Migração é um fenômeno da experiência humana. Entrevista especial com Denise Cogo

Refugiados | Foto: Agência Brasil

Por: Ricardo Machado | Edição: Patricia Fachin | 07 Dezembro 2018

No debate público, o fenômeno migratório é majoritariamente tratado como “um problema e uma ameaça para as sociedades” e, por isso, imigrantes e refugiados “precisam ser controlados, regulados ou mesmo contidos”, pontua Denise Cogo à IHU On-Line na entrevista concedida por e-mail. Apesar dessa narrativa, a jornalista frisa a importância de “desconstruirmos alguns desses discursos produzidos e reproduzidos historicamente em relação ao ‘não nacional’ ou ao ‘estrangeiro’ e compreendermos as migrações como uma experiência humana que historicamente traz contribuições sociais, culturais, políticas e econômicas às sociedades, assim como pensar a mobilidade como um direito humano e universal”. É importante compreender também, explica, que “os movimentos migratórios são condicionados por uma multiplicidade de fatores de ordem macro e microrrelacionados a cenários geopolíticos internacionais e nacionais, como o das crises econômico-políticas, das guerras, dos governos autoritários e ditatoriais, dos desastres ambientais, das mudanças nas políticas de controle de fronteiras e de entrada de imigrantes em cada espaço nacional”.

Para que uma narrativa positiva sobre o fenômeno migratório seja possível, explica, “precisamos desnaturalizar a ideia de fronteiras geográficas e de nacionalidade e entendê-las como uma construção histórica que decorre de disputas geopolíticas, socioculturais e econômicas. Ou seja, os territórios ou países onde nascemos não surgiram naturalmente e, no decorrer da história, foram e vão assumindo outras configurações como decorrência também dessas disputas”. Como exemplos contemporâneos de reordenamentos nacionais, ela menciona o caso dos países do Leste Europeu e as lutas por independência na Espanha. Nesse contexto de reconfiguração dos fluxos migratórios, informa, “não são os países do hemisfério norte que abrigam a maioria dos deslocados do mundo. Dados de 2017 da Acnur (Agência da ONU para Refugiados) indicam que 85% das pessoas refugiadas vivem em países empobrecidos que recebem uma ajuda escassa para seu atendimento. Quatro de cada cinco refugiados vivem em países vizinhos aos seus países de origem. A Turquia continua a ser o país que mais abriga refugiados no mundo, com 3,5 milhões de pessoas, seguida do Paquistão, Uganda, Líbano e Irã”.

Coorganizadora do Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil, Denise tem pesquisado o fenômeno migratório e analisado seu tratamento na imprensa. Embora o espaço para a cobertura das migrações contemporâneas seja “menos marginal” nos dias de hoje do que foi no passado, a pesquisadora pontua que existe uma diferença entre “estar na mídia” e “como se está na mídia”. Ela explica: “Cabe refletir que ‘estar na mídia’ não equivale a ‘como se está na mídia’, ou seja, na possibilidade do imigrante ou o refugiado participar ou intervir individual ou coletivamente nos modos como tem sido representado”. Denise lembra o episódio envolvendo o menino sírio Aylan Kurdi, encontrado morto em uma praia da Turquia. A imagem dele, menciona, “foi replicada exaustivamente em mídias digitais de todo mundo, gerando grandes mobilizações inclusive de ativistas nas redes sociais. Contudo, essa mobilização pautada no compartilhamento da imagem de Aylan em espaços das mídias como forma de denúncia e sensibilização para sua morte, pode não ter contribuído, como se desejava ou imaginava, para cessar as mortes de imigrantes no Mediterrâneo e nem promover uma melhoria nas políticas de acolhida de refugiados em países europeus. Os dados divulgados pela ONG Save The Children revelaram, por exemplo, que, um ano após a morte do menino sírio, ao menos outros 423 menores morreram afogados no Mediterrâneo, tentando chegar à Europa”.

Denise Cogo (Foto: Reprodução | Youtube)

Denise Cogo é graduada em Jornalismo, com mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP e estágio de pós-doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha. Leciona no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM, São Paulo, onde coordena o grupo de pesquisa Deslocar. Coordena também a Plataforma de Mídias de Imigrantes de São Paulo desenvolvida em parceria com o Museu da Imigração do Estado de São Paulo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senhora percebe a questão dos deslocamentos forçados e fluxos migratórios contemporaneamente?

Denise Cogo – Penso que é ainda dominante, na visibilidade e debate públicos sobre o tema das migrações, visões e representações que constroem e representam os deslocamentos humanos, sejam forçados ou não, como um problema e uma ameaça para as sociedades e, por isso, precisam ser controlados, regulados ou mesmo contidos. A figura do imigrante costuma aparecer, dentre outros, associada a chegadas massivas e descontroladas, a invasões; a envolvimento de imigrantes em conflitos, crimes e delitos; a estrangeiros “pobres” e com “escolarização precária” que chegam para tirar o emprego dos “nacionais”, onerar os serviços públicos (saúde e educação), ou, ainda, que são portadores de culturas e religiões de difícil compreensão e integração às sociedades ocidentais. Diferentes instituições, como Estados, governos, mídia, escola, empresas, organizações, têm colaborado para a produção, consolidação e reprodução desse tipo de discurso ou narrativa sobre as migrações.

É importante desconstruirmos alguns desses discursos produzidos e reproduzidos historicamente em relação ao “não nacional” ou ao “estrangeiro” e compreendermos as migrações como uma experiência humana que historicamente traz contribuições sociais, culturais, políticas e econômicas às sociedades, assim como pensar a mobilidade como um direito humano e universal. Para isso, precisamos desnaturalizar a ideia de fronteiras geográficas e de nacionalidade e entendê-las como uma construção histórica que decorre de disputas geopolíticas, socioculturais e econômicas. Ou seja, os territórios ou países onde nascemos não surgiram naturalmente e, no decorrer da história, foram e vão assumindo outras configurações como decorrência também dessas disputas. Exemplos contemporâneos são os reordenamentos nacionais dos países do Leste Europeu ou as lutas por independência em países como a Espanha. Além disso, como seres humanos, somos resultados dos diversos deslocamentos que experimentaram nossos antepassados em sucessivas gerações (bisavós, avós, pais etc.) impulsionados por diferentes circunstâncias e motivações (fome, guerra, busca por trabalho, por aprimoramento educativo, por novas experiências etc.). Ou seja, é fundamental entender que a mobilidade é intrínseca à condição humana, e que a diversidade étnica e cultural está na origem da formação de todas as nações.

Como síntese, gosto sempre de lembrar da força contradiscursiva que, frente ao crescimento dos discursos, políticas e ações anti-imigração, contém a frase “Somos todos migrantes”, e que foi encontrada escrita recentemente na parede de um restaurante na cidade de Pacaraima, em Roraima, onde houve o episódio lamentável de expulsão e violência contra os imigrantes venezuelanos. Uma frase que também tem sido reiteradamente enunciada por ativistas das migrações em diferentes partes do mundo e até mesmo apropriada por campanhas institucionais de governos que buscam sensibilizar para a acolhida dos imigrantes.

IHU On-Line – Em 2013, em entrevista à IHU On-Line, a senhora comentou que uma das razões para o fluxo global de pessoas estava relacionada à crise financeira de 2008. Atualmente, que configurações esse trânsito de pessoas assumiu?

Denise Cogo – Os fluxos migratórios se reconfiguram constantemente e, na atualidade, a percepção é que isso parece ocorrer de modo mais acelerado em decorrência tanto dos sucessivos reordenamentos geopolíticos (crises, guerras, governos autoritários etc.) que vivemos, quanto das possibilidades abertas no âmbito dos transportes e das comunicações nas últimas décadas e, em função disso, do papel desempenhado pelas redes migratórias e as tecnologias da comunicação nos processos de mobilidade tanto nos países de origem como de destino dos imigrantes.

Cabe lembrar que os movimentos migratórios são condicionados por uma multiplicidade de fatores de ordem macro e microrrelacionados a cenários geopolíticos internacionais e nacionais, como o das crises econômico-políticas, das guerras, dos governos autoritários e ditatoriais, dos desastres ambientais, das mudanças nas políticas de controle de fronteiras e de entrada de imigrantes em cada espaço nacional. Esses reordenamentos estão vinculados, ainda, aos próprios imaginários que são construídos e compartilhados, de modo cada vez mais intenso e acelerado das próprias redes migratórias e dos usos que elas fazem das mídias digitais, as quais oferecem um fluxo constante de informações sobre os lugares de migração e as próprias experiências de deslocamento. Há ainda a condição diaspórica de determinadas nações que contam com porcentagem significativa de sua população vivendo em outros países e, em função disso, dependem das remessas financeiras dos imigrantes como importante fonte econômica. É o caso, dentre outros, de países como Haiti, Cuba, El Salvador e Nicarágua.

