Os riscos dos planos de saúde que só oferecem “Melhoral e copo d’água”. Entrevista especial com Ligia Bahia

Foto: Alna Souza - Palácio Piratini

Por: João Vitor Santos | 17 Setembro 2019

Quem é mais velho deve se lembrar de um antigo medicamento chamado Melhoral. Era um verdadeiro sucesso de marketing, pois se dizia que era bom para todos os males. Mas não é preciso ser especialista na área para saber que não existe remedinho mágico. A professora Ligia Bahia retoma a metáfora do Melhoral para lançar luzes sobre o que muitos planos de saúde privados têm feito: tratado a saúde como mercadoria e vendendo o que não entregam. “São mercadorias que denominamos ‘Melhoral e copo d’água’, pois os clientes pagam mensalmente e quando precisarem terão que recorrer ao SUS”, destaca. “Os empresários da saúde estão querendo posar de reformadores do sistema de saúde e esse lugar não lhes pertence. Vender mais planos de saúde não é sinônimo de solução para um país como o Brasil, que está às voltas com imensos problemas de saúde”, acrescenta.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Ligia também analisa as relações do sistema privado com os dispositivos estatais de regulação. “As empresas criticam a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS seletivamente, ou seja, manifestam desacordo apenas quando a intervenção estatal ameaça seus lucros. Os representantes das operadoras posam de liberais antiestatistas, mas querem mais subsídios, créditos e empréstimos públicos”, revela. Assim, percebe-se que a lógica não é acabar com a agência reguladora, mas mantê-la sob controle. “A regulação caminhou sempre de lado porque a ANS tem sido fortemente orientada pelas agendas empresariais e esse processo de captura permanente a enfraqueceu. Atualmente, a ANS tem um quadro técnico qualificado, mas está destituída de legitimidade para se afirmar como locus de uma regulação pautada pelas necessidades de saúde”.

Para ela, precisa ficar claro o que os planos oferecem. “Interesses empresariais são legítimos, o que deve ser combatido é a promiscuidade entre público e privado”, avalia. O caminho, segundo a professora, é fortalecer o SUS. E, para isso, “encarar o fato de que somos mais de 200 milhões de habitantes, a maioria de renda baixa e média e não podemos entregar a saúde para grupos empresariais, que são atraídos aos locais em que se situam segmentos de maior renda e não pelas condições sanitárias prioritárias”.

Lígia Bahia (Foto: Elpídio Jr.)

Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos Planos e seguros de saúde. O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os limites da saúde suplementar como forma de garantir acesso a serviços de saúde de qualidade e de desafogar o Sistema Único de Saúde - SUS?

Ligia Bahia – Os limites dos planos e seguros de saúde privados são de três ordens. A primeira é comum a todos os países e diz respeito à natureza contratual entre entes privados, que combinam entre si o que é ou não incluído como garantia nos contratos. Essas garantias e exclusões de cobertura definidas ex ante variam entre países; por exemplo, nos EUA os planos asseguram medicamentos e prevenção e tratamento prolongado para problemas de saúde mental e no Brasil não.

O segundo e o terceiro elementos têm características nacionais. O que estimula ou restringe o fluxo de clientes de planos à rede de serviços do SUS é o tipo de plano. No Brasil existem planos “melhores e piores”; os mais abrangentes e muito caros ou exclusivos para executivos de grandes empresas, cujos clientes devem representar no máximo 5% dos que têm planos, permitem que os pacientes tenham atendimento para quase todos os problemas de saúde na rede privada. Ainda assim, esse segmento populacional recorre ao SUS para receber medicamentos de alto custo e realizar transplantes, bem como se beneficia das ações de vigilância epidemiológica e sanitária.

No polo oposto, situam-se os planos básicos que, ao restringir acesso e uso de serviços de saúde, terminam por empurrar deliberadamente (há panfletos de propaganda que incluem hospitais públicos como se fossem credenciados pelas empresas), ou implicitamente por meio de solicitação de autorizações demoradas, informações sobre inexistência de vagas e demora para marcação de atendimentos. Outra limitação das empresas de planos aqui localizadas é o não investimento em ciência, tecnologia e inovação que são essenciais para os sistemas de saúde modernos, deixando inteiramente para o SUS as tarefas de pesquisa e modernização tecnológica e o acusando do oposto. Na aparência, os serviços públicos são ultrapassados e os privados, inovadores, e essa inversão perversa funciona como propaganda anti-SUS.

IHU On-Line – O avanço dos planos privados de saúde configuram uma ameaça ao SUS? Por quê?

Ligia Bahia – Porque não é fato que qualquer plano resolve problemas de saúde; a verdade é que os planos realmente abrangentes, os muito caros, permitem diagnósticos e tratamentos adequados. Mas, em um país que tem SUS, a comercialização de planos menos que básicos, tal como pleiteiam determinadas empresas, estabelecem uma pseudoconcorrência com a rede pública que não se efetiva.

