17 Dezembro 2012
"Reciclando o lixo que recolhe, através da reutilização dos materiais e devolvendo matéria-prima para as indústrias, o papeleiro está também dando uma Boa Notícia. Anuncia a nova sociedade que vem por aí, nesta era da ecologia, quando estaremos todos de bem com a vida, em harmonia com a natureza. Ele mesmo, como carrinheiro novo, sacudindo seu individualismo, trabalhando em mutirão, em associação com seus companheiros, através de uma economia solidária, anuncia as novas relações en¬tre os seres humanos", escreve Antonio Cechin, irmão marista, agente de Pastoral em diversas periferias da região metropolitana de Porto Alegre, assessor de Comunidades Eclesiais de Base do Rio Grande do Sul, dos catadores e recicladores, coordenador do Comitê Sepé Tiaraju e da Pastoral da Ecologia do Regional Sul-3 da CNBB, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010).
Segundo ele, "o princípio básico da nova sociedade, da qual a organização dos carrinheiros é uma pequena amostra, é este: “De cada um de acordo com suas possibilidades para cada um de acordo com suas necessidades”. Colaboração e solidariedade a toda prova".
Eis o artigo.
Se há um grupo humano que pode ser considerado símbolo por excelência dos oprimidos, é bem o dos catadores, papeleiros ou carrinheiros. A opinião pública costuma designá-los simplesmente por lixeiros. Vítimas que são do pior dos preconceitos, há quem se permita o luxo de buzinaços atrás deles nas sinaleiras, de dentro de automóveis. Se isso já não bastasse, na cruzada, ainda lhes atiram, de lambuja, algum palavrão.
Depois de mais de uma dezena de anos de inserção em periferias, fomos impactados pela quantidade desses carrinheiros que circulam hoje em dia pelas cidades, arrastando pelas ruas pesadas cargas de até 300 quilos, quais autênticos animais de tração, explorados por todo tipo de intermediários que, às vezes, não lhes pagam mais que uma simples garrafa de cachaça.
Misereor super turbam!... Tenho compaixão deste povo (Mt 15,32), foi o desabafo de Jesus ao contemplar a multidão carente e sofrida de sua terra. Idêntico sentimento foi tomando conta de nós. Como ajudá-los a se ajudarem? Como organizá-los? Outra saída não vimos para gente pobre em demasia como essa, que não seja muita união e organização. Aliás, mutirão, comunidade, deitam suas raízes na própria práxis de Jesus de Nazaré. Sempre que se deparava com algum doente, alguém sofrendo, Jesus “adoecia” de uma espécie de pressite aguda. Corria em direção ao desventurado a fim de curá-lo do sofrimento e da doença.
Depois de bordagens aqui e acolá, nas ruas, esquinas e praças da cidade, e de um certo acompanhamento em seu dia a dia, começou a crescer dentro de nós, a convicção de que deveríamos arranjar um espaço no centro - ou quase centro - da cidade, a fim de que tivessem condições mínimas de trabalho.
Com o andar dos dias, não sem pouca consulta aos próprios interessados, eis que chegara a hora de “fazer a cobra fumar!”. “Deus ajuda a quem cedo madruga”, diz a sabedoria popular. “A luta faz a lei!” costumam sentenciar os mais afoitos dos Movimentos Populares.
Uma primeira etapa foi consumida em tentativas de persuasão, junto à Administração Popular de Porto Alegre. Chegamos até a sugerir três áreas passíveis de cedência, nem que fosse a título precário. Mais tarde, feita uma experiência-piloto, voltaríamos a conversar e a encaminhar melhor as coisas. O caminho se mostrou infrutífero. De repente, é o próprio Deus a nos mostrar que vai à nossa frente. Aí nos lembramos do alerta de Jesus: “O Pai trabalha sempre” (Jo 5,17). Se não tivéssemos fé, diríamos que teria sido fruto de mero acaso, uma dessas coisas que, pelos caminhos naturais, não se explicam de jeito nenhum. Demos de cara, na zona norte de Porto Alegre, na Vila Farrapos, com um casal de obreiros da Igreja Evangélica “Assembleia de Deus”. Gente pobre. Ele, da construção civil, “havia passado para o papel” conforme expressão dele, quando da grande onda de desemprego, em meados da década de 80. Ela, negra, vinha de movimentos populares, trabalhadeira que só vendo!... Assessorados por alguns profissionais liberais, haviam conseguido pessoa jurídica para uma cooperativa de carrinheiros. Era mais cooperativa-fantasma que de verdade.
