07 Mai 2008
“O casamento contemporâneo está cada vez mais centrado na questão da satisfação pessoal dos envolvidos. E isso pode ser muito volúvel, pois com o passar do tempo, os projetos e os desejos podem mudar e se tornarem incompatíveis com os projetos e os desejos do companheiro. Na impossibilidade de equacionar estas diferenças, a separação é vista como a melhor e menos prejudicial alternativa para a vida dos parceiros e até mesmo de seus filhos.” Essa constatação é da professora Glaucia Marcondes, que há dez anos pesquisa as representações e práticas masculinas em relação às conjugalidades que surgem dentro de suas vidas privadas.
Em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, Glaucia falou sobre seu papel como mulher diante de uma pesquisa que tenta entender os homens recasados. Segundo ela, essa tarefa “tem sido sempre instigante, principalmente pelo fato de que muito da abordagem nas ciências sociais sobre as relações familiares, a reprodução, a parentalidade, o cotidiano doméstico e a conjugalidade se pautam na visão feminina”. A professora fala também do comportamento desses homens recasados seja com sua atual família, seja com a mulher e os filhos frutos da relação anterior.
Glaucia dos Santos Marcondes é socióloga, pela Universidade Estadual de Campinas, onde também realizou o mestrado em Antropologia e o doutorado em Demografia. Atualmente, trabalha como assistente de pesquisa Núcleo de Estudos de População – NEPO, da Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como é para a senhora, como mulher, trabalhar a temática de homens recasados?
Glaucia Marcondes - Há mais de dez anos trabalho investigando as representações e práticas masculinas referentes às múltiplas dimensões da vida privada, e as transformações na conjugalidade esta entre elas. Tem sido sempre instigante, principalmente pelo fato de que muito da abordagem nas ciências sociais sobre as relações familiares, a reprodução, a parentalidade, o cotidiano doméstico e a conjugalidade se pautam na visão feminina.
Desta forma, não é muito difícil encontrarmos referências e debates sobre como a vida das mulheres foi e é afetada por elas estarem no mercado de trabalho, por serem também provedoras financeiras de seus lares, de poderem exercer sua sexualidade com um controle mais eficaz da concepção, das mudanças na forma de encarar a maternidade e a relação com os filhos, no enfrentamento das situações de divórcio. Mas o que podemos dizer sobre as experiências masculinas, sobre esses eventos e tantos outros que andam transformando a forma como as famílias vivem? Conhecemos, eu pelo menos posso dizer isso, amigos, irmãos, maridos, homens que não estão de forma alguma apáticos ou indiferentes em relação a estes temas. Como mulher e pesquisadora, digo que afetos, filhos e família também são assuntos de homens.
IHU On-Line - Como fica, segundo sua pesquisa, um homem recasado frente ao dilema de ter ou não filhos com a segunda esposa?
Glaucia Marcondes - Na pesquisa eu pude observar que o nascimento de ao menos um filho do novo casamento é algo esperado e desejável, na medida em que tanto os homens como as parceiras entrevistadas entendem que o nascimento de um filho em comum é o que sela o compromisso do casal enquanto uma família. Isso acontece mesmo quando um ou ambos os parceiros tenham filhos de outros relacionamentos e que alguns destes morem e sejam criados pelo casal. Assim, o filho em comum é considerado um elemento que consolida a nova família. Os problemas surgem quando as mulheres expressam o desejo de ter um segundo ou terceiro filho nesta nova família.
Os conflitos em relação a ter ou não ter mais filhos no novo casamento está relacionado a quatro aspectos: o número ideal de filhos que os homens desejam, o número de filhos que o homem teve no primeiro casamento, o tipo de relação e responsabilidades que o homem mantém com esses filhos e a experiência de maternidade da atual esposa. O ideal para estes homens é não ultrapassar o número total de três filhos.
Mas esse ideal acaba sendo flexibilizado pelas novas experiências conjugais. Então, quando os homens recasam com mulheres que também já tiveram filhos de outras uniões e os enteados (filhos da atual mulher) moram com o casal, há certa concordância em ter um filho ou no máximo dois filhos em comum. Mas quanto maior a prole anterior do homem e no caso dele ainda manter uma convivência mais próxima com eles, maior é a sua resistência em ter mais de um filho com a nova esposa.
Quando o homem recasa com uma mulher que era solteira e não tinha filhos, os conflitos sobre ter um segundo ou terceiro filho da nova mulher são mais intensos. Pois, nestes casos, a parceira tende a ser mais insistente sobre sua vontade de formar uma família sua com dois ou três filhos. Nestas situações, os homens dizem que passam a ficar mais atentos quanto ao controle da concepção. Isso não quer dizer que eles se previnam, utilizando métodos contraceptivos como a camisinha, mas que “ficam mais em cima” das companheiras pra saber se elas estão se cuidando ou, quando o casal já teve o segundo filho, convencê-la a fazer a laqueadura.