Plano de saúde, como diz o nome, serve para evitar improvisação. É um contrato de pré-pagamento que assegura aos pacientes duas condições: a certeza de onde ir e, ao chegar em unidades de saúde, ter atendimento seguro e de qualidade. As operadoras têm feito de tudo e mais um pouco para vender um plano-improviso. A última tentativa está registrada em projeto de lei apócrifo. O documento, que prevê a desregulamentação da obrigatoriedade de coberturas, explicita uma proposta de cobrar antecipadamente e não garantir assistência.

Ao contrário da propaganda das operadoras, planos sem coberturas não desafogam o SUS. Estão prometendo que dão conta do recado e sugerem transferir mais recursos públicos para as empresas privadas. O SUS fica ainda mais subfinanciado e ocorrerá (o que já começamos a assistir) redução de coberturas vacinais, surtos de sarampo e uma rede pública cada vez mais sucateada, mas que é a responsável pela assistência a casos muito graves de quem tem e não tem plano.

IHU On-Line – No Brasil, um dos maiores desejos da população é o acesso a planos privados de saúde. Como compreender essa lógica? E em que medida ela potencializa o “poder de fogo” das operadoras diante do Estado?

Ligia Bahia – As pesquisas de opinião indicam três tendências consistentes e reiteradas: 1) o principal problema é saúde; 2) mais de 80% dos entrevistados são favoráveis ao financiamento público, por meio de impostos, para o SUS e que a saúde deva ser direito para todos; 3) o desejo de ter planos de saúde, que se situa abaixo da vontade de adquirir casa própria. São resultados contraditórios, portanto admitem interpretações igualmente díspares.

Considero que indicam o seguinte: a população é a favor do SUS, mas conhece suas deficiências. Essas informações sugerem fortemente que se a pergunta fosse: ou plano ou SUS?, haveria uma enorme confusão. Na realidade, o que se deseja é SUS e plano e há clareza que se o SUS fosse efetivo seria melhor que os planos. Mas é preciso reconhecer que o desejo por planos é uma realidade e tem sido bem utilizado pelas empresas de planos para obter desde benesses fiscais até anistia de multas.

IHU On-Line – Até 1998, os planos de saúde privados não eram regulados no Brasil e, desde a implementação dessa regulação, as empresas criticam a incidência do Estado sobre os planos. Como avalia essa regulação hoje? Quais os avanços e os limites da ANS nessa área?

Ligia Bahia – As empresas criticam a Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS seletivamente, ou seja, manifestam desacordo apenas quando a intervenção estatal ameaça seus lucros. Os representantes das operadoras posam de liberais antiestatistas, mas querem mais subsídios, créditos e empréstimos públicos. O setor privado não é contra a ANS, faz questão de intervir na escolha de seus diretores e políticas regulatórias. A regulação caminhou sempre de lado porque a ANS tem sido fortemente orientada pelas agendas empresariais e esse processo de captura permanente a enfraqueceu. Atualmente, a ANS tem um quadro técnico qualificado, mas está destituída de legitimidade para se afirmar como locus de uma regulação pautada pelas necessidades de saúde.

IHU On-Line – Quais são as propostas das operadoras de planos privados que têm sido postas em discussão no que diz respeito ao marco legal da saúde suplementar?

Ligia Bahia – A proposta das operadoras é a desregulamentação das coberturas, restrição radical da escolha de prestadores de serviços, não ressarcimento ao SUS, fim das penalidades impostas pela legislação e redução do poder de definição de reajustes de preços e fiscalização da ANS. Ambicionam vender mais planos. Planos sem atendimento a emergências, realização de exames, diagnósticos e tratamentos para cânceres.

São mercadorias que denominamos “Melhoral e copo d’água”, pois os clientes pagam mensalmente e quando precisarem terão que recorrer ao SUS. O objetivo é ampliar o mercado mediante a comercialização de produtos segmentados por oferta assistencial e localidade e problemas de saúde. A lei atual prevê o atendimento aos problemas de saúde catalogados no Código Internacional de Doenças - CID. Isso atrapalha quem pretende reduzir cobertura porque os investidores, especialmente os estrangeiros, exigem estabilidade legal. Determinados lobbies empresariais sabem que atrairão mais investimentos se conseguirem reduzir as coberturas e apregoar que assim ajudam o SUS.

IHU On-Line – O modelo britânico de gestão de saúde pública é tomado como referência. No que consiste a lógica desse sistema e que analogias podemos fazer com a concepção do SUS brasileiro?

Ligia Bahia – O Reino Unido tem um sistema universal de saúde (National Health System) [1] que se caracteriza por ser público (financiamento, gestão e prestação de serviços). No Reino Unido, pobres e classes médias, inclusive alta classe média, são atendidos pelo NHS.

