Temos um Problema. Artigo de Joan Benach

Fonte: Rawpixel

26 Abril 2022

 

“Temos os meios e recursos para reeducar nossas mentes, para ver nosso Problema, mas precisamos de decisão e coragem, pessoal e coletiva, para isso. Não podemos nos resignar a não pensar e sentir ao mesmo tempo. Devemos usar essa palavra que o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda adotou dos pescadores de San Benito Abad, no departamento colombiano de Sucre: o sentipensar”, escreve Joan Benach, professor, pesquisador e especialista em saúde pública, em artigo publicado por Ctxt, 23-04-2022. A tradução é do Cepat.

 

Segundo ele, "hoje, enfrentamos uma circunstância absolutamente nova, sem precedentes na história humana. Criamos uma civilização na qual fizemos formidáveis progressos sociais e conquistas tecnológicas, mas onde, voluntária ou involuntariamente, alteramos profundamente (e cada vez com maior rapidez) o meio ambiente global e a vida no planeta. Hoje, deixamos de compreender que somos parte da natureza, e isso nos torna um perigo para a vida e para nós mesmos".

 

Eis o artigo.

 

É 20 de julho de 1969. A missão espacial tripulada Apollo 11 pousa em nosso satélite e algumas horas depois Neil Armstrong dá seus primeiros passos na superfície lunar, enchendo o mundo de espanto e admiração. Com ele, emerge a profunda emoção de sentir uma íntima união com uma Terra que nos impele a amá-la e protegê-la. É o lar de todos os humanos que já conhecemos e, com grande probabilidade, conheceremos [1].

 

Quatro anos antes, Aleksei Leonov, o astronauta russo, fez o primeiro passeio espacial da história expressando que a Terra é “nossa casa, pequena, azul e comoventemente solitária”. Um ponto perdido na envolvente escuridão cósmica.

 

A preparação da primeira viagem à Lua, sua realização e posterior acompanhamento foi um processo longo, custoso, difícil [2], cheio de conquistas, mas também de muitas dificuldades. “Um pequeno passo para o ser humano, um grande salto para a humanidade”, disse Armstrong ao pisar na Lua, simbolizando a enorme proeza humana. Mas outra expressão, muitas vezes usada de forma jocosa quando enfrentamos uma contrariedade, tornou-se inclusive mais popular: “Houston, temos um problema” [3].

 

Hoje não é a Apollo, mas a Terra que tem um Problema com letras maiúsculas. Claro, a humanidade enfrenta muitas dificuldades: a crescente desigualdade social, o risco da guerra nuclear, o avanço em direção a uma sociedade autoritária e plutocrática submetida a um férreo controle tecnodigital global, a ascensão dos neofascismos, a emergência de pandemias, um controle em massa e a vigilância social, novos vícios coletivos, os riscos geopolíticos globais derivados do declínio do império norte-americano e a emergência da China, entre muitos outros.

 

Esse globo azul suspenso em um espaço infinito e escuro possui, hoje, um problema ainda maior, se cabe, o maior desafio que nunca antes tivemos que enfrentar. Um desafio que bate insistentemente à nossa porta: a crise socioecológica. Não, não se trata apenas de limpar nossos rios, plantar árvores, cuidar das florestas, reciclar produtos e incentivar o uso de energias renováveis, todas iniciativas essenciais e urgentes. Também não significa o fato crucial de que temos que enfrentar uma emergência climática que já está tendo consequências catastróficas. Nosso Problema é mais complexo, é outra coisa.

 

A Terra é a nossa casa. Nosso planeta é o único mundo conhecido em que sabemos com certeza que a matéria do Cosmos se tornou viva e consciente, embora não necessariamente tenha que ser o único que possa estar habitado [4]. A primeira vez que a humanidade contemplou “nossa pequenez” ocorreu na véspera de Natal de 1968, durante a missão Apollo 8, quando uma fotografia fez eclodir nossa consciência de espécie.

 

Naquele dia, o poeta Archibald MacLeish escreveu: “Ver a Terra, como ela realmente é, pequena e azul e bela neste eterno silêncio em que flutua, é ver-nos juntos como viajantes sobre a Terra, irmãos naquela brilhante beleza no frio eterno, irmãos que sabem, agora, que são irmãos de verdade” [5].

 

Em seus livros e programas de televisão, o astrônomo e grande divulgador científico Carl Sagan lembrava que somos o legado de 15 bilhões de anos de evolução cósmica e que temos o prazer de viver em um planeta onde evoluímos para poder respirar o ar, beber a água e amar a natureza que nos cerca. Nossas células foram sendo forjadas no coração das estrelas. “Somos poeira de estrelas”, dizia.