O fato é que nesta negociação com a nova parceira os homens se vêem diante de um dilema: de um lado está o desejo deles de não ficar tendo “um monte” de filhos com cada esposa, pois isso pode implicar em uma imagem social negativa para eles, de homem irresponsável, que não tem controle, que “bota filho no mundo, mas não consegue cuidar”. Por outro lado, há uma forte valorização da maternidade e o reconhecimento de que o desejo feminino por ter filhos é algo natural e legítimo. Desta forma, percebem que o desejo feminino de ter filho tem precedência sobre o desejo masculino de não querer ter mais filhos. O resultado disso é que na maioria das vezes os homens acabam tendo uma prole maior do que inicialmente desejavam.
IHU On-Line - A senhora trata principalmente da história de vida dos homens de baixa renda. Por que esse grupo não interessa a outros pesquisadores e à mídia?
Glaucia Marcondes - Creio que não há falta de interesse, ao contrário, temos uma vasta produção científica na área das ciências sociais sobre famílias trabalhadoras, de camadas populares, de baixa renda – e tantas outras denominações que dependem do recorte teórico utilizado – e no qual as histórias de vida masculinas são contempladas. Contudo, podemos observar uma concentração maior de trabalhos voltados para questões pontuais sobre os homens pobres como a violência, o alcoolismo, o subemprego ou desemprego, a ausência paterna e os comportamentos sexuais.
O que difere, por exemplo, dos temas mais comuns nos estudos sobre os homens pertencentes aos segmentos médios da sociedade, que enfatiza o impacto de mudanças nos comportamentos com relação às mulheres, aos filhos, ideais de maior igualdade e companheirismo nos relacionamentos, os espaços de sociabilidade e do trabalho e assim por diante. O que também é bem diferente do que acontece com os estudos sobre as mulheres onde a variação temática e de perspectivas (fazendo comparações que consideram a condição de raça e classe) são muito maiores.
E isso, de alguma forma, reflete também nas abordagens feitas pela mídia. Não há outra forma de mudar isso senão incentivarmos a ampliação dos estudos sobre os homens, refletindo e obtendo mais informações sobre a diversidade de histórias e de comportamentos masculinos e femininos nos diferentes estratos sociais.
IHU On-Line - Segundo sua pesquisa, quantas famílias são reconstituídas pela nova união desses homens em média no Brasil?
Glaucia Marcondes – Infelizmente, as informações do Censo Demográfico e das Pesquisas Nacional por Amostra de Domicílios (PNADs), que constituem nossas principais fontes sobre a composição dos domicílios e das famílias brasileiras, não possibilitam mensurar a proporção de famílias formadas por casais, onde um ou ambos os parceiros são recasados. E nem em quantas das famílias com casais e filhos há enteados. Essas e outras lacunas nas fontes de dados sobre a dinâmica da população brasileira há tempos têm sido debatidas por demógrafos, estatísticos e estudiosos de várias áreas buscando melhorias na captação das informações sobre as famílias e os arranjos domésticos. Melhorias que permitam avaliar o impacto dos divórcios, das separações e das novas uniões na família.
Os dados do Registro Civil mostram que nos últimos vinte anos as taxas de divórcios e separações judiciais exibem um comportamento de crescimento constante, enquanto as de primeiros casamentos estão em queda. Outro aspecto que se destaca é o aumento nas proporções de casamentos envolvendo pessoas divorciadas. Em 1984, representavam 5% dos registros de casamentos realizados no país, em 2006, representaram 17%. Neste montante de casamentos de pessoas divorciadas, pouco mais da metade era de casamentos de homens divorciados com mulheres solteiras.
Contudo, esses dados dizem respeito apenas àqueles que recasaram oficialmente. Não sabemos nada sobre aqueles que vivem em união consensual, nem quem casa, descasa e recasada consensualmente, nem de quem troca de modalidade de união ao recasar. Ou seja, passa de uma primeira união consensual para uma segunda formal, ou vice-versa.
A boa notícia é que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem aberto canais de discussões com especialistas, técnicos e acadêmicos, buscando alternativas para melhorar a captação destas informações no Censo de 2010 e nas demais pesquisas nacionais realizadas pela instituição.
IHU On-Line - Por que, em sua opinião, os casamentos não duram tanto quanto antigamente?
Glaucia Marcondes - A maior aceitação social da separação conjugal, a diminuição de certos preconceitos como os que existiam até pouco tempo atrás em relação à mulher separada e aos filhos de casais separados, as maiores oportunidades de trabalho e de remuneração para as mulheres são fatores que de fato contribuem para que as pessoas, principalmente as mulheres, não permaneçam em relacionamentos que considerem pouco satisfatórios. Os referenciais e as expectativas sobre o que é um bom casamento, o que é ter um (a) bom (a) companheiro (a) foram se modificando diante da diversidade de projetos e de possibilidades sociais que os avanços tecnológicos e as transformações socioeconômicas mais recentes têm proporcionado.