Para que criarmos novo grupo, se já existia vontade de ser mais, entre gente pobre, antes que nós chegássemos. Juntamos esforços, dentro do mais sadio ecumenismo. Botamos a cabeça para funcionar em torno do grande objetivo: conseguir uma área. Os encontros eram sempre iluminados por passagens bíblicas e orações. Tudo foi ficando claro para nós: os pobres carri¬nheiros estavam aí, explorados por to¬dos os lados. Exerciam, em favor da cidade, um dos serviços mais importantes, particularmente nesta nossa era da ecologia, a custo zero para os cofres públicos, mas nossa sociedade continuava insensível ao seu clamor manifestado não em palavras, mas em ações concretas na busca desenfreada por resíduos sólidos. Se as pessoas não tem olhos para ver, ouvidos para ouvir e coração para sentir, Deus, em compensação, é todo atenção e cuidados ao mínimo gemido dos oprimidos. “Eis que ouvi os clamores do meu povo” diz Ele pela boca de Moisés no livro do Êxodo (Ex 3,7). Cheios de fé, abraçados com Deus, intuímos que tínhamos que conquistar o nosso espaço.
O Mestre Jesus diz que quando al¬guém parte para uma guerra com 5.000 soldados a fim de enfrentar um inimigo que vem com 10.000, deve pensar direitinho se tem chance de vitória. Do contrário, antes de empreen¬der a batalha, manda alguém à frente, com bandeira branca, a fim de negociar a paz (Lc 14,31-33).
Comparamos as forças do lado ou seja do poder, com as de cá ou seja das nossas, dos carrinheiros. A Prefeitura do Município, com todo seu império baseado em leis, regulamentos e toda uma parafernália de secretarias, funcionários, furocracia, etc. Um autên¬tico Golias. Aqui nós, assessores, grudadinhos aos excluídos carrinheiros. Assessores, porém com todo um passado de lutas, de organização de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e Movimentos Populares, com nossos títulos e nossas influências, tais como o fato de termos sido professores de gente ilustre que anda por aí, em cargos públicos e alhures, em lojas, indústrias, etc.
Os carrinheiros, precisamente por serem fracos, armados com a força mesma de Deus, a “força histórica” dos pobres”, na expressão de Gustavo Gutierrez, fundador da Teologia da Libertação. Sentimo-nos legítimos herdeiros do jovem Davi com sua funda ou bodoque. O dia D do grande embate se avizi¬nhava. "Sede astutos como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,16), é um dos motes deixados por Jesus. Em outro trecho do Evangelho, Ele lastima que “os filhos deste século sejam mais prudentes do que os filhos da luz” (Lc 16,8).
Montada a estratégia, dividimos as ta¬refas. O casal de obreiros, chefes da cooperativa, convocariam 20 compa¬nheiros, trabalhar-lhes-iam as consciências e nós trataríamos de arranjar os 20 carrinhos. Cada unidade de tração humana – carrinho do tamanho de uma carroça – estava orçada em 280 reais, o que perfazia a soma total de 5.600 reais. De um jeito ou de outro teríamos que "descolar essa grana", como eles diziam. O Espírito Santo, que é o Espírito de Jesus, a Divina Luz, desceu sobre nós e nos iluminou, fornecendo-nos um caminho fácil de obter dinheiro. Batemos às portas de um ex-aluno, diretor ao mesmo tempo do Banrisul e da Caixa Econômica Estadual, e oferecemos a lateral dos carrinhos como espaço de propaganda para Banco RS e Caixa Estadual, pelo tempo de um ano, em troca do valor dos veículos a serem fabricados. A idéia foi aceita e não precisamos desembolsar um único centavo. Ficou acertada a inscrição propagandística nas partes laterais dos carrinhos: “Campanha pelo emprego - Colaboração Banrisul e Caixa Econômica Estadual”.