Atualmente, observamos que alguns reordenamentos geopolíticos têm colaborado para reorganizar os movimentos migratórios, como é o caso do maior controle das fronteiras e das políticas anti-imigração adotadas pelo governo Trump nos Estados Unidos e em países com governos de direita e extrema direita na Europa, ou, ainda, os efeitos da crise de 2008 que ainda perduram nesses dois contextos. A crise econômico-política vivida pelo Brasil a partir do impeachment de 2014 levou muitos imigrantes haitianos a migrarem do Brasil para o Chile em busca de melhores condições de trabalho e de vida. Alguns desses imigrantes se deslocaram para a fronteira do México com os EUA, buscando ingressar em território norte-americano e, diante da impossibilidade de ingresso, muitos acabaram retornando ao Chile e ao Brasil. Essa mesma crise brasileira também colaborou para desencadear novos fluxos de emigração de brasileiros para países como Portugal e Estados Unidos.

Podemos lembrar, mais recentemente, também, da crise econômico-política da Venezuela que tem provocado a ampliação dos fluxos de migrantes e refugiados venezuelanos para países vizinhos como Brasil, Colômbia, Equador e Peru; as guerras em países como a Síria e República Democrática do Congo que também têm provocado deslocamentos expressivos de refugiados; ou, ainda, as violências contra as minorias étnicas e religiosas, como a que vem ocorrendo em Myanmar; contra as mulheres, as pessoas LGBTQI+, especialmente em países que costumam criminalizar essa condição. Não podemos esquecer também os desastres ambientais, como o terremoto de 2010 no Haiti, que operou como fator (embora não o único) de deslocamento de haitianos para países da América do Sul, como o Brasil e o Chile, que anteriormente não eram tradicionais destinos de imigrantes desses países. Grandes obras de infraestrutura, como as de usinas hidrelétricas e barragens, vêm provocando igualmente a expulsão de populações de seus lugares de origem.

Há, contudo, outros fatores, especialmente de ordem micro, que têm relação com as histórias e trajetórias de vida de cada pessoa e que historicamente têm impulsionado os deslocamentos humanos: as condições de vida, de trabalho e de escolarização no país de origem; a interação com familiares e amigos que migraram anteriormente; as condições econômicas daqueles que pensam em migrar; as interações em redes migratórias, que são espaços de intercâmbio sobre as experiências migratórias entre os que migram e desejam migrar; as experiências relacionadas às identidades e orientações de gênero; as questões geracionais; as experiências religiosas; os modos como as pessoas ressignificam as imagens e imaginários, incluindo os produzidos pelas mídias, que circulam sobre os lugares de migração e as experiências migratórias de familiares, amigos e conhecidos. Há, portanto, desejos e motivações individuais e coletivos de quem migra ou pensa em migrar que, sozinhos ou combinados, pesam na decisão por migrar e que não podem ser reduzidos a questões unicamente econômicas, conforme tem sido analisado em muitas pesquisas sobre migrações em diversos países.

Por fim, apesar das permanentes reconfigurações dos fluxos migratórios, uma evidência permanece e é oportuno que seja lembrada. Ou seja, a de que não são os países do hemisfério norte que abrigam a maioria dos deslocados do mundo. Dados de 2017 da Acnur indicam que 85% das pessoas refugiadas vivem em países empobrecidos que recebem uma ajuda escassa para seu atendimento. Quatro de cada cinco refugiados vivem em países vizinhos aos seus países de origem. A Turquia continua a ser o país que mais abriga refugiados no mundo, com 3,5 milhões de pessoas, seguida do Paquistão, Uganda, Líbano e Irã.

IHU On-Line – No Brasil, como a senhora avalia a questão da imigração nos dias de hoje? Como entender o fenômeno em perspectiva com a América Latina?

Denise Cogo – O Brasil é um país formado por imigrantes. Entre o ano de 1819 e o final da década de 40, o país se tornou um importante polo de recepção de imigrantes internacionais ao receber cerca de cinco milhões de italianos, portugueses, espanhóis, alemães, japoneses, assim como grupos menos expressivos numericamente, como russos, austríacos, sírio-libaneses e poloneses, que se estabeleceram principalmente nas regiões Sul e Sudeste do país. Após esse período, a chegada de imigrantes ao Brasil diminuiu significativamente, embora não tenha cessado. Nos anos 70, por exemplo, houve um crescimento de imigrantes hispano-americanos (argentinos, uruguaios, bolivianos, paraguaios etc.), principalmente exilados das ditaduras do Cone Sul e refugiados colombianos.