Isso dá espaço para mudanças de comportamento também. Pudemos observar ao longo dos últimos trinta anos a disseminação de ideais de igualdade de gênero, de autonomia econômica e pessoal das mulheres. Desta forma, relações autoritárias ou de submissão passam a ser mais contestadas e rejeitadas. O casamento contemporâneo está cada vez mais centrado na questão da satisfação pessoal dos envolvidos. E isso pode ser muito volúvel, pois com o passar do tempo, os projetos e os desejos podem mudar e se tornarem incompatíveis com os projetos e os desejos do companheiro. Na impossibilidade de equacionar estas diferenças, a separação é vista como a melhor e menos prejudicial alternativa para a vida dos parceiros e até mesmo de seus filhos.
IHU On-Line - Que papel esses homens recasados têm na vida dos filhos do primeiro casamento, geralmente? Há ausência na vida dos filhos que afete de forma singular o seu futuro?
Glaucia Marcondes - No grupo dos homens que entrevistei, a maioria não manteve um vínculo muito próximo com os filhos do primeiro casamento. O contato com os filhos após a separação e a saída de casa era eventual, e é ainda mais raro depois que eles iniciaram o segundo casamento. A ajuda financeira era esporádica e tendia a se restringir a situações de extrema necessidade, como pagar tratamento médico para as crianças, fazer compras de supermercado quando a mulher estava sem emprego, fazer concertos na casa. Na maioria dos casos não havia uma contribuição financeira sistemática. Para estes homens esse afastamento chega a ser algo necessário principalmente quando eles estão em um novo relacionamento.
Eles tendem a concentrar sua dedicação, afeto e recursos financeiros na nova família. Quando, por alguma razão, precisam dividir atenções entre as duas famílias – a anterior e a atual – os conflitos geralmente são deflagrados.
Mas houve situações completamente opostas. Os homens que continuaram morando no mesmo bairro ou que os filhos continuavam a freqüentar a casa dos parentes do pai após a separação conseguiram manter uma convivência mais próxima, inclusive depois do recasamento. Nestes casos, pude observar um esforço maior dos homens em promover uma convivência mais próxima entre os filhos do primeiro casamento e os da nova união. De que forma cada um desses processos – afastamento ou aproximação – afetam os filhos é uma questão que eu não explorei, mas que merece uma apreciação cautelosa.
IHU On-Line - E, depois de sofrer o processo de separação, em quanto tempo, em média, acontece o segundo casamento para os homens? E para as mulheres?
Glaucia Marcondes - Particularmente, me surpreendi com a rapidez da entrada em uma nova união por parte dos homens e das mulheres entrevistadas. Entre os homens, o início da segunda união aconteceu em média um a um ano meio depois da separação. As mulheres que recasaram este tempo foi de cerca de três a quatro anos. Procurando entender um pouco este processo de recasamento observei através dos relatos masculinos que a vida de homem separado é vista como solitária e socialmente negativa. No meio social em que eles circulam, ser um homem adulto, solteiro, sem uma família para cuidar é alguém que é visto com desconfiança, sem credibilidade.
Ainda mais porque quando estão separados, eles voltam a circular pelos bares, pelos churrascos depois dos jogos de futebol, a sair com mulheres com quem não mantém relacionamentos fixos. O respeito e a credibilidade social estão no fato de serem homens de família, de terem sob seus cuidados um lar, uma esposa e filhos. Quando estão separados eles perdem não apenas os benefícios de ter cama, comida e autoridade, mas também este reconhecimento social. Foram comuns as queixas masculinas sobre se sentirem esquecidos ou excluídos de festas familiares que antes freqüentavam. Desta forma, ter uma nova companheira era algo desejável para a maioria dos homens entrevistados. Para as mulheres, o processo é diferente. Durante a separação, várias delas encontram apoio emocional e financeiro de sua rede de parentes e vizinhos.
E diante das experiências negativas com o primeiro casamento e também em função dos filhos que ficam exclusivamente sob os cuidados delas, elas se mostram muito mais cautelosas quanto a assumirem um novo casamento. Isso não quer dizer que elas não desejem um novo companheiro para dividir as alegrias e tristezas tanto quanto os homens, mas elas parecem seguir o velho ditado “antes só do que mal acompanhada”.
IHU On-Line - Quais são as exigências de cada um para partir para um segundo casamento?
Glaucia Marcondes - As expectativas não são muito diferentes do que tinham em relação ao primeiro casamento. Querem companheirismo, atenção e respeito. Os homens esperam que as companheiras sejam esposas trabalhadeiras e acima de tudo mães cuidadosas. A maternidade é algo muito valorizado por estes homens. As mulheres esperam que os novos maridos sejam homens que se dediquem ao trabalho e à família, que não sejam consumidos por vícios como a bebida, os jogos e as outras mulheres.
Elas também esperam que os atuais maridos tratem bem os filhos que são apenas dela. Essa talvez seja a maior preocupação das mulheres, que receiam que os companheiros rejeitem ou maltratem os filhos que não são dele. A maior expectativa realmente é reconstruir ou retomar um projeto familiar que fora interrompido com a separação.