Na parte traseira dos carrinhos, nosso casal da Assembleia de Deus ou “crentes” queriam que viesse escrita uma frase bíblica, preferencialmente do Antigo Testamento. Conversa vai, conversa vem, apesar de fundamentalistas honestos – como costumam ser os da “Assembléia de Deus” – acabaram aceitando que, bom mesmo é sempre encostar a Bíblia na vida. A partir da realidade do mundo de hoje, qual seria o significado escondido e mais profundo de um carrinheiro, para a sociedade urbana que aí está?...
Lendo juntos o livro do Profeta Jonas “nos caiu a ficha”: conseguimos ver no carrinheiro nada mais nada menos que um autêntico Profeta da Ecologia, bem na linha de Jesus. O educador Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido, afirma que “quanto mais oprimida uma pessoa, tanto mais silenciosa”. Corroborando essa afirmativa, aí está o carrinheiro, o oprimido por excelência das metrópoles de hoje, totalmente silencioso. Se não fala nada, é exatamente porque é todo ação. Nem lhe sobra tempo para discursos. Até parece que nasceu talhado para a práxis.
Com sua ferramenta coletora, o carrinho, circula pelo centro da cidade, recolhendo lixo aqui, ali e acolá. Fazendo isso, como qualquer dos profetas bíblicos, denuncia e ao mesmo tempo anuncia. A um só tempo, dá uma má e uma boa notícia. Como Jonas na cidade de Nínive, o catador, juntando lixo a mais não poder, com esse seu agir frenético, diz que a sociedade consumista, dentro de sua orgia consumista, será destruída (Jn 3,4). A continuar poluindo do jeito que vai, com essas montanhas de rejeitos por toda parte, com essa produção de alimentos à base de agrotóxicos, com essas emanações de gases para a atmosfera que destroem a camada de ozônio, não sobrará ninguém dentro de não muitos anos. A cidade capitalista-consumista está com os dias contados. Os muros que encerram a Nínive ou a Jericó modernas tombarão por si mesmas, sem necessidade de nenhum tiro.
Reciclando o lixo que recolhe, através da reutilização dos materiais e devolvendo matéria-prima para as indústrias, o papeleiro está também dando uma Boa Notícia. Anuncia a nova sociedade que vem por aí, nesta era da ecologia, quando estaremos todos de bem com a vida, em harmonia com a natu¬reza. Ele mesmo, como carrinheiro novo, sacu¬dindo seu individualis¬mo, trabalhando em mutirão, em associação com seus companheiros, através de uma economia solidária, anuncia as novas relações en¬tre os seres humanos. Não mais de explora¬ção, mas relações de cooperação, de solidariedade, de fraternidade, de mútuo auxílio. O princípio básico da nova sociedade, da qual a organização dos carrinheiros é uma pequena amostra, é este: “De cada um de acordo com suas possibilidades para cada um de acordo com su¬as necessidades”. Colaboração e solidariedade a toda prova.
Finalmente raiou o dia D, 27 de setembro de 1994. Às 7 horas de linda manhã primaveril, lá estavam, esperan¬do, os 20 carrinheiros, na porta da fá¬brica, no bairro Niterói, em Canoas. Pelo portão aberto, saem os 20 carri¬nhos novos, com as cores ecológicas e bem brasileiras: o verde e o amarelo. Nas laterais a propaganda bancária e na parte traseira, em letras garrafais: Profeta da Ecologia.
