A Terra Prometida de Mahalia Jackson e Martin Luther King

Mahalia Jackson (Fonte: Wikimedia Commons)

28 Agosto 2020

Se tivesse nascido algumas décadas antes, sua voz teria ressoado nas plantações de algodão e açúcar da Luisiana. Mas nasceu em 1911, em um bairro pobre de Nueva Orleans, cercada de irmãos e com um pai que era estivador durante o dia, barbeiro à tarde e diácono aos domingos. Ainda muito menina, perdeu sua mãe e foi viver na casa da tia Duke, uma mulher rigorosa que detestava os ritmos profanos. Mahalia cresceu cantando hinos em celebrações e escutando às escondidas os discos de Ma Rainey e Bessie Smith, que seu primo dispunha.

A reportagem é de Mireya Hernández, publicada por El Cultural, 27-08-2020. A tradução é do Cepat.

Com 13 anos, precisou deixar o colégio e começar a trabalhar de lavadeira. Nunca aprendeu a ler música, mas se uniu a vários coros e logo se tornou solista. Já em Chicago, quando não estava em turnê com um quinteto gospel, apresentava-se em pavilhões, salões de baile, funerais, festas e locais transformados em igrejas. Para onde ia, esta mulher enorme e majestosa impunha respeito. “Canto a música de Deus porque me faz sentir livre”, disse uma vez. O blues, ao contrário, não tinha esse poder. “É a música das pessoas deprimidas, que estão em um buraco profundo pedindo ajuda a gritos. Mas em minhas canções há alegria e esperança”.

Em sua nova cidade, conheceu o compositor Thomas A. Dorsey e abriu um salão de beleza e uma floricultura. Quando se apresentava, tinha tanta energia que as presilhas que prendiam os cabelos saltavam pelo ar. Ao vê-la, as pessoas dançavam, choravam, gritavam de puro êxtase. O single “Move on Up a Little Higher”, lançado em 1948 por Apollo, vendeu oito milhões de cópias em todo o mundo. Dois anos depois, Mahalia se apresentou várias vezes no Carnegie Hall de Nova York, diante de um auditório repleto. E as congregações que inicialmente a haviam rejeitado, abriram suas portas para ela.

Esta neta de escravos que começou a cantar porque se sentia só, encheu os teatros europeus em 1952. Em Paris, era chamada de “anjo da paz”. Mas apesar do êxito, os puristas do gênero a criticavam por bater palmas e bater os pés no solo. Eles a acusavam de trazer o jazz para a igreja, algo que ela sempre evitou e que lhe custou um divórcio e uma trombada com Columbia.

Já era a rainha indiscutível do gospel quando conheceu Martin Luther King em uma convenção batista do Alabama. Alguns meses antes, em Montgomery, haviam prendido Rosa Parks por não ceder seu assento a um homem branco no ônibus, e King, o reverendo Abernathy e Edgar Nixon haviam iniciado um boicote na cidade. Naquele dia de agosto de 1956, King pediu à artista que fizesse um concerto para apoiar a causa, e em dezembro, duas semanas após a apresentação e depois de várias ameaças de morte, a segregação nos ônibus foi declarada inconstitucional. Meses mais tarde, Jackson voltou a acompanhar King na Peregrinação pela liberdade de Washington, D.C. Havia acabado de completar o terceiro aniversário do Caso Brown contra o Conselho de Educação, mas continuava havendo discriminação nas escolas.

Nos anos seguintes, Jackson se apresentou com Duke Ellington, no Festival de jazz de Newport, apareceu no filme de Douglas Sirk, “Imitação da vida”, cantou na posse de Kennedy e colaborou com Louis Armstrong, Nat King Cole, Percy Faith e Harpo Marx. E embora seja verdade que diante o público branco adotava uma atitude mais formal e serena do que diante de uma audiência negra, para ela não havia diferença entre se apresentar no Philharmonic Hall ou em uma prisão. King sabia disso (“uma voz como a sua não nasce a cada século, mas a cada milênio”, declarou após um sermão em uma igreja de Chicago, onde sua amiga interpretou “Joshua Fit the Battle of Jericho”) e quis que ela estivesse ao seu lado na luta pelos direitos civis. “É uma benção para mim [e] uma benção para os negros que graças a ela aprenderam a não se envergonhar de sua herança”, confessou em 1964.