 

Hoje, enfrentamos uma circunstância absolutamente nova, sem precedentes na história humana. Criamos uma civilização na qual fizemos formidáveis progressos sociais e conquistas tecnológicas, mas onde, voluntária ou involuntariamente, alteramos profundamente (e cada vez com maior rapidez) o meio ambiente global e a vida no planeta. Hoje, deixamos de compreender que somos parte da natureza, e isso nos torna um perigo para a vida e para nós mesmos.

 

O poeta chileno Nicanor Parra alertou que cometemos o erro de “acreditar que a Terra era nossa, quando a verdade das coisas é que nós somos da Terra”, e que continuamos tendo uma forma de pensar antropocêntrica, científico-tecnológica e narcisista baseada na “egoconsciência”, em vez de na “ecoconsciência”.

 

Tendemos a ser cegos, a atenuar o que nos ameaça, a abrandar o que é nocivo ou negativo, a não olhar para o que não gostamos. Apesar de estar todos os dias diante de nossos olhos, não vemos, não sentimos, não compreendemos. Não queremos tomar plena consciência da atroz crise socioambiental em que estamos imersos. Temos dificuldades em acreditar nos incessantes e aterrorizantes alertas que os cientistas nos lançam continuamente.

 

Vale dizer que existem muitas razões para ignorar as vozes, e existem muitas pessoas, grupos sociais e instituições que fazem tudo o que é possível para impedir que ouçamos. Não basta usufruir os bens, recursos e bem-estar que a natureza nos proporciona, é necessário também compreendê-la e compreender-nos. Essa consciência deve decorrer de uma visão limpa, humana, ao mesmo tempo científica, ético-política e espiritual.

 

Não basta desfrutar da luz elétrica, dizia o religioso dominicano brasileiro Frei Betto, é preciso entender como e por que ela é produzida: “Só quem tem formação de eletricista sabe olhar isso com outros olhos, porque compreende coma a luz chega à sala... isso é a consciência política: ver os fios, saber o que acontece por trás”. A primeira coisa é saber. Em um conhecido ensaio, o filósofo iluminista Immanuel Kant recordava um velho lema cunhado por Horácio (século I a. C.). Sapere Aude, dizia: “Quem começou, já fez metade: ouse saber, comece!”.

 

Por muito tempo, o planeta nos pareceu imenso, o único mundo explorável. Durante um milhão de anos, a humanidade acreditou que éramos o centro do mundo, que além da Terra não havia outro lugar. Hoje, a Terra se tornou muito pequena. Na última parte da vida de nossa espécie no planeta, percebemos que vivemos em um mundo pequenino e frágil, perdido na imensidão e na eternidade, que está à deriva em um grande oceano cósmico.

 

Em 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager 1 fotografou a Terra a 6 bilhões de quilômetros de distância [6]. Um ponto de luz quase imperceptível. Carl Sagan explicou emocionado suas sensações:

 

A Terra vista a uma distância de 6 bilhões de km pela Voyager 1, em 1990.

 

“Olhe esse ponto. É aqui. Essa é a nossa casa. Somos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. A soma de todas as nossas alegrias e tristezas, milhares de religiões seguras de si mesmas, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor de civilizações, cada rei e camponês, cada jovem casal apaixonado, cada mãe e pai, criança esperançosa, inventor e explorador, cada professor de moral, cada político corrupto, cada “superstar”, cada “líder supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso em um raio de sol. A Terra é um palco muito pequeno na vasta arena cósmica… Nossas posições, nossa imaginária importância, a ilusão de que ocupamos uma posição privilegiada no Universo… é desafiada por esse pálido ponto de luz”.

 

Nós, seres humanos, vivemos em um ambiente que moldamos e que ao mesmo tempo nos molda. Habitamos um mundo natural criado ao longo milhares de milhões de anos pelos processos da física, química e biologia. Somos uma a mais entre as espécies [7].

 

Somos capazes de construir casas confortáveis para cuidar de nossos idosos e também grandes rodovias com 26 pistas. Inventamos livros ou a rede global Internet, e também construímos armas nucleares mortíferas, podemos explorar os polos e visitar a Lua ou Marte, criar beleza musical e desenvolver elegantes e poderosas teorias científicas e tecnologias de grande eficácia. Refazemos a natureza à nossa medida... Somos uma espécie capaz de quase tudo, mas não somos uma espécie a mais [8].