Foi a partir de 2008, contudo, que o Brasil voltou a se posicionar como um destino de grupos migratórios de diferentes nacionalidades, como portugueses e espanhóis, mas também e, principalmente, de grupos que não tinham presença expressiva no país, como norte-americanos, haitianos, senegaleses e congoleses. O crescimento de grupos como haitianos, senegaleses e congoleses reposicionou o Brasil como um país receptor de imigrantes no contexto das chamadas migrações Sul-Sul, incluindo cidadãos oriundos de países da América Latina e Caribe, como são os casos mais recentes de imigrantes haitianos e venezuelanos, ou da África, como senegaleses e congoleses, além de refugiados sírios, oriundos do Oriente Médio, no sudoeste da Ásia.

De 2010 a 2015, a população de imigrantes no Brasil cresceu 20%, chegando a 713 mil, se considerados apenas os imigrantes com regularização jurídica, segundo relatório divulgado pela Organização Internacional das Migrações em 2018, o que representa cerca de 0,4% da população. O Atlas do Observatório das Migrações de São Paulo, publicado recentemente pelo Nepo/Unicamp registra que, entre 2000 e 2015, 879.926 estrangeiros obtiveram residência no Brasil [1]. Cabe mencionar que os EUA, país com maior volume absoluto de migrantes na sua população, conta com 14,6% de estrangeiros em sua população, assim como países conhecidos por adotarem políticas ativas de atração de imigrantes, como o Canadá e a Austrália, com respectivamente 21,8% e 28,4% [2]. Além disso, os dados revelam que, em termos absolutos, o Brasil é um país com maior saída do que entrada de migrantes, já que, segundo o Ministério das Relações Exteriores, em 2017, havia 3 milhões de brasileiros vivendo no exterior.

Esses dados quantitativos nos ajudam, por um lado, a refletir sobre a cobertura que a mídia brasileira tem dado à chegada de imigrantes ao país que, embora inexpressiva numericamente, tem sido construída como massiva e associada à invasão, descontrole ou, ainda, ameaça. Por outro lado, embora a presença de novos grupos migratórios no Brasil não seja expressiva quantitativamente, o tema e realidade das migrações entrou para o debate público, ocupando, de modo expressivo, a agenda política, social e midiática do país nos últimos anos. No período pós-2008, quase diariamente nos deparamos com alguma notícia envolvendo a chegada e a presença de imigrantes no Brasil. O que pode ter uma posição positiva na medida em que vem impondo ao Estado e à população brasileira uma agenda que exige que reflitamos sobre as seletividades, hierarquizações e exclusões que demarcam nossa constituição como sociedade formada pela imigração. Um exemplo é o quanto a ideologia do branqueamento pautou e tem pautado a seletividade de nossas políticas migratórias e nossas relações cotidianas, fazendo com que o racismo seja uma das dimensões recorrentes na experiência de inserção de imigrantes negros no Brasil, como é o caso daqueles oriundos do Haiti e de países da África, conforme têm relatado os imigrantes em pesquisas acadêmicas sobre o tema ou mesmo nas redes sociais.

O Brasil ainda tem muitos desafios no sentido de promover políticas migratórias em âmbito nacional e local que assegurem uma acolhida, inserção e garantia de direitos sociais, econômicos e políticos aos imigrantes. Além de garantir processos de regularização jurídica e acesso a direitos pelos imigrantes, penso que é importante também, nesse âmbito, se pensar, a médio e longo prazo, uma educação intercultural que assegure tanto uma inclusão digna dos novos grupos migratórios em instituições educativas, quanto a construção de uma memória que valorize a cultura desses grupos e sua contribuição para a sociedade brasileira, a exemplo do que já se tem em relação às chamadas imigrações históricas de italianos, alemães, espanhóis, portugueses.