A um sinal de apito do presidente da cooperativa, a partida. Rua a fora, às 7,30 horas, bem na hora do pico matinal. Atravessamos a federal (BR 116), subimos e descemos viadutos, cada carrinheiro com seu apito na boca. Saindo de Canoas, a entrada solene em Porto Alegre, em fila indiana, tão comprida quanto esperança de pobre, medindo mais de 100 metros. A bandeira nacional à frente, ladeada pelo emblema do cooperativismo. Tudo en¬gendrado por eles, para grande surpre¬sa nossa. E depois, há gente que não acredita que, além de pão, o povo tem fome também de organização, de beleza, de ritos.
Engarrafamos o trânsito na avenida Farrapos, na rua Alberto Bins e outras ruas movimentadíssimas a essa hora da manhã. Aqui e ali buzinaria atrás de nós. Adentramos pela rua da Praia de propósito, a fim de gozarmos da maior visibilidade possível e virar notícia de jornal, na parte freqüentada só por pedestres, o calçadão. Descemos outra quadra da Avenida Borges, cruzamos à frente da prefeitura apitando mais forte, como prenúncio da escaramuça de logo a seguir. Estacionamos em frente à sede central do Banrisul na praça da Alfândega. Perfilados em ordem unida, recebemos solenemente a Diretoria do Banco, que fez a entrega oficial dos carrinhos por ela patrocinados. Discursos, palmas, fotografias, como convém a um fato que queríamos marcar para a cidade e principalmente para os grandes meios de comunicação social. Não faltou nem a música, que foi produzida por um carrinheiro-saxofonista. Seu instrumento, de dar dó de tão velho e gasto, mereceu especial atenção do Diretor do Banco que presenteou nosso artista, com um saxofone novo, uma semana depois.
Finda a cerimônia, caminho de volta até defronte à igreja Navegantes, do outro lado do Trensurb. Ali ocupamos uma área de mais de mil metros quadrados. Acabávamos de percorrer, a pé, sempre puxando os carrinhos, em torno de 15 quilômetros.
Como sinal da tomada de posse do terreno, plantamos uma maloca bem no centro da área, para servir de escritório e ... mãos à obra, que o dia é curto e o car¬rinheiro precisa garantir o pão e o leitinho das crianças. O trabalho começou no mesmo instante: quem buscando papel no centro com os flamantes carrinhos zero quilômetros, quem separando os materiais e quem enfardando. A “máquina” de fazer os fardos era uma caixa de madeira. Começavam estendendo uma corda resistente nas linhas de comprimento e largura. Com os pés socavam o lixo selecionado e encerravam a operação amarrando a corda na parte de cima.
Era meio-dia quando os olheiros da Prefeitura começaram a se alertar para a "invasão". O estrupício tinha que chegar até o gabinete do prefeito e es¬te, num primeiro momento titubeou em relação à decisão. O Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) e outros órgãos, teriam que executar a determinação. Chega um lote de funcionários, munidos de caçambas e outras ferramentas como pás, enxadas, carrinhos, etc. Porém lá estávamos nós também, acampados e esperando pelo que desse e viesse. Fazendo uso de nosso diploma de advogado, iniciamos os carteiraços: "Não podiam tocar em nin¬guém!... Todos eram clientes nossos” gritávamos em direção aos funcionários municipais mais afoitos já se atracando com algum dos carrinheiros nossos. “Como é que podiam despejar pessoas, se estávamos parlamentando diretamente com o senhor Prefeito?!" A bem da verdade, não era exata¬mente isso que estava acontecendo. Só força de expressão.