 

Vivemos em dois mundos em constante interação: a ecosfera ou biosfera natural, a fina pele global composta de ar, água, terra e as plantas e animais que nela vivem, e a tecnosfera criada pelo ser humano, com todos os artefatos e produtos que fomos capazes de inventar. Dois mundos que estão em guerra, como nos lembrava o grande biólogo e ecologista Barry Commoner, em Making peace with the planet.

 

A capacidade humana atual de ter o poder suficiente para intervir determinantemente sobre a natureza tem sua origem na revolução industrial capitalista que se inicia em fins do século XVIII. No século passado, assistimos à expansão de um capitalismo fóssil imparável, e nas últimas cinco décadas o triunfo econômico e ideológico de um capitalismo neoliberal e cognitivo, capaz de criar crescimentos exponenciais e tecnologias maravilhosas, mas também de destruir laços sociais e de solidariedade muito profundos, difundindo o consumo em massa e o entretenimento vazio como forma de vida e “realização” pessoal. O triunfo do capitalismo neoliberal foi amplo, muito profundo, em todos os níveis, em todos os lugares.

 

Hoje, o sistema capitalista não parece capaz de criar “Estados de bem-estar” para toda a humanidade, nem mesmo, como lembrava o saudoso urbanista e ambientalista Ramón Fernández Durán, “simulacros de bem-estar”. O capitalismo destrói, constrói e consome uma materialidade que abrange tudo. A mercantilização se estende do microcosmo ao macrocosmo em todos os âmbitos e coisas: saúde, educação, natureza, conhecimento, cultura, arte, esportes, corpo...

 

O corpo é analisado, fragmentado, comercializado e finalmente vendido como mais uma mercadoria. Genes, bactérias, sementes, tecidos e animais modificados geneticamente são patenteados, órgãos são traficados e comprados, úteros, familiares e até namorados/as são alugados, e terrenos na Lua ou nos planetas são vendidos [9] [10]. E é também um modo de vida imaterial. O capitalismo emocional é a causa final de uma patogênese generalizada que entra em nossos corpos e mentes. Penetra em nossos cérebros, inserindo ideias, registros e ficções que mudam nossas mentes e transformam as relações humanas.

 

As empresas farmacêuticas, rastreadoras ativas de qualquer lucro que valha a pena, identificam qualquer forma de mal-estar, vícios, neuroses, transtornos, preocupações, dores, humilhações e medos causados pelo próprio capitalismo para criar todos os tipos de síndromes e doenças e vender seus produtos. No entanto, para grande parte da humanidade, dispor de fundamentos vitais tão básicos como comer alimentos, beber água ou respirar ar em condições higiênicas e saudáveis é ainda um sonho inalcançável.

 

Temos os meios e recursos para reeducar nossas mentes, para ver nosso Problema, mas precisamos de decisão e coragem, pessoal e coletiva, para isso. Não podemos nos resignar a não pensar e sentir ao mesmo tempo. Devemos usar essa palavra que o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda adotou dos pescadores de San Benito Abad, no departamento colombiano de Sucre: o sentipensar.

 

A inovação básica da revolução científica dos séculos XVI e XVII foi fazer perguntas e descobrir nossa ignorância, percebermos que não tínhamos todas as respostas. Aprender que com esforço, tempo e recursos podíamos investigar e conhecer mais coisas, conquistando poder para mudar a tecnologia, a cultura, a economia e o ambiente natural. A ciência, o conhecimento e a solução de problemas se iniciam e se nutrem continuamente a partir de perguntas que nos fazemos.

 

Albert Einstein assinalava que a formulação de um problema é mais importante do que a sua solução. O escritor Mark Twain destacava que o problema não é o que não sabemos, mas o que acreditamos ser o certo e não é. O artista e escritor John Berger nos convidava a viver com os olhos abertos, sem nos deixar derrotar pelo niilismo, o ódio e o desespero. Seremos capazes de ver (e mudar) nosso Problema?