É necessário também que Estados e governos invistam na capacitação, sensibilização de jornalistas e comunicadores e mesmo firmem pactos com organizações, sindicatos e profissionais da mídia para que se comprometam com a ética na produção e visibilidade midiática da realidade das migrações no Brasil. Seria importante um plano de ação no âmbito das políticas migratórias e das instituições que colabore com ações para desconstruir alguns discursos que se tornaram senso comum, como aqueles que postulam que “é o imigrante que deve se assimilar à cultura nacional e/ou local”, que “se o Brasil já não tem condições para os brasileiros, como vai receber imigrantes?”, que “não precisamos de mais imigrantes pobres e sem escolarização” (especialmente quando nos referimos a imigrantes oriundos dos países do Sul), que “imigrante vem ao Brasil trazido por determinados governos”, que “o imigrante que se esforça e trabalha sempre vence”.

Há muitas boas experiências e projetos de acolhida e inserção dos imigrantes desenvolvidos no Brasil por organizações mediadoras como Cáritas, Missão Paz etc., por organizações não governamentais ou, ainda, pelos próprios imigrantes, suas associações e redes de apoio, que podem ajudar a orientar políticas e ações no âmbito das migrações. A solidariedade de setores da sociedade brasileira com os venezuelanos expulsos e agredidos em Pacaraima como reação à violência de outros setores mostra também que a sensibilização e as ações concretas em favor da inserção digna e de uma relação humanizada com os imigrantes devem se dar, de modo articulado, nas políticas migratórias e no tecido social.

IHU On-Line –A senhora tem acompanhado, em nível global, a cobertura midiática em torno da questão dos refugiados? Como avalia esse trabalho?

Denise Cogo – Em 2017, desenvolvi, em coautoria com outra pesquisadora, uma breve análise de um caso sobre as relações entre a mídia e a trajetória de um refugiado sírio em São Paulo [3], mas tenho mais experiência em pesquisas com imigrantes do que especificamente com refugiados. Comecei a pesquisar a relação entre mídia e migrações internacionais no início dos anos 2000 quando, em uma primeira pesquisa [4], pude perceber que os principais jornais das cinco regiões brasileiras concediam muito pouco espaço ao fenômeno das migrações contemporâneas no país. É como se essa realidade não existisse na cobertura da mídia ou existisse perifericamente. Os jornais, especialmente da região Sul do Brasil, cobriam muito a presença local e os eventos culturais e festas dos descendentes de imigrantes (italianos, alemães etc.), ignorando, por exemplo, a presença de grupos migratórios que continuaram chegando e se estabelecendo no país, como aqueles oriundos do chamado Mercosul, um espaço geopolítico ainda relativamente recente na época.

A cobertura das migrações contemporâneas ficava, nessa época, limitada às editorias internacionais dos jornais brasileiros e focalizavam quase que exclusivamente os fluxos migratórios que chegavam à Europa e aos Estados Unidos. Mas nessa cobertura, fica evidente também que a mídia brasileira, via agência de notícias, acabava “tomando emprestado” ou reproduzindo um campo semântico e discursivo utilizado pelas mídias europeias e norte-americanas e que reforçavam discursos anti-imigração e a ideia da imigração como problema e conflito.

Quase uma década depois, a partir de 2010, pude observar, em uma outra pesquisa que desenvolvi, que essa dimensão voltaria a estar presente na cobertura da mídia brasileira sobre a chegada de imigrantes haitianos na fronteira da região norte do Brasil. Entre 2011 e 2014, na mídia brasileira, as representações dos imigrantes haitianos estiveram demarcadas por olhares complacentes de reafirmação da pobreza, precariedade e vulnerabilidade do Haiti e dos haitianos [5]. Em um segundo momento, já de consolidação dos processos de inserção da imigração haitiana no país, tais representações reiteraram, por um lado, a retórica da “invasão” de haitianos e, por outro, consolidaram discursos sobre essa nova imigração como “problema” e “conflito”. A partir de 2014, casos de ódio e violência racial contra haitianos em várias cidades brasileiras, assim como nas redes sociais, expuseram, na mídia, as imbricações entre imigração haitiana e a forte polarização partidária que marcaram a última eleição presidencial no país.

Nessa mesma perspectiva, recentemente, o jornal espanhol eldiario.es denunciou o descompasso entre os discursos anti-imigração que voltaram a dominar as agendas políticas e midiáticas em 2018. Ao intensificarem a cobertura sobre a chegada de imigrantes às fronteiras da União Europeia [6], essa agenda estaria fazendo reemergir a ideia de “crise migratória” e provocando uma sensação injustificada de “alarme” junto à sociedade. Segundo informa o jornal, dados da Organização Internacional das Migrações - OIM se contrapõem a esses discursos ao afirmar que, nos meses de junho e julho de 2018, 27 milhões de imigrantes e refugiados teriam chegado às costas espanholas, italianas e gregas, o que representaria 40% a menos de chegadas ocorridas no mesmo período do ano passado. A OIM destaca o que chama de “narrativa tóxica” em relação aos imigrantes promovida pelos campos político e midiático, afirmando, com base nesses dados, que a Europa não estaria imersa em uma crise política e não migratória.

