O gesto transcendental do não e a desobediência civil em Thoreau. Entrevista especial com Jeffrey Cramer

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Por: Entrevista e Tradução: Eduardo Vicentini de Medeiros | Edição: Ricardo Machado | 15 Julho 2017

Grandes revoluções começam com três letras, cabem na minúscula palavra “não”. No fundo o grande gesto político e transcendental da negação ao que é hegemônico é a base da desobediência civil trazida por Henry David Thoreau, como um gesto político sem par. Mais do que passar a noite em uma prisão, apesar da notoriedade do ato, das desobediências mais importantes de Thoreau está a de “abrigar pessoas escravizadas fugitivas, alimentá-las, cuidá-las para que ficassem saudáveis novamente, comprar as passagens de trem e vê-las seguras em seu caminho para o Canadá – embora tenha ficado mais famosa a noite que passou na cadeia como uma forma de protestar contra um governo que permitiu a existência da instituição da escravidão”, coloca Jeffrey Cramer, um dos maiores especialistas no mundo em Thoreau e curador do The Walden Woods Project. “O que ele escreveu sobre esta experiência no ensaio hoje conhecido como ‘Desobediência Civil’ tem sido uma influência fundamental ao redor do mundo sobre as obrigações do indivíduo de lutar contra a injustiça”, complementa Cramer, que concedeu entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Para o pesquisador, não haveria a menor possibilidade de um diálogo entre Thoreau e uma figura como Donald Trump. “Thoreau teria considerado uma perda do seu tempo discutir questões políticas com um político”, frisa. Ainda que o escritor não fosse afeito a religiões, havia em seus escritos uma certa influência do transcendentalismo americano, caracterizado por um sentido latente de reforma social por intermédio da reforma de si próprio. “Ele não foi um defensor da religião formal e manteve uma visão panteísta sobre Deus e a espiritualidade. O que ele experimentou em primeira mão em relação à divindade dentro de todos nós, não poderia ser encontrado em nenhuma religião”, descreve Cramer.


Cramer | Foto: Tom Hersey

Jeffrey Cramer é curador de coleções no Thoreau Institute at Walden Woods Library e responsável por projetos como Walden Woods Project e Ralph Waldo Emerson Society. Foi editor de vários livros sobre literatura dos Estados Unidos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como caracterizar a influência do Idealismo Alemão [1] no surgimento do Transcendentalismo Americano [2] em geral e sobre a escrita de Thoreau em particular? Existe alguma evidência de que Thoreau tenha lido alguma obra de Kant?

Jeffrey Cramer – Embora as ideias de Kant [3] tenham sido apresentadas para o grupo de transcendentalistas por Frederick Hedge [4], que indubitavelmente compartilhou essas ideias com seus amigos, e por intermédio dos escritos de Thomas Carlyle [5], bem como por Aids to Reflection de Coleridge (Princeton: Princeton University Press), não há evidência de que Thoreau tenha lido Kant ou outro Idealista Alemão. Seu principal contato seria filtrado por outros escritores.

IHU On-Line – A propósito, como se caracteriza o Transcendentalismo Americano?

Jeffrey Cramer – De forma muito simples, é idealismo, tal como Emerson [6] o caracterizou. Ou, fé em coisas não vistas. É a ideia de que podemos intuir a verdade diretamente a partir de Deus, que a verdade transcende nossas experiências cotidianas, e que conhecemos o certo e errado sem a necessidade de aprendizado. O Transcendentalismo Americano carrega consigo um sentido muito forte de reforma social por intermédio da reforma de si mesmo.

IHU On-Line – O que explicaria uma cidade tão pequena como Concord ter sido o epicentro do Transcendentalismo Americano?

O que ele escreveu sobre esta experiência no ensaio hoje conhecido como ‘Desobediência Civil’ tem sido uma influência fundamental ao redor do mundo

Jeffrey Cramer – Simplesmente porque Emerson, ele mesmo o epicentro do Transcendentalismo Americano, mudou-se para Concord em 1835. Ele havia morado lá temporariamente um ano antes, com seu avô emprestado, Ezra Ripley, em Old Manse (que ficou famosa com Nathaniel Hawthorne) e onde Emerson escreveu seu livro, Natureza. Thoreau foi um nativo de Concord. Bronson Alcott [7] mudou-se para Concord em função de Emerson.