 

Notas

 

[1] Essa emoção é conhecida como “efeito geral” (overview effect). Ao ver o planeta banhado na escuridão do espaço, as fronteiras se apagam e somos todos cidadãos da Terra. Ron Garan, um ex-astronauta da NASA que passou duas semanas trabalhando na construção da Estação Espacial Internacional, disse: “Para mim, foi uma epifania em câmera lenta... um profundo senso de empatia e comunidade, a vontade de renunciar a ter uma recompensa imediata e ter uma perspectiva de progresso multigeracional... é o lar de todos os que já viveram e de todos os que virão”. Ver: Ian Sample. “Scientists attempt to recreate 'Overview effect' from Earth”. The Guardian, 26 de dezembro de 2019;

[2] O custo econômico foi de cerca de 288 bilhões de dólares de 2019, gastos em pouco mais de uma década. Em 1965, o programa atingiu o seu apogeu, com um investimento equivalente a 2% do PIB dos Estados Unidos da época. Antonio Turiel. “Cincuenta años del primer hombre en la Luna”, 26 de julho de 2019;

[3] A frase não é exata, nem foi dita durante a primeira viagem, mas, sim, um ano depois, na Apollo 13, mas ficou registrada dessa forma no imaginário popular. “Houston, we have a problem” é uma popular, mas errônea citação de uma frase de Jack Swigert, durante a fracassada viagem da Apollo 13, justamente após observar uma luz de alerta acompanhada por uma explosão, em 13 de abril de 1970. A frase de Swigert foi: “Ok, Houston, tivemos um problema aqui” (“Ok, Houston, we've had a problem here”). A mesma foi seguida pela de seu parceiro Jim Lovell: “Ah, Houston, tivemos um problema” (“Uh, Houston, we've had a problem”);

[4] Carl Sagan, um dos melhores divulgadores da ciência e do Cosmos disse com estas palavras: “Existem cem bilhões de galáxias e milhares de bilhões de estrelas. Por que este modesto planeta deveria ser o único habitado? Pessoalmente, considero muito possível que o Cosmos esteja repleto de vida e inteligência. Mas, “até agora, todo ser vivo, todo ser consciente, toda civilização que tenhamos conhecido viveu aí, na Terra. Abaixo dessas nuvens se desenvolve o drama da espécie humana... As fronteiras nacionais não se diferenciam quando olhamos a Terra do espaço. Os chauvinismos étnicos, religiosos ou nacionais são uma coisa difícil de manter quando vemos nosso planeta como um crescente azul e frágil que se esvaece até se tornar um ponto de luz sobre o bastião e a cidadela das estrelas”. Ver: Cap. 1 da série de 13 documentários “Cosmos”, baseado no livro Sagan, C. “Cosmos”. Barcelona: Planeta, 1980;

[5] Gore A. “Una veritat incomode”. Barcelona: Gedisa, Edicions 62, 2006:12.

[6] A Voyager 1 é uma sonda espacial robótica de 722 quilos, lançada em 5 de setembro de 1977, sendo o objeto mais distante da Terra feito pelo homem. Sua missão é localizar e estudar os limites do sistema solar e explorar o espaço interestelar imediato. Em junho de 2021, estava a 22.909.417.919 km do Sol e faltam cerca de 17.702 anos para sair da nuvem de Oort, onde entrará no século XXIV;

[7] Ward B, Dubos R. “Only one Earth”. New York: Ballantine Books, 1972: XIX;

[8] Embora o ser humano seja uma espécie humana a mais, não é uma a mais entre as espécies. “Em sua evolução, a espécie [humana] desenvolveu, para o bem e para o mal, uma plasticidade dificilmente esgotável de suas potencialidades e necessidades. Devemos reconhecer que nossas capacidades e necessidades naturais podem se expandir até a autodestruição. Precisamos enxergar que somos biologicamente a espécie da Hybris, do pecado original, da soberba, a espécie exagerada”. Ver: Sacristán M. “Pacifismo, ecologismo y política alternativa”. Barcelona: Icaria, 1987:10;

[9] Em 1980, o empresário norte-americano Dennis Hope registrou a Lua em seu nome. Hope aproveitou um vazio legal, pois embora exista um tratado internacional que indica que nenhum país pode reivindicar a propriedade da Lua ou de outro planeta, este não diz nada sobre pessoas ou empresas privadas. O satélite foi dividido, iniciando-se a venda de lotes através da “Lunar Embassy”. Por meio de sua empresa “Lunar Embassy”, Hope vende terrenos lunares e o mesmo pode acontecer com Marte, Mercúrio e Plutão; 

[10] Ver, por exemplo, I. Wallerstein. “El capitalismo histórico”. Madrid, Siglo XXI, 2012 (2 ed), p. 90 [ed. original 1988]; Y. Varoufakis. “Economía sin corbata”. Barcelona, Destino, 2013, p. 34 (ed. orig. 2015).

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

Confira a programação do Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo, que tem como objetivo discutir, de modo transdisciplinar, os desafios que o novo regime climático do planeta impõe às nossas formas de pensar, conceber e habitar o mundo.

 

 

 

 

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