Pesquisas acadêmicas vêm evidenciando que alguns imigrantes que ganharam o estatuto de refugiados no Brasil e em outros países desejariam se distanciar de uma autodefinição de refugiados pela carga de vitimização e complacência que carregaria o termo “refugiado” se comparado, inclusive, com o termo “imigrante”. Ou seja, há refugiados que estariam reivindicando um reconhecimento e normalização de sua condição de sujeitos em mobilidade que, mesmo tendo sido forçados a deixar seu país de origem por motivos como guerra ou violência e conseguido o estatuto de refugiado, não perderam sua capacidade de agência e autonomia para desenvolvimento pessoal, profissional e social no país de destino. Nessa perspectiva, também podemos observar que, em certos discursos e intervenções no campo das migrações, ao se atribuir protagonismo ao imigrante ou refugiado, o posicionamos como herói, enaltecendo sua trajetória individual de superação ou êxito. O que pode provocar um apagamento daqueles condicionamentos sociais, políticos e econômicos que operam nas trajetórias migratórias, diluindo a dimensão coletiva dessas trajetórias e desincumbindo Estados, governos e sociedade de participação e responsabilidade em relação às migrações. E embora, em algumas situações, imigrantes e refugiados possam “negociar” e até “utilizar” a seu favor esse tipo de construção discursiva – de “vítima” e/ou “herói” –, é perceptível o desejo que guardam por “normalização” de sua presença e inserção nas sociedades de destino.

IHU On-Line – Em termos de cobertura midiática, o que explica o fato de o tema dos refugiados ser tão marginal na imprensa brasileira?

Denise Cogo – Entendo que, nesses últimos anos, o tema está menos marginal, ou seja, cresceu muito no Brasil o espaço dado à mídia para as migrações contemporâneas, especialmente a partir dos refugiados da Guerra da Síria e agora com o fluxo de chegada de venezuelanos e os episódios de violência em Pacaraima. Se entendemos que a mídia é um ator cada vez mais central na construção de nossa experiência social e interação com o mundo, podemos compreender também que ausência ou pouca presença do tema das migrações na cobertura midiática pode operar como um obstáculo ao reconhecimento da existência e importância do fenômeno das migrações para o debate e a vida pública.

Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista que esse excesso de visibilidade ou hipervisibilidade de imigrantes e refugiados que vem sendo promovida pela mídia em muitos países contêm armadilhas e riscos que frequentemente são subvalorizados. Cabe refletir que “estar na mídia” não equivale a “como se está na mídia”, ou seja, na possibilidade do imigrante ou o refugiado participar ou intervir individual ou coletivamente nos modos como tem sido representado. Além disso, “estar na mídia” e “ter visibilidade pública” não deve ser visto como compulsório para nenhum cidadão, e menos ainda para quem vive a condição de refugiado que sofre perseguição ou tem a vida ameaçada ou de imigrante que não conta, por exemplo, com regularização jurídica.

Para ilustrar isso, podemos lembrar o episódio envolvendo o menino sírio Aylan Kurdi, encontrado morto em uma praia da Turquia, e cuja imagem foi replicada exaustivamente em mídias digitais de todo mundo, gerando grandes mobilizações inclusive de ativistas nas redes sociais. Contudo, essa mobilização pautada no compartilhamento da imagem de Aylan em espaços das mídias como forma de denúncia e sensibilização para sua morte, pode não ter contribuído, como se desejava ou imaginava, para cessar as mortes de imigrantes no Mediterrâneo e nem promover uma melhoria nas políticas de acolhida de refugiados em países europeus. Os dados divulgados pela ONG Save The Children revelaram, por exemplo, que, um ano após a morte do menino sírio, ao menos outros 423 menores morreram afogados no Mediterrâneo, tentando chegar à Europa.