Admirador de Gandhi e de Thoreau, o pastor batista acreditava na resistência não violenta. “A principal debilidade da violência”, dizia, “é que (...) gera o mesmo que busca destruir. Em vez de enfraquecer o mal, multiplica-o”. No livro que publicou em 1958, ampliava a ideia: “Com frequência, os homens odeiam uns aos outros porque têm medo. Têm medo porque não se conhecem, não se conhecem porque não podem se comunicar, não podem se comunicar porque estão separados”. Mahalia, que tinha visto como uma bala atravessava uma janela de sua casa recém-comprada em um bairro branco de Chicago, desejava estender uma ponte entre eles. “Tenho a esperança de que meu canto acabe com o ódio e o medo que separa os brancos dos negros nesta nação”.

E assim, o futuro Prêmio Nobel da Paz e a mulher negra mais poderosa dos Estados Unidos, segundo Harry Belafonte, chegaram a Washington, em agosto de 1963. Desde outubro do ano anterior, estiveram juntos em todos os eventos organizados pela Conferência Sul de Liderança Cristã. O apoio de Jackson, tanto moral como financeiro, tornou-se imprescindível durante os meses em que King falou para milhares de pessoas, no Alabama e em Detroit, e contou o seu sonho: algum dia, seus filhos brincarão com os filhos dos brancos e qualquer pessoa poderá votar, comprar uma casa e ter um emprego digno.

Na véspera do dia 28 de agosto, Martin ainda não sabia o que iria dizer na marcha. Tinha um rascunho incompleto e cada assessor lhe sugeria uma coisa, sendo assim, enfiou-se em seu quarto do Hotel Willard e ficou escrevendo até as quatro da madrugada. Na manhã seguinte, comunicaram-lhe que havia muito menos pessoas que o esperado, mas pouco a pouco foram chegando ônibus e trens e as ruas se encheram de manifestantes procedentes de todo o país. Centenas de jovens entoaram “We Shall Overcome”, o hino não oficial do movimento, que Mahalia também interpretou diante de Gandhi, um ano antes de morrer.

Duzentos e cinquenta mil pessoas se reuniram ao redor do Monumento a Lincoln. Após vários discursos e as apresentações de Dylan e Joan Baez, entre outros, Jackson cantou “I’ve Been Buked and I’ve Been Scorned” e “How I Got Over”. Sua voz se elevava sobre a dos participantes, que sentiam como próprias as humilhações e a capacidade de superação que descrevia a contralto. King, sentado muito perto dela, gritava seu nome enquanto batia com as mãos nos joelhos. Um jornalista que cobria o evento para a CBS News, disse ao ouvi-la: “Todos os discursos do mundo não conseguiriam a resposta que estes hinos tiveram”.

Por fim, chegou a vez de King. Estava exultante. Com os olhos fixos em seu texto, apelou à Bíblia, a Proclamação de Emancipação, a Declaração da Independência e a Constituição e quando estava chegando ao final, pulou algumas frases e anunciou que aquela situação injusta não demoraria a mudar. “Fala-lhes do sonho, Martin!”, gritou Mahalia, a alguns metros de distância. E ele distanciou os olhos de suas notas, olhou para a multidão e contou o sonho de liberdade e igualdade que todos conhecemos.

Mas a magia desapareceu em seguida. Em maio de 1964, segregacionistas da Flórida incendiaram as moradias de duas crianças negras e forçaram as famílias de outros a sair da região. Os ativistas, detidos ou lançados ao mar pela polícia, não contra-atacaram e, em julho, foi aprovada a Lei dos Direitos Civis.

Caía napalm ao sul de Saigon, quando King começou a protestar contra a guerra do Vietnã e a redigir sua campanha pela justiça social. No dia 4 de abril de 1968, na sacada do Hotel Lorraine de Memphis, uma bala lhe atravessou a garganta. Na noite anterior, havia pronunciado um discurso profético no qual falava sobre a Terra Prometida. Em seu multitudinário funeral, Jackson cantou “Take My Hand, Precious Lord”. King tinha 39 anos, mas seu coração era o de um homem de 60.

O mesmo tema, interpretado por Aretha Franklin, soou quando morreu Mahalia, em 1972, e duas longas comitivas, uma em Chicago e outra em Nova Orleans, despediram em silêncio da rainha do gospel.

 

 

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