O SUS aprovado pela Constituição de 1988 foi inspirado no modelo inglês com as devidas adaptações. Entretanto, logo após sua inscrição na Constituição foi considerado inviável por sucessivos governos. Atualmente, os ingleses se orgulham de seu sistema público e o Brasil continua às voltas com as pressões do setor privado.

IHU On-Line – Nos Estados Unidos, a gestão de Barack Obama trouxe uma alternativa à assistência em saúde. Mas esse sistema não foi bem aceito e o atual governo tenta desfigurá-lo. Por que o “Obamacare” gerou e ainda gera tanta polêmica? O que essa experiência norte-americana pode legar à realidade brasileira?

Ligia Bahia – O Obamacare foi uma reforma importante e muito controvertida, foi aprovado pelo congresso com três votos de diferença (houve senadores democratas que votaram contra) e a maioria da população (53%) se posicionava também contrária ao projeto. As principais polêmicas se concentraram em torno da ampliação da intervenção estatal na saúde. Os EUA construíram um sistema de saúde orientado pelo mercado e o Obamacare abalou os alicerces da dinâmica de grandes grupos empresariais.

Apesar das imensas dificuldades e vaivéns, o Obamacare logrou uma imensa vitória. O patamar dos debates sobre saúde hoje nos EUA é completamente diferente. Os democratas propõem um sistema de saúde ainda mais público e os republicanos admitem preservar garantias de cobertura do Obamacare. A experiência norte-americana, a despeito das imensas diferenças entre ambos os países, indica que os sistemas de saúde públicos são mais efetivos. Se um país de renda alta como os EUA caminha para um sistema público, o Brasil deveria tratar de valorizar e reafirmar o SUS.

IHU On-Line – O SUS já tem mais de 30 anos [2]. Nesse período, quais os mais significativos avanços, impasses, retrocessos e adaptações na compreensão da articulação do SUS com o setor privado?

Ligia Bahia – Os principais avanços são a compreensão sobre a diferença entre público e estatal. O SUS é público, significa que sua rede pode ser constituída por serviços de qualquer natureza desde que atenda a todos. Os retrocessos gravitam em torno da fragilidade do SUS para se afirmar como uma rede de serviços de qualidade. Ao longo de trinta anos, os serviços públicos não conseguiram se tornar exemplos de limpeza, bom atendimento, atendimento personalizado. Há uma diferença notória entre a conservação de prédios, procedimentos de recepção, tempos de espera entre os serviços públicos e privados. Nesse período se cristalizou um impasse: os serviços privados, subsidiados com recursos públicos, se recusam ao atendimento universal e os públicos subfinanciados atendem todos de modo insatisfatório.

IHU On-Line – Quais os desafios para evitar que lógicas mercantilistas ditem as regras na gestão de saúde pública e para fortalecer o SUS, inclusive dando um melhor aporte nas suas formas de financiamento?

Ligia Bahia – Interesses empresariais são legítimos, o que deve ser combatido é a promiscuidade entre público e privado. Os empresários da saúde estão querendo posar de reformadores do sistema de saúde e esse lugar não lhes pertence. Vender mais planos de saúde não é sinônimo de solução para um país como o Brasil, que está às voltas com imensos problemas de saúde.

Para fortalecer o SUS é necessário encarar o fato de que somos mais de 200 milhões de habitantes, a maioria de renda baixa e média e não podemos entregar a saúde para grupos empresariais, que são atraídos aos locais em que se situam segmentos de maior renda e não pelas condições sanitárias prioritárias. O financiamento e a gestão do SUS precisam ser revistos. O SUS requer um volume de recursos muito superior ao atual, que poderiam ser obtidos com o fim dos subsídios públicos ao setor privado. A modernização da gestão, incluindo fim das influências político-partidárias para a nomeação de cargos técnicos, avaliação, prestação de contas e transparência, é tarefa inadiável.

 

Notas: 

[1] Serviço Nacional de Saúde (em inglês: National Health Service - NHS): é o nome habitualmente utilizado para referir-se aos quatro sistemas públicos de saúde do Reino Unido coletiva ou individualmente, embora atualmente, em geral, seja apenas ao serviço de saúde da Inglaterra que é corretamente chamado de Serviço Nacional de Saúde sem qualquer outra qualificação. Três serviços (Inglaterra e País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte), foram criados por legislações separadas e começaram a funcionar em 5 de julho de 1948; anteriormente a essa data, serviços públicos de saúde mais limitados eram operados por autoridades locais e por outros organismos. (Nota da IHU On-Line)

[2] Em 2018, quando o SUS completava 30 anos, a revista IHU On-Line publicou a edição intitulada Sistema público e universal de saúde – Aos 30 anos, o desafio de combater o desmonte do SUS. Acesse aqui. (Nota da IHU On-Line)

 

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