Imagem do menino Aylan Kurdi morto na praia (Foto: Reprodução)

Lembro aqui um outro episódio recente envolvendo a imigração haitiana no Brasil que foi abordado em uma de minhas pesquisas [7]. Em 2015, os imigrantes haitianos se mobilizaram, em espaços das mídias digitais, para denunciar e questionar a ética jornalística na produção e publicação “não consentida” da fotografia de um imigrante haitiano recém-chegado à cidade de São Paulo em um ônibus proveniente da região norte do país. Sob a legenda “Haitiano toma banho em mictório”, a imagem fotográfica, publicada nos jornais Agora e Folha de S. Paulo, e replicada em diferentes espaços da internet, foi capturada, em 19 de maio de 2015, em um banheiro da Missão Paz, organização confessional vinculada à Igreja Católica, onde se situa a Casa do Imigrante, na cidade de São Paulo. A captura dessa imagem, sem o consentimento do imigrante fotografado, conforme denunciaram vários outros imigrantes, e, posteriormente, sua escolha como vencedora da categoria fotografia do Prêmio Vladimir Herzog, gerou, no âmbito das mídias, um debate público em torno dos impactos da visibilidade midiática nos direitos humanos e cidadania dos imigrantes haitianos no Brasil. Esse debate se pautou justamente pelo questionamento do caráter compulsório e verticalizado que demarca a produção de imagens sobre a imigração e sobre as próprias hierarquias raciais que pautam essa visibilidade e que expõem e vulnerabilizam mais imigrantes de origem negra que branca.

IHU On-Line – Como avalia as categorias utilizadas pela imprensa para tratar do tema dos deslocamentos forçados? Seria uma boa ideia ampliar o campo semântico de refugiados? Por exemplo, costuma-se chamar de “imigrantes ilegais” pessoas que saem de regiões com profunda escassez. Não seriam eles “refugiados da fome”?

Denise Cogo – Se considerarmos que, por meio da linguagem, os discursos constroem e consolidam representações e visões de mundo sobre a realidade, o campo semântico das migrações precisa ser conhecido, observado, refletido e manejado com muito cuidado por quem é ator central nessa construção pública, como é o caso dos comunicadores e jornalistas. Em 2013, com apoio do IHU e do Instituto da Comunicação da Universidade Autônoma de Barcelona, em parceria com um grupo de pesquisadores do campo da comunicação e migrações, participei como uma das organizadoras e autora do Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil [8]. Buscávamos, com o Guia, justamente problematizar esse campo semântico, mas também oferecer a comunicadores caminhos que colaborassem para a humanização dessa cobertura midiática das migrações.

No Guia, ressaltamos que o uso do termo “ilegal” não é recomendável porque faz referência a um delito praticado por imigrantes. O adequado seria mencionar que o imigrante não dispõe de “regularização jurídica”, que não pode ser classificado como delito por se tratar de uma exigência de ordem administrativa imposta aos imigrantes pelos estados nacionais. Outro termo polêmico tem sido o de “crise de migrantes e refugiados”, conforme já comentei anteriormente, e que se tornou recorrente na cobertura midiática, especialmente a partir dos últimos fluxos de refugiados da guerra da Síria em direção à Europa. Crise que reforçaria a ideia da imigração como problema a ser resolvido e não como uma experiência humana portadora de cultura que pode contribuir com a construção de uma sociedade. Há, no Guia, muitas outras referências de uso reiterado de termos que não colaboram com a compreensão da informação sobre a realidade migratória, mas que, ao contrário, reforçam um campo discursivo que criminaliza o imigrante. Por exemplo, fazer alusão à nacionalidade de uma pessoa quando ela estiver envolvida em algum delito ou mesmo conflito ou problema ou, ainda, associar constantemente imigração a tráfico de pessoas.

No Guia das Migrações, reunimos também algumas sugestões sobre como os jornalistas e comunicadores podem promover o que chamamos de cobertura humanizada das migrações. Dentre elas, estão: focalizar a migração como tema e não como problema; abordar ou narrar a migração como experiência sociocultural que envolve sujeitos e vidas humanas e não como fenômeno de natureza geográfica ou estatística; promover a participação direta dos imigrantes e seus representantes ou associações como fontes de informações tanto sobre especificamente as realidades migratórias como sobre temáticas de interesse geral que não tenham vinculação direta com migrações; incluir a perspectiva do gênero na abordagem das migrações.

IHU On-Line – Como avalia o papel da cobertura midiática, em termos de debate público, em relação à questão dos refugiados?