Na realidade com nossos gritos e carteiraços, extravasávamos apenas a esperança de que começassem negociações. Para tanto, três dias antes, tínhamos plantado a informação de que ocuparíamos a área, junto a um grande amigo nosso, ocupante de uma da secretarias, Municipal de Habitação e que conosco batalhara desde os tempos de juventude, no movimento Juventude Estudantil Católica (JEC), com a reco¬mendação: Nosso dia D, será 27 de setembro. Até lá, boca fechada!... Quando acontecer, lembra-te de nós junto ao Prefeito!”. Com esse torneio de frase nos lembramos da fi¬gura do "bom ladrão", junto à Cruz de Jesus que, segundo Santo Agostinho, "depois de roubar a vida inteira, acabou roubando o próprio céu” (Lc 23,42). Lembramo-nos também do arrazoado do grande filósofo e teólogo Tomás de Aquino que, em plena Idade Média ensinava: Quando alguma pessoa, ou um grupo de pessoas são totalmente carentes, sem possibilidade para satisfazer o que é essencial para a vida, tudo no mundo passa a ser comunitário. Essas pessoas tem direito a buscar, em que lugar estiverem, tanto alimento para matar a fome, quanto ocupar um abrigo para poder descansar, etc. etc.”
É que, também nos havíamos lembrado de uma dica de Jacques Lebret em seu livro “Princípios para a ação”: "Quando vocês quiserem mudar uma estrutura, têm que começar por construir uma base dinâmica. Tendo isso garantido, procurem se infiltrar em todos os escalões intermediários, desde os mais bai¬xos até os mais altos...” Nossa base dinâmica estava aí, na pessoa desses 20 heróis que decidiram correr o risco junto conosco, e esse amigo-secretário-municipal era uma das nossas mais significativas infiltrações. Soubemos mais tarde que desenvolveu esforços junto do Prefeito, como convém a um verdadeiro defensor dos pobres.
Outro item que contou muito dentro de nossa estratégia, foi a lembrança do dito de Frei Betto: “Governo é que nem feijão, só cozinha mesmo, em panela de pressão!” Em reuniões do “orçamento participativo” ouvíramos dúzias de vezes, tanto de prefeitos do PT quanto de gente da Administração Popular, a seguinte frase: “Gostamos de administrar sob pressão!” Pois então, “a pressão fica por nossa conta e a administração por conta deles! Nós vamos fazer a nossa parte, eles que façam a deles!”
Foram três horas de muita tensão. No local da ocupação, às turras com funcionários de escalões inferiores, tinha que ser mesmo na base do grito e do carteiraço. À semelhança de Moisés "nos mantivemos firmes, como se víssemos o invisível” (Hb 11,27). Aquele que ouve o clamor dos pobres estava ali, nos dando força e coragem, apesar de ameaça até de prisão. Também tínhamos certeza de que estávamos sob os cuidados maternais de Nossa Senhora Aparecida, padroeira de nossos catadores e “madrinha dos que não têm madrinha”, no dizer do Negrinho do Pastoreio.
De repente, o clima desanuviou. A prefeitura suspendeu o despejo e do gabinete do Prefeito recebemos o convite para a negociação de um convênio. O exército de funcionários da prefeitura deu o toque de retirada e ficamos só nós, em atitude de profundo agradecimento aos céus. Os “muros” de Porto Alegre, à semelhança das muralhas da cidade de Jericó, haviam tombado, não já com o simples soar de trombetas (Js 6,1-20; Jz 7,4-7; 19-22), mas ao simples silvo dos minúsculos apitos dos nossos 20 gedeões, os excluídos carrinheiros.
Poucos dias depois foi assinado o convênio entre a Prefeitura e a nossa entidade “Devoção Nossa Senhora Aparecida” sonhando desde então, com o futuro Galpão de Reciclagem para Carrinheiros.
Obrigatoriamente, quando pronto o edifício, deveria chamar-se “Profetas da Ecologia”. Esse mesmo nome de “Profetas da Ecologia, deu nome jurídico depois, a uma entidade que acabáramos de fundar e que reúne leigos cristãos, militantes voluntários, unidos em função de serviço a movimentos populares. A Prefeitura nos cedia o terreno e nós nos compro¬metíamos a conseguir dinheiro para construir aquilo que se constituiria no primeiro Galpão de Carrinheiros organizados, da capital e também do próprio Estado do Rio Grande do Sul, o galpão dos Profetas da Ecologia, situado à rua Voluntários da Pátria n° 4201, bem pertinho do DC Navegantes, defronte à igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, e do outro lado dos trilhos do Trensurb. O prédio caprichado é fruto de doações da Caritas da Alemanha e da SCIAF da Escócia, da USBEE, etc.