IHU On-Line – Thoreau foi um leitor atento de William Paley [8] em Resistance to Civil Government ou estava respondendo a um espantalho criado para fins retóricos?

Jeffrey Cramer – Thoreau leu atentamente Paley. Seja ou não como ‘um espantalho criado para fins retóricos’, Thoreau encontrou algo que o fez sentir compelido a responder. É uma questão aberta o quanto de ‘Resistência ao Governo Civil’ (‘Desobediência Civil’) foi uma resposta direta a Paley ou o quanto Paley foi apenas um trampolim. Thoreau foi um leitor atento, mas também um leitor sem compromissos. Como ele disse: “Quando leio um livro indiferente, parece ser isso a melhor coisa que posso fazer, mas um volume inspirador dificilmente me deixa com tempo livre até finalizar suas últimas páginas. Ele escorrega pelos meus dedos enquanto leio. Ele não cria uma atmosfera na qual possa ser examinado, mas uma na qual seus ensinamentos podem ser praticados. Ele me confere uma tal riqueza que o deixo com o menor dos arrependimentos. O que começo pela leitura devo terminar pela ação.”

IHU On-Line – Qual foi o contato de Thoreau com o Unitarismo? Houve alguma repercussão duradoura em seus escritos?

Jeffrey Cramer – Ele foi batizado na Igreja Unitarista, mas quando adulto desligou-se por escrito, cortando oficialmente os laços. Ele não foi um defensor da religião formal e manteve uma visão panteísta sobre Deus e a espiritualidade. O que ele experimentou em primeira mão em relação à divindade dentro de todos nós, não poderia ser encontrado em nenhuma religião.

IHU On-Line – As atividades de Thoreau junto a Underground Railroad [9] seriam seu mais efetivo exemplo de desobediência civil? De que forma isso estaria expresso?

Jeffrey Cramer – Certamente isso seria um exemplo claro – abrigar pessoas escravizadas fugitivas, alimentá-las, cuidá-las para que ficassem saudáveis novamente, comprar as passagens de trem e vê-las seguras em seu caminho para o Canadá –, embora tenha ficado mais famosa a noite que passou na cadeia como uma forma de protestar contra um governo que permitiu a existência da instituição da escravidão. O que ele escreveu sobre esta experiência no ensaio hoje conhecido como ‘Desobediência Civil’ tem sido uma influência fundamental ao redor do mundo sobre as obrigações do indivíduo de lutar contra a injustiça.

IHU On-Line – Seria possível rastrear o esforço autobiográfico dos Diários em alguma inspiração na literatura clássica? De onde nasce o interesse quase obsessivo de Thoreau por relatos na primeira pessoa do singular?

Jeffrey Cramer – De fato surgiu a partir de uma discussão que ele teve com Emerson, que talvez foi sua maior influência, na qual Emerson perguntou a Thoreau: “Você mantém um diário?” Daquele dia em diante Thoreau escreveu em seu diário quase até, em seu último ano, estar doente demais para fazê-lo.

IHU On-Line – Em sua prestação de contas no capítulo Economy, Thoreau nos diz que gastou U$ 28,12 para os materiais de sua cabana. Você alguma vez se perguntou qual seria este valor atualizado em dólares nos dias de hoje?

Jeffrey Cramer – Aproximadamente U$ 860,00 nos dias de hoje.

IHU On-Line – Como seria uma conversa cara a cara entre Donald Trump e Thoreau? Algum tópico urgente?

Jeffrey Cramer – Não aconteceria. Thoreau teria considerado uma perda do seu tempo discutir questões políticas com um político.

IHU On-Line – O senhor poderia nos oferecer um breve relato pessoal de suas atividades no The Walden Woods Project? E também sobre a importância do Thoreau Institute para preservação do legado thoreauniano?

Jeffrey Cramer – Como Curador de Coleções para o Projeto Walden Woods, mantenho a mais ampla coleção de materiais relacionados a Thoreau no mundo. Ajudo pessoas com suas pesquisas em todos os aspectos e em todos os níveis, desde estudiosos ganhadores do Prêmio Pulitzer até estudantes do colegial, de escritores a entusiastas, seja na biblioteca do Instituto Thoreau ou por e-mail, ou até mesmo conversando com estudantes ao redor do mundo em nosso programa ‘Skype na sala de aula’.

Thoreau teria considerado uma perda do seu tempo discutir questões políticas com um político

Ao colecionar toda obra de e sobre Thoreau em um único local – mais de 60.000 itens que incluem livros, manuscritos, revistas, arte, música, mapas, panfletos, cartas e histórias pessoais –, somos os zeladores de seu legado. Não há coleção comparável em algum outro lugar.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Jeffrey Cramer – Seguidamente Thoreau é desconsiderado por aqueles que o conhecem pela reputação ou pelo mito, mas que não tiraram um tempo para realmente ler suas obras. Eu recomendaria a qualquer um que tem curiosidade sobre este autor americano icônico que pegue um de seus livros ou ensaios ou uma seleção de seus Diários e veja por si mesmo. Pode ser uma das melhores coisas que farão.

Notas:

[1] Idealismo Alemão: Tem raízes na história da cultura alemã. Mas nem por isso pode ser considerado um fenômeno, por assim dizer, “nacional”. Antes deve ser visto no horizonte de diferentes formas de influência, recepção e aculturação, em que o idealismo alemão interagiu com outros elementos da história cultural europeia, como a ciência, a religião, a arte, o direito e a política. (Nota da IHU On-Line)

[2] Transcendentalismo Americano: movimento literário, político e filosófico com forte influência tanto do Romantismo Inglês e Alemão como do Idealismo kantiano e pós-kantiano. Originalmente esteve ligado à Igreja Unitarista desenvolvendo sua tese central a respeito da nossa semelhança a Deus por oposição à depravação intrínseca da natureza humana apregoada pelo Puritanismo. (Nota da IHU On-Line)

[3] Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século 19, as quais se tornaram um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador com o título Kant: razão, liberdade e ética. Também sobre Kant, foi publicado o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética. Confira, ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios. (Nota da IHU On-Line)

[4] Frederic Henry Hedge (1805-1890): foi fundador do Transcendental Club, originalmente chamado de Hedge's Club. Além disso foi um ativo desenvolvedor das ideias do Unitarismo e do transcendentalismo, sendo reconhecido como um dos mais famosos professores de literatura germânica nos Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line)

[5] Thomas Carlyle (1795-1881): foi um escritor, historiador, ensaísta e professor escocês durante a era vitoriana. Ele chamou a economia de "ciência sombria", escreveu artigos para a Edinburgh Encyclopædia, e tornou-se um polêmico comentarista social. (Nota da IHU On-Line)

[6] Ralph Waldo Emerson (1803- 1882): foi um famoso escritor, filósofo e poeta estadunidense. Fez seus estudos em Harvard para se tornar, como seu pai, ministro religioso. Foi pastor em Boston mas interrompeu essa atividade por divergências doutrinárias sobre a eucaristia. Em 1833 viaja pela Europa e encontra Mill, Coleridge, Wordsworth e Carlyle, cultivando uma profunda amizade com este último. De volta aos Estados Unidos, começou a desenvolver sua filosofia "transcendentalista", exposta em obras como Natureza, Ensaios e Sociedade e solidão. (Nota da IHU On-Line)

[7] Amos Bronson Alcott (1799-1888): foi um pedagogo e pedagogista americano. Amigo de Ralph Waldo Emerson e de Henry David Thoreau, devotou muito de sua vida à educação. Nos anos 1840, Alcott ajudou a fundar duas cooperativas comunitárias – Brook Farm e Fruitlands. Esta última era uma comunidade vegetariana onde os membros evitavam até sapatos de couro. Durou muito pouco, menos de um ano e nem chegou ao inverno de 1844. (Nota da IHU On-Line)

[8] William Paley (1743-1805): teólogo e filósofo britânico, autor da obra Natural Theology. Argumentou que a complexidade e adaptações dos seres vivos eram prova da intervenção divina na criação. (Nota da IHU On-Line)

[9] Underground Railroad: era uma rede de rotas clandestinas existente nos Estados Unidos durante o século XVIII, que era usada para a fuga de escravos africanos para os estados do Norte ou para o Canadá, que eram livres da escravidão, com a ajuda de abolicionistas. (Nota da IHU On-Line)

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