Denise Cogo – Como mencionei anteriormente, as pesquisas que venho desenvolvendo e orientando, assim como o trabalho de outros pesquisadores, vêm evidenciando uma cobertura midiática que, de modo dominante, criminaliza o fenômeno e associa migrantes e refugiados a problema, desumanizando a experiência da migração e adotando um campo semântico que pouco colabora com uma inserção cidadã dos imigrantes na sociedade brasileira, e até, ao contrário, provocando uma hipervisibilidade desses migrantes que têm tido impacto negativo na sua vida cotidiana.

Mas claro que, em todos os países, têm havido também experiências relevantes em que jornalistas e organizações midiáticas têm se preocupado tanto em denunciar a violência contra imigrantes como em promover um tratamento humanizado e uma perspectiva compreensiva dos fenômenos das migrações. E isso tem sido feito através de uma produção de conteúdos e informação que não se subordina a essas lógicas de hipervisibilidade e que tem valorizado a presença e contribuição das culturas migratórias, inclusive através da capacitação de seus profissionais para essa cobertura e de investimento na produção de gêneros como a reportagem, que favorecem uma compreensão de um fenômeno tão complexo como as migrações ou, ainda, de um maior espaço às fontes e vozes migrantes. Eu poderia destacar, por exemplo, o trabalho do site Migramundo, que surgiu em 2012 e recebeu, inclusive, um prêmio internacional pelo papel importante que tem desempenhado na cobertura das dinâmicas do cotidiano das migrações na cidade de São Paulo a partir de parcerias que construiu com os próprios migrantes, coletivos, associações e ativistas nesse campo.

No marco dessas dinâmicas de visibilidade, cabe também refletir como os migrantes individual e coletivamente têm participado e se tornado agentes de seus próprios “regimes de visibilidade”. Ou seja, os imigrantes e refugiados estão cada vez mais ampliando os usos das mídias para falar sobre suas trajetórias e realidades migratórias, reivindicar cidadania e propor modos de representação pública e midiática de suas experiências sem estar subordinados unicamente às vozes de mediadores, como a dos especialistas e das organizações de apoio às migrações. Claro que há uma enorme complexidade, em termos de disputas simbólicas, implicadas nesses processos de visibilidade e representação midiáticas quando os imigrantes passam a produzir suas próprias representações, já que estar digitalmente presente não significa falar e ser ouvido do mesmo modo ou ter o mesmo poder e força de representação. Além do que não é incomum ver indivíduos, coletivos ou organizações migratórias sucumbirem a algumas armadilhas na produção dessas representações, reproduzindo, por exemplo, modos estigmatizantes e sensacionalistas de narrar as migrações.

Nesse sentido, precisamos considerar, ainda, que o universo da comunicação digital ampliou enormemente a possibilidade de participação direta não apenas dos imigrantes e seus coletivos, mas de diferentes setores e atores sociais no campo de disputas discursivas no qual se constroem e (des)constroem diariamente esse campo semântico das migrações. Exemplos são as polarizações políticas que presenciamos nas redes sociais quando se intensificam fluxos de chegadas como as de haitianos e venezuelanos que ocorreram recentemente no Brasil.

Em São Paulo, numa parceria com o Museu da Imigração e o grupo de pesquisa Deslocar, que coordeno no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, criamos o projeto Plataforma de Mídias de Imigrantes de SP. Nessa Plataforma, estamos recolhendo e registrando meios de comunicação digitais de diferentes formatos (sites, grupos de redes sociais, audiovisuais, web rádios, jornais etc.) produzidos pelos novos grupos migratórios que chegaram a São Paulo a partir do final dos anos 90 e que não estavam presentes no acervo digital de mídias mantido pelo Museu. Com isso, queremos dar visibilidade e compor uma memória dessas novas migrações do ponto de vista de seus próprios espaços de agenciamento na apropriação das mídias digitais e na produção de representações próprias. A plataforma pode ser acessada aqui e aqui.

 

Notas:

[1] Ver aqui. (Nota da entrevistada).

[2] Ver aqui. (Nota da entrevistada).

[3] Disponível aqui.  (Nota da entrevistada).

[4] Publicada em COGO, Denise. Mídia, migrações e interculturalidade. Brasília/RJ: CSEM/E-Papers. (Nota da entrevistada).

[5] Ver aqui. (Nota da entrevistada).

[6] Ver aqui. (Nota da entrevistada).

[7] O artigo pode ser acessado aqui. (Nota da entrevistada).

[8] Disponível aqui. (Nota da entrevistada).

 

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