20 Novembro 2018
Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco tem advertido consistentemente contra a reversão ao gnosticismo e ao pelagianismo. Neste texto, o correspondente em Roma do La Croix, Nicolas Senèze, examina o pelagianismo.
O texto foi publicado em La Croix International, 17-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos anos 380-390, um monge britânico chamado Pelágio começou a pregar em Roma a um grupo aristocrático que rapidamente formou uma “elite da virtude” ao seu redor. Ele ensinava que, por causa do livre arbítrio, os cristãos podem alcançar a santidade através do seu próprio poder.
À medida que seu pensamento se desenvolveu, ele minimizou o papel da graça divina na resposta humana ao chamado de Deus.
A doutrina de Pelágio se espalhou rapidamente. No norte da África, Santo Agostinho de Hipona (354-430) se opôs formalmente a ela. Em 418, o Concílio de Cartago afirmou que, por causa do pecado original, a graça divina era absolutamente essencial para fazer boas obras.
Agostinho condenou Pelágio e “qualquer um que diga que (...) se a graça não fosse dada, ainda poderíamos, embora com menos facilidade, observar os mandamentos de Deus sem ela”.
Essa condenação foi reiterada no Concílio Ecumênico de Éfeso em 431.
Os esforços de Agostinho não impediram que as ideias pelagianas se espalhassem, especialmente nas comunidades monásticas da Gália, onde alguns temiam que uma ênfase excessiva na graça divina levasse a um afrouxamento dos esforços humanos para alcançar a santidade.
Em torno das abadias de Lérins e de São Vítor de Marselha, surgiu então o semipelagianismo, que ensinava que os humanos poderiam cooperar com a própria salvação, dando, sem a ajuda da graça, um primeiro passo em direção a Deus, que poderia, então, completar a obra da redenção.
Agostinho se opôs firmemente a essa ideia do semipelagianismo. Após sua morte em 430, seus discípulos, liderados pelo leigo São Próspero de Aquitânia (c. 390-463), se opuseram aos bispos do sudeste da Gália por um longo tempo.
A disputa continuou por mais de um século, com exageros de ambos os lados. Alguns dos seguidores de Agostinho rejeitavam qualquer noção de livre-arbítrio, chegando até a abraçar a ideia da predestinação absoluta da alma.
Em 472, uma reunião de um concílio local em Arles rejeitou essas ideias e seus proponentes, especialmente “aqueles que dizem que o trabalho de obediência humana não deveria estar ligado à graça de Deus” e “aqueles que ensinam que, após a queda do primeiro mortal, o livre arbítrio foi inteiramente extinto”.
Foi apenas em 529 que o Concílio de Orange, liderado por São Cesário de Arles, se levantou contra todos aqueles que atribuíam um papel maior ao livre-arbítrio: “Se alguém afirma que algumas pessoas podem alcançar a graça do batismo através da misericórdia, e outros através do livre-arbítrio, que é claramente anulado em todos aqueles nascidos da queda, mostra que é um estranho à verdadeira fé”.
No entanto, o debate entre graça e livre-arbítrio continuou por séculos. Quando os luteranos afirmaram o papel preponderante da graça (sola gratia, ou “somente a graça”), o Concílio de Trento, mesmo lembrando o papel predominante da graça, também afirmou o livre-arbítrio da pessoa em relação a Deus. Um livre-arbítrio “enfraquecido e desviado”, mas não “extinto”.
O concílio também lembrou que somos “livremente justificados, porque nada que preceda essa justificação, seja a fé ou as obras, merece essa graça”.
Hoje, o Catecismo da Igreja Católica recorda que, “em relação a Deus, não há, da parte do homem, mérito no sentido de um direito estrito” e que, “uma vez que, na ordem da graça, a iniciativa pertence a Deus, ninguém pode merecer a graça primeira, que está na origem da conversão, do perdão e da justificação” (nn. 2007 e 2.010).
No contexto da doutrina católica, o Papa Francisco nunca deixa de nos lembrar que “Dios nos primerea”, usando uma palavra da gíria de rua de Buenos Aires, que significa que Deus sempre nos supera ou nos “primeireia”, sempre dá o primeiro passo. “Deus nos precede e sempre nos espera, está à nossa frente.”
Em sua exortação apostólica de 2013, Evangelii gaudium, Francisco denunciou o “neopelagianismo autorreferencial e prometeico de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado” (n. 94)
Em fevereiro de 2018, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma carta sobre “certos aspectos da salvação cristã”, chamada Placuit Deo. Ela esclareceu as palavras do papa, advertindo que “prolifera em nossos tempos um neopelagianismo em que o homem, radicalmente autônomo, pretende salvar-se a si mesmo sem reconhecer que ele depende, no mais profundo do seu ser, de Deus e dos outros”.
“A salvação é então confiada às forças do indivíduo ou a estruturas meramente humanas, incapazes de acolher a novidade do Espírito de Deus”, dizia a carta.
Francisco reiterou isso novamente na Gaudete et exsultate, uma exortação sobre a santidade que ele emitiu em abril passado. Ele lamentou que os neopelagianos “costumam transmitir a ideia de que tudo se pode com a vontade humana, como se esta fosse algo puro, perfeito, onipotente, ao qual se acrescenta a graça” (n. 49).
Ele prosseguiu alertando que “a graça, precisamente porque supõe a nossa natureza, não nos faz improvisamente super-homens. Pretendê-lo seria confiar demasiado em nós próprios”.
Especificamente, ele pôs em questão atitudes que se encontram bem fora da oposição entre conservadores e progressistas: “A obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial” (n.57).
Desse modo, o papa está advertindo contra um certo tradicionalismo esvaziado de significado, tanto quanto contra um ativismo indiferente à relação pessoal com Deus.
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Pelagianismo, entre graça e livre-arbítrio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU