Lumena e Nego Di, de um lado, e de Camilla e João, de outro, nas atitudes do “desconstruidão” Fiuk, de Gil ou de Juliette, no jogo de Viih Tube e por aí vai).

Na tentativa de aprofundar um pouco mais a reflexão a partir da sua pergunta, podemos investigar a questão da homogeneização social/cultural através da concepção pasoliniana de fascismo. O tema foi abordado em muitos textos escritos entre 1962 e 1975, recentemente publicados em um livro editado pela Garzanti. Um dos fios condutores dessa consistente produção teórica diz respeito às transformações da noção, que passa a indicar não somente o fascismo político e institucional representado pelo regime de Mussolini, mas também todas as formas (sociais, culturais, comunitárias etc.) nas quais se manifesta a “prepotência do poder” típica da civilização do consumo da época em que ele escreve. Os textos pasolinianos são geralmente lidos como uma dura crítica da hegemonia do partido da Democracia Cristã - DC e do capitalismo egoísta, massificante e manipulador. Todavia, eles vão além disso, pois guardam uma radicalidade de pensamento e ação nem sempre percebida. Tomemos como exemplo o escrito publicado pela primeira vez em 1974 no Corriere della Sera e conhecido ora com o título Il potere senza volto (O poder sem rosto), ora com o título Il vero fascismo e quindi il vero antifascismo (O verdadeiro fascismo e, portanto, o verdadeiro antifascismo).

Pasolini trata de um novo poder, um poder (ainda) sem rosto que dissolveu o equilíbrio entre as culturas que formam uma nação e cujo objetivo, quase totalmente alcançado, é “homologar” culturalmente a Itália. Trata-se de uma “forma total de fascismo” que transforma o cidadão (ou o que resta dele) em consumidor, em um indivíduo hedonista, massificado e alienado cujo lema é “produzir e consumir” numa sociedade em que “todos executam os mesmos atos, têm a mesma linguagem física, são totalmente permutáveis”. O cerne do argumento é a dicotomia entre distinção e homologação, entre identidade e massificação. O antigo fascismo – aquele político-institucional – “distinguia”, permitia, de maneira paradoxal talvez, a existência ou a sobrevivência da diferença. O “novo fascismo”, não. Antirretórico e “pragmático”, ele visa “à reorganização e à homologação brutalmente totalitária do mundo”.

 

Aspecto sociocultural do fascismo

Não haveria muito a se acrescentar a essa perspectiva hermenêutica se não fosse por alguns indícios que vislumbram outras leituras menos ideologicamente orientadas. Deixando de lado o viés do capitalismo/consumismo-como-novo-fascismo, é interessante concentrar a nossa atenção no aspecto sociocultural (portanto não político) desse fascismo, que se alastra com o seu “rosto” indefinido, mas altamente repressivo e violento. Num texto meu de 2018 (publicado no livro Sexo, Política, Desconstrução) defini isso como “demo-fascismo”, em diálogo crítico com as noções de “fascismo social” do sociólogo de esquerda Boaventura de Sousa Santos e, em seguida, de “Urfascimo” ou “Fascismo eterno”, de Umberto Eco.

Quanto à ideia pasoliniana, é possível identificar nela não só 1) uma crítica às posturas da militância comunista, e mais em geral da esquerda, na análise e na abordagem concreta do problema do “novo fascismo”, como 2) a intuição, decerto não muito perceptível a olho nu, da forte presença de atos ou condutas fascistas (atente-se, não de cunho político, estatal ou jurídico, mas morais, sociais, comunitárias) também no seio da sociedade e da cultura de esquerda. Além disso, Pasolini ataca duramente as justificativas que usamos para absolver a nossa inércia e tranquilizar a nossa consciência.

 

 

Ao contrário do que pensam muitos amigos e amigas de esquerda, com base no livro seminal de Márcia Tiburi (Como conversar com um fascista, 2015), com os fascistas é necessário, de alguma forma, tentar conversar. Por quê? Antes de tudo e essencialmente, para não sermos fascistas nem “racistas” (sim, Pasolini usa essa noção) já que ao investigar os seus comportamentos quisemos acreditar, de maneira “apressada” e “implacável”, que todos eles (sobretudo os mais jovens) estavam “predestinados racialmente a serem fascistas e que, portanto, não havia nada a fazer diante dessa decisão do destino deles”. É exatamente nesse momento que buscamos tranquilizar as nossas consciências, que nos escondemos atrás da nossa hipocrisia ou da nossa desonestidade intelectual repetindo para nós mesmos: para eles é inevitável ser fascistas; um fascista é destinado a ser fascista e ponto final! Não para Pasolini, evidentemente, que acusa: todos sabemos, no fundo do nosso ser, que quando um jovem “toma a decisão” de tornar-se fascista isso era “puramente casual”, não era outra coisa que um “gesto imotivado e irracional: talvez uma só palavra teria sido suficiente para que isso não acontecesse. Mas nenhum de nós jamais falou com eles ou para eles. Imediatamente os aceitamos como representantes inevitáveis do Mal” quando na verdade eram jovens que não “sabiam nada de nada” e que se jogaram de cabeça nessa “horrível aventura” por “simples desespero”.

IHU On-Line - Qual é a atualidade dos escritos de Pasolini e como eles podem nos orientar nos dias de hoje?

Rossano Pecoraro - A primeira operação a ser executada é denunciar e buscar dissolver os clichês acadêmicos, fílmicos e sociopolíticos que aprisionam e silenciam a potência revolucionária e transformadora do “sistema Pasolini”. O viés fome-pobreza-miséria-desigualdade-comunismo-fascismo-capitalismo está esgotado. Bater nas mesmas teclas – que outrora foram essenciais para legitimar e orientar lutas e resistências – não vai acrescentar muita coisa nem vai oferecer instrumentos teóricos para as novas batalhas do século XXI. Não estamos mais na Itália Pós-guerra nem na Europa dos anos 1960 e 1970. A segunda operação diz respeito à análise crítica dos elementos ignorados ou pouco estudados da totalidade do corpus pasoliniano. Falamos de alguns deles ao longo da nossa conversa. A terceira operação, por fim, refere-se à coragem da verdade, à quebra de todo arqué e à necessidade de limitar e frear toda e qualquer forma de Poder.

 

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