Foi inaugurado solenissimamente no Natal do ano de 1995, com a consagradora presença do Prefeito e de Dom Antônio Cheuiche, bispo auxiliar do cardeal Dom Vicente Scherer.
Na inauguração do Galpão “Profetas da Ecologia”, o bispo presente também benzeu a grande estátua da Senhora das Águas que, desde 1995 até hoje, sempre preside as celebrações relacionadas à Romaria das Águas. Romaria esta que tem seu ponto culminante na Procissão fluvial de 12 de outubro e que encerra com o Rito do Encontro das Águas, no Guaíba. As águas puras e cristalinas, coletadas nas nascentes das oito sub-bacias e que são misturadas, no gasômetro, com as águas poluídas, renova o compromisso da população do Rio Grande com a despoluição total do rio-lago que banha a capital dos pampas.
Concluindo:
A pergunta que colocamos como subtítulo motivou a narrativa acima, de uma experiência comunitária com Carrinheiros, ajudados em sua organização por dois agentes de Pastoral, um de Congregação Religiosa e outro, uma pessoa Leiga.
A resposta à pergunta deixamos aos nossos leitores. Hoje é apenas colocada como uma provocação.
O ponto de partida para uma reflexão que inicie tentativas de resposta, tem que ser, naturalmente, nosso contexto continental latino-americano com essas multidões de índios, negros, carrinheiros, catadores, povo da rua em geral, pobreza e mais pobreza, disseminada não só pelos grotões e cafundós, mas também pelas roças, campos e cidades. Nossa tarefa principal dentro de nossa gritante realidade de opressão, a libertação dos cativos.
Em nosso modesto entender, a pergunta põe em cheque a vida religiosa desde que Dom Hélder Câmara inaugurou um novo discurso no Brasil, nos embretando pelo Caminho da opção pelos pobres; e também depois que o bom papa João XXIII, convocou o Concílio Vaticano II; e depois que o mesmo Dom Hélder Câmara, em vez de encerrar o Concílio Vaticano na Praça São Pedro em Roma, foi encerrá-lo à frente de várias dezenas de bispos do mundo inteiro de mesma opção que ele, por uma Igreja Pobre. Com os irmãos bispos que o acompanharam em bloco, se comprometeram mutuamente assinando o Pacto das Catacumbas; e depois da realização da Assembléia Episcopal de Medellin no ano de 1968; e depois da criação de nossas Comunidades Eclesiais de Base, de nossa Catequese Libertadora, de nossa Teologia da Libertação.
Estaríamos incorrendo em algum equívoco histórico, se disséssemos que nosso Mestre, o Homem Jesus de Nazaré, não se filiou nem fundou nenhuma Congregação Religiosa, embora a exegese bíblica afirme a existência de alguma na Palestina de seu tempo.
Jesus trouxe de junto do Pai, o projeto do Reino de Deus. Esse Reino é essencialmente Comunitário. Para Ele, Jesus, a Comunidade começa com dois e como a semente de mostarda, ou como um pouco de fermento na massa, em seguida cresce e se desenvolve.
Lendo e relendo os Evangelhos estamos por concluir que o Divino Mestre formou Comunidade, isso sim, com o Povo pobre. Muito mais Comunidade de Rua do que Comunidade de Convento. Comprometeu-se inteiramente com o Processo Histórico Popular de seu tempo.
Se a Vida Religiosa e a própria Igreja Católica vivem hoje sua crise histórica mais grave de todos os tempos a ponto do Cardeal Martini, um pouco antes de morrer, teve o atrevimento de afirmar que a Igreja Católica está atrasada de 200 anos, estamos convencidos de que a vida religiosa, do jeito que está, também tem que mudar muita coisa para realizar seu “aggiornamento” como dizia o bom Papa Giovanni.